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Histórias de dor e injustiça ambiental

OESP, Geral, p. A14-A15
29 de Ago de 2004

Histórias de dor e injustiça ambiental
Estudo mostra como o descaso das indústrias em relação aos resíduos tóxicos pode ser fatal

Karine Rodrigues

A necessidade de anestesia geral para a troca de curativos, realizada em dias alternados, dava a dimensão da dor de João Pedro Teodoro da Silva, de 8 anos, metade do corpo tomado por queimaduras de terceiro grau. No início de julho, ele foi surpreendido pela combustão espontânea de um terreno próximo de casa, onde brincava com dois primos, em Barra Mansa, no sul fluminense. O garoto morreu há dez dias, quatro anos depois de Ivonete Gomes dos Santos, de 1 ano e 5 meses, que ingeriu uma mistura de cianeto, mercúrio e sódio, no entorno da favela onde morava, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
João Pedro e Ivonete são vítimas de injustiça ambiental, termo usado para definir situações em que os prejuízos ao meio ambiente, causados, principalmente, pela indústria, afetam prioritariamente as populações de baixa renda.
No caso, as duas crianças sofreram, de maneira fatal, as conseqüências da irresponsabilidade na disposição de resíduos industriais, um dos problemas mais freqüentes reunidos no Mapa dos Conflitos Ambientais, que traz 251 casos ocorridos em 49 municípios do Estado do Rio entre 1992 e 2002.
Realizado pela organização não-governamental (ONG) Fase, em parceria com o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o mapa, que vai ser apresentado hoje no Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, tem como fontes os Ministérios Públicos do Estado e Federal, além da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema).
Descaso - Para o ambientalista Jean-Pierre Leroy, da Fase, o mapa deixa clara a existência, no Estado, do que ele define de "zonas de sacrifício", áreas onde os moradores, geralmente de baixa renda, sofrem as conseqüências de atividades industriais realizadas em desrespeito às normas ambientais. Convivem, assim, com solo, ar e água contaminados e resíduos químicos ao alcance da mão.
Aos casos nos quais os poluidores são conhecidos e estão próximos de casa devem ser acrescentados os despejos de lixo tóxico realizados na calada da noite, bem distante do lugar onde são gerados, para impedir a identificação.
"Os problemas decorrentes do descaso de indústrias com o meio ambiente atinge o meio urbano e rural e, geralmente, a população pobre é a mais sacrificada", observa Leroy, citando como exemplo de zonas críticas os municípios de Duque de Caxias e o vizinho Queimados.
No mapa, as situações-problema estão divididas em três classificações - a maioria, 183, está associada a atividades industriais. Em seguida, vêm os 48 casos ligados à ausência de saneamento. Além de descrever o problema, o CD-ROM traz data, nome do denunciante e dos atores envolvidos e fontes de pesquisa. Há também fotos e vídeos.
Segundo Leroy, o mapa faz parte de um projeto mais amplo, a Rede de Justiça Ambiental, criada em 2001 e inspirada em uma experiência americana.
"Ambientalistas e negros criaram uma aliança para combater os problemas ambientais, que, segundo constataram, tinham como vítimas, principalmente, pessoas pobres e, em sua maioria, negras."
Atualmente, há 80 entidades participando da rede, que procura refletir sobre o assunto e buscar iniciativas para ir de encontro ao desenvolvimento que desconsidera os riscos causados à natureza.
"Quando um empreendimento se instala em um lugar, precisa levar em conta o meio ambiente e as pessoas que vivem ao redor. O objetivo da rede é ajudar essas comunidades que tentam se organizar, que precisam de apoio para fazer que os problemas por elas enfrentados ganhem repercussão e ultrapassem seu ambiente, ganhem repercussão, aumentando o poder de luta", destaca o ambientalista.
Ocupação irregular - Secretária estadual de Meio Ambiente, Isaura Fraga reconhece os problemas sofridos pelas comunidades carentes em decorrência das atividades industriais, mas ressalta que, em muitos casos, elas ocupam áreas irregularmente, ao lado das fábricas.
"Isso também precisa ser levado em conta", diz, apontando a existência de passivos ambientais como um dos piores problemas do setor. "As empresas entram em falência e não conseguem dar conta dos resíduos que produzem.
Depois das dívidas trabalhistas, o patrimônio dos donos deveria ser usado para dar um destino adequado ao passivo e só depois utilizado para pagar as dívidas públicas", defende.
No ano passado, o rompimento de um reservatório da Indústria Cataguazes de Papel, em Cataguases, na Zona da Mata de Minas, causou o vazamento de 1,2 bilhão de litros de produtos químicos usados na fabricação de papel, material que contaminou os Rios Pomba e Paraíba do Sul, matando peixes e deixando mais de 600 mil pessoas sem água. Os donos da empresa informaram que o tanque de resíduos era um passivo ambiental de outra indústria.
Parceria - Para dar mais poder de fogo aos moradores das áreas mais carentes, vítimas de atividades industriais e da falta de saneamento, a Rede de Justiça Ambiental, por meio da Fase, firmou este mês um acordo de cooperação com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Através dele, os pesquisadores da instituição na área de saúde pública e ambiental vão analisar os conflitos ambientais e produzir pareceres, indicando, por exemplo, se há ou não nexo causal entre doenças surgidas na população do entorno de indústrias e as atividades lá realizadas.
"As empresas desqualificam as denúncias feitas pelos moradores. A base científica, por meio dos laudos dos pesquisadores, dá legitimidade científica à percepção coletiva", diz Henri Acselrad, do Ippur, avaliando que, embora não configure propriamente a solução para os embates, vai equilibrar a correlação de forças entre os mais pobres e os proprietários e o poder público.
Segundo Marcelo Firpo, do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Fiocruz, serão realizados contrapareceres aos apresentados durante as situações de conflito. "Geralmente, estes são feitos seja pelas empresas denunciadas ou por instituições públicas que não levam em conta as necessidades e a realidade das populações atingidas", observa o pesquisador.
As primeiras análises, de acordo com ele, serão feitas no Espírito Santo e no sul da Bahia, para verificar as denúncias de moradores, que dizem ter sido contaminados com agrotóxicos usados na monocultura do eucalipto vinculado à indústria de celulose.

Só após o acidente, o aviso: interditado
Antes de morte de garoto, não havia placa de sinalização para informar que terreno era perigoso
RIO - A entrada do terreno de Barra Mansa onde, no início de julho, João Pedro e mais dois primos foram surpreendidos por labaredas de fogo, está bloqueada com tela plástica e arame farpado. Além disso, uma faixa da Defesa Civil avisa: interditado. Sabe-se, portanto, que ali é uma área perigosa.
Mas, até o acidente, ocorrido em decorrência da disposição de carvão vegetal, que entrou em combustão de forma espontânea, seria impossível identificar os riscos de entrar no local.
O material estava enterrado e não havia nenhuma placa indicando que era preciso se manter longe dali. "A gente brincava muito por lá, pois aqui não tem área de lazer, não tem quadra. Quando o terreno pegou fogo, nem acreditei. Não entendia como podia ser aquilo", contou, na quinta-feira, Luciana Vitorino, de 14 anos, moradora de uma favela situada a pouco mais de 100 metros do terreno, onde, há cerca de 20 anos, funcionava um aterro para carvão vegetal.
Segundo a Feema, o calor da queima de vegetação seca nas proximidades do local teria causado a combustão.
A área, que dá para o Rio Paraíba, tem bananeiras e pés de mamão e, por isso, crianças e adultos costumavam circular pelo local para pegar as frutas.
No dia do acidente, Edson Macedo Júnior, de 11 anos, e outro primo tiveram mais sorte do que João Pedro. Conseguiram escapar do fogo com pequenas queimaduras nos pés. Indagado sobre o dia em que ocorreu a combustão, fica calado. Mostra as cicatrizes e diz apenas que sentiu muita dor, "mas passou logo". Ele mora em uma casa a 200 metros do terreno.
"Fraquinho" - Na parte de cima, vivem Tatiana e Cleiciano, pais de João Pedro, e Carol, a outra filha, de 6 anos.
"O meu filho estava sofrendo muito, estava muito fraquinho. Em uma troca de curativos, acabou não resistindo. Sofreu duas paradas cardíacas e morreu.
Para mim era muito difícil vê-lo passar por tanto sofrimento. Ele ainda teve uma perna e dedos amputados, mas não houve jeito", disse Tatiana, de 26 anos. Segundo ela, ainda houve quem dissesse que o filho teria morrido por irresponsabilidade da família.
"Como a gente ia saber do perigo daquilo ali. Estava tudo enterrado. Por que ninguém colocou uma placa avisando que aquilo ali era perigoso? Não custava nada. Poderiam ter colocado um muro, uma cerca", critica.
Apesar de o terreno ter as entradas fechadas, é possível chegar ao local entrando em uma área vizinha. Há vários montes de carvão, que antes estavam encobertos e foram removidos com uma escavadeira. Apesar do ocorrido, há placa de aluga-se afixada na parede. O Estado ligou para os números anunciados, mas ninguém atendeu às ligações. (K.R.)

OESP, 29/08/2004, Geral, p. A14-A15

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