VOLTAR

Guerras, secas, gafanhotos

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
27 de Ago de 2004

Guerras, secas, gafanhotos

Washington Novaes

No próximo dia 20 de setembro, véspera da abertura da 59.ª Assembléia da ONU, por proposta do presidente brasileiro, deverão reunir-se em Nova York vários chefes de Estado, para examinar o relatório de um grupo de trabalho criado em janeiro e que deverá apresentar propostas de criação de mecanismos financeiros para um fundo mundial de combate à fome, que permita cumprir uma das Metas do Milênio e reduzir em pelo menos 50%, até 2015, o número de pessoas que vivem em pobreza extrema (840 milhões, segundo a ONU).
A proposta brasileira, apoiada pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan, foi endossada pela França, pela Espanha e pelo Chile. Mas já tem a oposição dos EUA, para quem o melhor caminho não é criar tributos globais sobre ativos financeiros, e sim "iniciativas do setor privado", como disse a este jornal o novo embaixador norte-americano no Brasil, John Danilovich (Estado, 20/8).
Na mesma direção que vem sendo proposta há anos pelo economista James Tobin, Prêmio Nobel de Economia, o grupo de trabalho estuda taxar direitos especiais de giro, recursos evadidos para paraísos fiscais e outros ativos financeiros, além do comércio internacional de armamentos (a atividade comercial de maior valor no mundo, que gira o equivalente à renda anual somada de metade dos habitantes do mundo). Tobin, considerando que as transações especulativas globais, na época de sua proposta, estavam acima de US$ 1 trilhão por dia, propôs uma taxa de 0,5% sobre elas, que geraria cerca de US$ 1,5 trilhão anuais para combater a pobreza. Já houve propostas de reduzir a taxa para um décimo desse porcentual, para arrecadar US$ 150 bilhões anuais. Mas também não prosperaram.
Na Agenda 21 global aprovada em 1992 no Rio de Janeiro, decidiu-se que os países industrializados deveriam aumentar sua ajuda aos pobres, de 0,36% de seu PIB anual - patamar em que se encontrava - para 0,7%. Com isso se chegaria a US$ 180 bilhões anuais, que, somados a US$ 420 bilhões de recursos dos próprios receptores, permitiriam chegar a US$ 600 bilhões anuais e resolver as questões básicas de saneamento, educação, saúde e alimentação para todas as pessoas. Mas, nos 12 anos decorridos, a ajuda caiu para 0,22%, muito poucos países a aumentaram; os EUA reduziram-na, em termos de PIB, a metade do que era.
Nesse mesmo período, agravou-se o processo de concentração da renda, da produção e do consumo no mundo, como tem dito a ONU e tem sido comentado neste espaço. Com esse processo o drama chega a níveis inacreditáveis na África. No final do ano passado, por exemplo, a Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO), da ONU, alertava que 38 países enfrentavam graves déficits na produção de alimentos. E 23 deles eram africanos. A situação pior era na Eritréia (agravada pela guerra com a Etiópia), com 2,3 milhões de pessoas passando fome, e na própria Etiópia, com 13,2 milhões. Tanzânia (1,9 milhão), Uganda (1,6 milhão) e República Democrática do Congo, igualmente em guerra, também apresentavam situação dramática. E havia problemas graves no Zimbábue, no Lesoto, na Suazilândia, na Namíbia, em Madagáscar, em Moçambique, em Angola e na Guiné-Bissau, esta já às voltas com um ataque maciço de gafanhotos que dizimavam colheitas e avançavam para a Mauritânia, o Sudão e a Nigéria (onde eles chegaram à média de 20 por metro quadrado). Em janeiro deste ano a FAO reiterou as advertências, com a Etiópia ainda na situação mais grave, 7,2 milhões de pessoas sem alimentos.
Não bastassem todos os dramas deixados na África pelos colonizadores, lembra a revista New Scientist que o continente sofre hoje com um problema grave na área das mudanças climáticas, que é o aumento da temperatura das águas oceânicas, principalmente no Índico. Comparando dados dos últimos 70 anos, o International Institute for Climate Prediction (Palisades, New York) mostra que há forte correlação entre aumento dessa temperatura, redução de chuvas e agravamento das secas nos países ao sul do Saara. Mas o desmatamento e a poluição ácida proveniente da Europa também influem.
Para completar o quadro, entram as guerras, que quase invariavelmente envolvem disputas por recursos naturais. É assim na guerra que envolve Ruanda, Burundi e Congo, na qual já perderam a vida alguns milhões de pessoas (as estimativas variam entre 3,5 milhões e 4,3 milhões), como é assim no atual conflito no Sudão.
Ao longo da década de 1990, diz o Worldwatch Institute, os conflitos por recursos naturais mataram 5 milhões de pessoas e obrigaram entre 17 milhões e 21 milhões a fugir. Um quarto dos conflitos armados se travou em disputa de madeira, petróleo, minérios, água - todos em países pobres, "onde um grupo étnico ou elite econômica assume o controle".
Não está sendo diferente hoje na região de Darfur (Terra do Couro), no Sudão, onde, segundo a Anistia Internacional, "o governo parece estar estimulando as milícias Janjaweed a seqüestrar e matar agricultores de outras etnias, para apossar-se de suas terras". 800 mil pessoas - dos 3 milhões de várias etnias africanas - já tiveram de fugir de suas aldeias queimadas e refugiar-se nas cidades, onde não têm o que comer. Mais 120 mil cruzaram a fronteira do Chade; 10 mil morreram.
Diz o professor Abba Gana Shettim, sociólogo da Universidade de Maiduguri, na Nigéria, que não é uma guerra religiosa entre os muçulmanos da Janjaweed e as várias etnias africanas, e sim uma "limpeza étnica", um genocídio, que, na verdade, vem de longe, pois Darfur foi durante séculos um dos principais centros de comércio de escravos africanos aprisionados e exportados para o mundo árabe. Mais recentemente, o motivo imediato é a tentativa dos grupos descendentes de árabes, que são pastores nômades, de - com apoio do governo central - ocupar com seus camelos, bois e ovelhas as áreas de lavouras dos africanos sedentários.
Mas quem se importa? O Sudão faz parte do "eixo do mal", segundo o presidente norte-americano. No Brasil mesmo, um terço da população está abaixo da linha de pobreza.
E assim segue, com o mundo quase indiferente, a tragédia africana. Uma imensa riqueza cultural (mais de 10 mil etnias!) e natural, que as fronteiras, as ocupações e o comércio ditados pelos colonizadores transformaram em palco de guerras e tristezas inimagináveis.
Conseguirá a reunião do dia 20 avançar e minorar tanto sofrimento?

Washington Novaes é jornalista

OESP, 27/08/2004, Espaço Aberto, p. A2

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.