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A guerra que todos perderam

Jornal Pessoal
Autor: Lúcio Flávio Pinto
16 de Jan de 2004

O Pará ganhou e perdeu na guerra-relâmpago para impedir que o dinheiro do Fundo de Desenvolvimento da Amazônia fosse aplicado na Ferrovia Norte-Sul, que está sendo construída do Maranhão para Goiás, com conexão para o centro-sul do país. O dinheiro voltou para os cofres da União.

O Pará conseguiu uma vitória nos últimos dias do ano passado: impediu que os recursos do Fundo de Desenvolvimento da Amazônia fossem destinados à Ferrovia Norte-Sul, que não traz qualquer benefício para o Estado, muito pelo contrário. Mas foi uma vitória de Pirro: se a ferrovia, apadrinhada por José Sarney quando presidente da República, deixou de receber os 465 milhões de reais que pretendia abocanhar, graças a uma manobra de última hora, o dinheiro acabou sendo integralmente recolhido aos cofres do tesouro nacional, para ser administrado pelo Ministério da Fazenda. Assim, foi fazer caixa para o superávit fiscal, ou será desviado para outros fins. No balanço final, a Amazônia - seja a Clássica como a dita Legal - é que saiu perdendo.

O episódio comprovou, mais uma vez, o despreparo das lideranças paraenses para se antecipar às situações e reagir com lucidez quando elas se consumam, à sua revelia. A reação começou quando o jornal O Liberal tornou público, no dia 21 de dezembro, que todo dinheiro previsto para o FDA seria aplicado nas obras da Norte-Sul. Desde 2001, a verba do fundo deixou de ter destinação normal por causa da extinção da Sudam, em dezembro de 2000.

A Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia era quem administrava o fundo, criado graças à renúncia fiscal federal (pela redução do imposto de renda a pagar em troca de aplicação da dedução tributária na Amazônia). Ao invés de financiar projetos econômicos, a verba estava sendo mandada para o tesouro nacional, deixando de ser aplicada na Amazônia.

No início de dezembro do ano passado, o senador Siqueira Campos, do Tocantins, propôs ao chefe da Casa Civil, José Dirceu, que o dinheiro do FDA fosse aplicado na Norte-Sul. A idéia recebeu o imediato apoio do senador José Sarney, em cujo governo a ferrovia foi iniciada, seis anos atrás, em meio a um escândalo sobre favorecimento de empreiteiro. Mas havia um problema: o fundo só pode financiar empreendimentos privados, que retribuem à colaboração financeira do governo cedendo ações para a Sudam. A empresa responsável pela Norte-Sul, a Valec, é da União, sob a supervisão do Ministério dos Transportes.

Reunida com o Ministério da Integração Nacional, a Casa Civil decidiu elaborar uma Medida Provisória para autorizar a ADA (Agência de Desenvolvimento da Amazônia), que substituiu a Sudam e administrará o FDA até que o processo de recriação da Sudam, iniciado em agosto do ano passado, vá além do papel e das intenções, a aplicar numa empresa pública.

Para adiantar as providências, no dia 19 a Valec Engenharia, Construções e Ferrovias submeteu à ADA uma carta-consulta solicitando 465 milhões de reais para construir mais 365 quilômetros da ferrovia, entre Darcinópolis e Miracema, no Tocantins. A tramitação do pedido ficaria condicionada à edição e publicação da MP no Diário Oficial da União. As tratativas foram interrompidas, já em pleno curso, pela revelação da iniciativa. O fato provocou reação da opinião pública paraense, estimulada por O Liberal, vivamente empenhado no assunto para atingir a Companhia Vale do Rio Doce, com a qual vem brigando editorialmente e na justiça, conforme este jornal tem noticiado. A Vale é uma das mais interessadas na sorte da ferrovia.

A senadora Ana Júlia Carepa, do PT, endossou as críticas, pediu imediatamente audiência ao presidente Lula e foi premiada com uma audiência individual, fora da agenda, no dia seguinte ao da solicitação. O presidente lhe garantiu que as providências em favor da Norte-Sul seriam sustadas, o que acabaria acontecendo, e que pleitos paraenses contrapostos a esse projeto seriam atendidos, o que ficou para depois, como de hábito. O resultado da mobilização não poderia ter outro título: uma vitória de Pirro.

Ao que parece, a senadora, intérprete da causa paraense, foi ao Palácio do Planalto com um único propósito - e de significado negativo: impedir que o dinheiro fosse aplicado na Norte-Sul. Não apresentou ao presidente nenhuma alternativa operacional, embora tivesse opções ao seu alcance. Uma delas era simples: ao invés de seguir no rumo sul, a ferrovia podia se desenvolver em seu eixo norte, vindo para Belém ao invés de prosseguir até Goiânia, ponto final da sua caminhada de 2.066 quilômetros, quando terá custado algo como 1,6 bilhão de dólares.

O ramal Açailândia-Belém está previsto, mas apenas nas linhas pontilhadas do mapa do projeto, para paraense ver. Na verdade, a Norte-Sul foi concebida para ser um elo entre a ferrovia de Carajás, que transporta minério para o litoral do Maranhão, e o sistema sul da Companhia Vale do Rio Doce (agora, em função da privatização do transporte ferroviário, conectando-se também com linhas nordestinas, inclusive a Centro-Atlântica, da mesma CVRD).

Não por acaso, a Norte-Sul foi projetada pela Valuec, empresa de consultoria da Vale do Rio Doce, criada em 1972 para tratar da ferrovia de Carajás, que se transformaria em Valec, em 1987, quando foi absorvida pelo Ministério dos Transportes, exatamente na administração Sarney.

Incorporação meio mediúnica porque, na prática, a CVRD continuou a dar as cartas. Através de terceirização, é ela quem opera os 215 quilômetros já implantados da Norte-Sul, entre o terminal de Açailândia, no Maranhão (onde se encontra com a Estrada de Ferro de Carajás, da Vale), e Estreito (40 quilômetros adicionais estão em construção). A verba da Sudam faria a Norte-Sul chegar a um tamanho maduro: 620 quilômetros de extensão.

Os planos consideram a extensão até Belém nada mais do que figura de retórica. Mas a senadora Ana Júlia poderia testá-la propondo ao presidente da República que o dinheiro fosse reservado à diretriz eminentemente amazônica da linha férrea, no rumo de Belém, e não à sua expansão para o sul, embora esta, a rigor, seja a única via pensada pelos seus idealizadores.

Se não houvesse boa acolhida, a senadora podia tentar transferir parte desse dinheiro para a complementação da transposição do rio Tocantins, na hidrelétrica de Tucuruí, que precisa de R$ 360 milhões e atravessou 2003 completamente à míngua de recursos. Candidata a permanecer inconclusa por mais um governo.

Os paraenses já deviam ter aprendido, por outros revezes, que não podem agir no varejo, por conta-gota. Precisam ter uma versão alternativa de inserção no plano que a União executa na Amazônia, contrapondo um plano a outro plano adverso, que considera o caminho para o mar da exportação e não para dentro das bacias hidrográficas.

A reação, porém, é sempre episódica, localizada, imediatista, condicionada pela iniciativa alheia. Se não colou a tentativa de aplicar na Norte-Sul os recursos do FDA, uma outra investida vai ser feita dentro de pouco tempo, por outro caminho. Não é só o modal ferroviário que tangencia o Pará: é esse o sentido também da hidrovia e até mesmo do sistema de distribuição de gás. O traçado de um enorme gasoduto que toca em todas as capitais litorâneas já está feito. No seu campo de abrangência o Pará foi deixado para o fim, se ainda houver recursos para alcançá-lo. Tanto que nem empresa autorizada a operar com o gás existe até agora.

O Pará, de fato, parou. No mau sentido. O que cabe não é continuar a perguntar por que fazem isso com o Pará, mas porque o Pará não consegue se fazer respeitar.

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