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A guerra do DNA indígena

Época, p. 84-87
06 de Jun de 2005

A guerra do DNA indígena
O Ministério Público vai pedir a devolução de 12 mil amostras de sangue ianomâmi armazenadas em universidades americanas

Eliane Brum

O procurador da República em Roraima, Marcus Marcelus Gonzaga Goulart, prepara uma ação civil pública para repatriar uma nova espécie de tesouro nacional: 12 mil amostras de sangue ianomâmi, estocadas desde os anos 60 em universidades americanas para pesquisas com DNA. Com a ação, a Justiça brasileira poderá pedir à Justiça americana, por carta rogatória, que devolva aos índios a riqueza do século XXI: o DNA. É a primeira vez que o Poder Judiciário tentará uma ação como essa. A novidade vai despertar alguns fantasmas - lá e aqui.

A decisão assinala também o novo marco em tomo do qual serão travados os embates políticos e jurídicos que envolvem as populações indígenas. O DNA - depois das terras e dos minérios - tornou-se a última fronteira da cobiça. Não por acaso, a CPI da Biopirataria do Congresso topou em abril com a oferta de material genético das etnias suruí e caritiana, de Rondônia, vendido na internet pela organização americana Coriell Institute. A guerra do DNA indígena terá outros protagonistas: não mais grileiros e madeireiros, mas cientistas, instituições acadêmicas respeitáveis e corporações multinacionais. Mas, diferentemente do passado, os pesquisadores encontram hoje lideranças indígenas experimentadas na luta pela terra, que agora barram o que consideram outro tipo de colonialismo - sobre o território do corpo.

Na pressão sobre as autoridades americanas, a Justiça brasileira conta com mais barulho lá do que aqui. Há anos lideranças ianomâmis, como Davi Kopenawa, gritam sozinhas contra o sangue retirado, sem comover nem sequer o Itamaraty. Os pedidos de providência encaminhados pelo Ministério Público Federal ao Ministério das Relações Exteriores nem ao menos foram respondidos. Mas, nos Estados Unidos, está em curso uma campanha entre estudantes universitários para bombardear as autoridades responsáveis com abaixo assinados que exigem a devolução do sangue aos índios brasileiros. Seu idealizador, o antropólogo Robert Borofsky, da Hawaii Pacific University, confia que a pressão será suficiente para entregar o primeiro lote de sangue nas mãos de Davi Kopenawa em novembro, na reunião anual da American Anthropological Association, em Washington.

A história de como o sangue ianomâmi acabou nos freezers dos departamentos de Genética das universidades americanas é cheia de chavões. No roteiro, há o clássico gringo inescrupuloso trocando ouro (leia-se sangue) por espelhinhos (facas e panelas) e semeando a discórdia entre aldeias para alcançar seus objetivos - tudo debaixo das vistas de autoridades de republiqueta de bananas (no caso os generais da ditadura). A diferença é que a dupla de exploradores americanos era formada por um figurão da Genética mundial, James Neel, morto em 2000, e pelo controvertido antropólogo Napoleon Chagnon, que escreveu um best-seller em que os ianomâmis são retratados como um povo feroz, dotado de uma espécie de gene da violência. A tese - logo desmoralizada por antropólogos renomados - causa danos à etnia até hoje e quase inviabilizou a demarcação do território. Em 1989, o então chefe da Casa Militar, general Bayma Denys, justificou a um jornalista que os índios não poderiam viver juntos em área contínua porque, sendo tão violentos, teriam de estar separados para ser "civilizados". Em 1995, Chagnon ainda tentou coletar sangue no Brasil, mas não obteve autorização. Da Venezuela, onde vive uma parcela significativa da etnia, ele foi expulso. ÉPOCA não conseguiu contato com o antropólogo, hoje aposentado.

Neel e Chagnon, porém, não andavam sozinhos pela Amazônia. Na semana passada, o procurador Marcus Marcelus solicitou a colegas do Rio Grande do Sul e do Pará que tomem oficialmente o depoimento de dois de seus colaboradores no Brasil: Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e Manuel Ayres, da Universidade Federal do Pará. "O depoimento deles vai ajudar a traçar o destino do sangue ianomâmi nos Estados Unidos", diz Marcelus. Por enquanto, apenas a Universidade Estadual da Pensilvânia admitiu oficialmente que possui uma parte das amostras e indicou outras três instituições: as universidades de Michigan e Emory, além do Instituto Nacional de Câncer de Maryland. O procurador requisitou à Funai a documentação sobre todas as andanças de pesquisadores em busca de sangue indígena nas últimas décadas. "O que aconteceu foi um crime cultural praticado por cientistas e acadêmicos com o aval da Funai", diz Marcelus. "Agora vamos precisar contar com a boa vontade das autoridades americanas, já que não podemos fazer exigências em outro país. Apenas pedir."

Salzano e Ayres escreveram uma parte da história da Genética no Brasil. Aos 80 anos, aposentado, Ayres diz que nunca esteve em campo com Neel e Chagnon. "Só examinei amostras do sangue para ver o grupo sanguíneo, mas em Belém", diz. Salzano, de 76 anos, é uma lenda em plena atividade e um dos maiores especialistas do mundo na área do DNA indígena. "Fizemos tudo dentro da lei e da ética, autorizados pela Funai e pelo CNPQ. Só doaram sangue os índios que quiseram. Não teve nada de biopirataria", rebateu. "É preciso ter muito cuidado ao considerar válidas solicitações como essa (de repatriação do sangue). Há limites para a aceitação de crenças, especialmente se elas atingirem a investigação científica em benefício de toda a humanidade."

Para os ianomâmis, segundo o antropólogo francês Bruce Albert, recuperar o sangue dos mortos é a única garantia de felicidade para os vivos. Albert é diretor do Institut de Recherche pour le Développement e um dos mais respeitados estudiosos da cultura da etnia, com a qual convive desde 1975. Quando um ianomâmi morre, é preciso eliminar os vestígios de sua existência. Não apenas o corpo e os ossos - cujas cinzas são comidas ou enterradas numa festa ritual -, mas os rastros mais sutis. Sua mulher e filhos têm parte do cabelo cortada porque o morto passou a mão sobre a cabeça, sua roça é destruída, as pontas de flecha que deixou cair na mata são rastreadas e até a terra debaixo da rede, pisada por seus pés, é raspada. Tudo para que o morto não volte. Só assim os vivos poderão ser libertados do luto. Do contrário, a melancolia acabará por levá-los à morte. Neste contexto, é possível imaginar o horror dos ianomâmis quando descobriram que milhares deles não foram devidamente sepultados. Por mais exótico que pareça aos olhos de um cientista da Pensilvânia, para um ianomâmi o tubinho de sangue conservado em hidrogênio líquido ameaça a separação entre o mundo dos mortos e o dos vivos.

A discussão se assemelha a diversas outras nascidas do avanço da Genética. Companhias farmacêuticas, nos últimos anos, têm pedido - e muitas vezes conseguido - patentes sobre genes humanos. Muitas delas foram obtidas através de recolhimento de material genético de doentes, que se submeteram a tratamentos experimentais sem saber que, em troca, renunciavam a qualquer direito sobre o uso do DNA. Em 2003, o escritório europeu de patentes revogou o registro concedido a uma empresa americana que havia patenteado qualquer uso terapêutico de células de cordão umbilical.
Em abril, a antropóloga Debora Diniz, referência internacional em Bioética, apresentou o caso ianomâmi nas Filipinas, em evento promovido pelo National Institutes of Health dos Estados Unidos para debater as grandes questões da Bioética com profissionais de saúde de toda a Ásia. "Não se deve entender o caso do sangue ianomâmi como um impasse entre valores culturais e Ciência, mas como um exemplo de como os cientistas ainda são pouco preparados para o diálogo intercultural e de como a Ciência se comporta autoritariamente diante de populações vulneráveis", diz.

Os abusos de Neel e Chagnon em campo foram denunciados pelo jornalista americano Patrick Tierney, em 2000, no livro Trevas no Eldorado. Parte das acusações se mostrou improcedente, como a de que haviam causado uma epidemia de sarampo na comunidade. Mas foi pelo livro que os ianomâmis descobriram que o sangue dos antepassados estava do outro lado do mundo. Essa história é contada com competência no documentário Napêpê, de Nadja Marin. Até hoje, os objetivos exatos da coleta de sangue são nebulosos. Um deles era o estudo das relações entre estrutura genética e doenças, assim como o povoamento do continente. Outro, segundo relatório do antropólogo Jankiel de Campos, assessor da Procuradoria da República, era comparar os efeitos da radiação em sobreviventes das bombas de Hiroshima e Nagasaki com material genético de povos que nunca haviam sido submetidos à radiação artificial - no caso, os ianomâmis. O estudo de US$ 2,5 milhões foi financiado pela Comissão de Energia Atômica do governo americano.

Traumas como o dos lanomâmis assombram o futuro das pesquisas com DNA indígena. Não é à toa que o ambicioso Projeto Genográfico, financiado por IBM e National Geographic, tem sido bombardeado desde o lançamento, em abril. O objetivo de estudar o DNA de 100 mil indígenas em busca da origem do homem está ameaçado pela nova realidade política. "Estamos usando nossas extensas redes de comunicação junto aos povos indígenas numa campanha global para boicotar o projeto", disse a Época Debra Harry, diretora da Indigenous Peoples Council on Biocolonialism. "Muitos indígenas acreditam que o material genético possui força própria e sua manipulação é uma dessacralização desse espírito. Não estamos interessados em participar", diz.

Um dos dez centros mundiais do Projeto Genográfico foi instalado no Brasil, na Universidade Federal de Minas Gerais, na tentativa de vencer a desconfiança indígena. Se já vai ser difícil convencer as lideranças a deixar seu sangue num laboratório de Belo Horizonte, imagine persuadi-las a despachá-lo para os EUA. "Entendemos a desconfiança devido às experiências com as pesquisas médicas do passado. Mas nosso projeto é histórico. Jamais teremos uma atitude colonialista", diz o coordenador da pesquisa na América do Sul, o geneticista Fabrício dos Santos. "O sangue ficará no país. Tenho convicção de que com o tempo vamos vencer a resistência."

Para ativistas como Debra, esse dia nunca chegará: "Casos como o dos ianomâmis nos ensinaram que não temos controle do sangue depois que ele sai de nossas veias." O futuro das relações entre os cientistas e os povos indígenas passa pelo desfecho do caso ianomâmi.

Entrevista
Campanha na rede

O Universitários americanos vão exigir a devolução do sangue ianomâmi antropólogo Robert Borofsky lançou, no início do ano, um livro-provocação: Yanomami - A Controvérsia Feroz e o Que Podemos Aprender com Ela. Nele, sete especialistas discutem o caso do sangue ianomãmi e a ética na Antropologia. No segundo semestre, Borofsky vai lançar uma campanha pela internet que envolverá milhares de universitários num lobby pela devolução do sangue. Em novembro, ele acredita que conseguirá - pela pressão - a entrega do primeiro lote. Confira a entrevista.

Época - Como a campanha funciona?

Robert Borofsky - Vamos envolver entre 2 mil e 4 mil estudantes do Canadá e dos Estados Unidos. Já testamos o software e os alunos ficaram entusiasmados com seu potencial político. Funciona assim: primeiro os universitários escrevem cartas a um dos responsáveis pelo estoque de sangue. Depois, as três melhores são eleitas e todos as assinam. Em vez de bombardear os responsáveis com emails, eles vão receber um abai xo-assinado com milhares de assinaturas. A campanha oferece aos estudantes uma maneira concreta de ação. Se a pressão pública não fizer sua parte, as universidades vão continuar a estocar o sangue porque consideram que - apesar dos métodos eticamente condenáveis do recolhimento - as amostras serão úteis no futuro.

Época - O senhor acredita na devolução?

Borofsky - Uma das estratégias de que os oponentes da devolução se utilizam é dizer que é difícil precisar de onde foi coletado o sangue e de quais indivíduos. Para enfrentar essa estratégia, nós vamos pleitear que a devolução se dê especificamente para a comunidade toototobi,já que possuímos uma requisição de seu líder. Acredito que as amostras de sangue em poder de Ken Weiss, na Pennsylvania State University, serão devolvidas aos ianomâmis. Espero ainda que os estoques de sangue em poder de Andrew Merriwether, na State University of New York, em Binghamton, sejam igualmente devolvidas. Será sempre uma questão de descobrir a localização das amostras e de pressionar os responsáveis por elas. Eu espero que o sangue estocado no laboratório de Ken Weiss seja publicamente devolvido a Davi Kopenawa quando ele vier aos Estados Unidos, em novembro, no encontro da American Anthropological Association.

Época - 0 que podemos aprender com a controvérsia ianomâmi?

Borofsky - Existem profundas questões éticas que habitam o coração da Antropologia e que raramente são encaradas. Como o fato de estudiosos do Primeiro Mundo edificarem carreiras acadêmicas sobre o conhecimento obtido a partir de populações do Terceiro Mundo sem que elas recebam qualquer benefício em troca. Por isso é tão importante mobilizar estudantes a formar lobbies políticos em prol de mudanças ainda na universidade.

Batalha Borofsky faz seu lobby pelo site www.publicanthropology.org

Época, 06/06/2005, p. 84-87

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