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Guaranis: terra vermelha

National Geographic - http://viajeaqui.abril.com.br
Autor: Nadia Shira Cohen
02 de Ago de 2013

Eles acreditam ter uma ligação espiritual com o lugar em que seus antepassados viveram. No Mato Grosso do Sul, essa crença há décadas banha de sangue o território indígena

O sangue nas roupas do corpo de Denilson Barbosa, atravessado na estrada crestada de sol, encharca ainda mais a terra que já é vermelha por natureza. A bala na cabeça não deixa dúvida: ele está morto. É assim que o cacique Leonardo encontra o menino de 15 anos.

Na companhia do irmão, Denilson havia saído logo cedo na manhã do dia anterior, em fevereiro deste ano, para pescar no riacho que separa a reserva indígena onde vivia, a Teykue, da fazenda Santa Helena, no município de Caarapó. O pequeno curso d'água fica no limite da reserva. Os rapazes, atrevidos, costumam lançar seus anzóis ali para apanhar alguns peixes, como o pintado, fonte de proteína que serve para incrementar as refeições da família. Mas dessa vez é diferente. Sem outro motivo apurado senão a pesca, Denilson transpôs a fronteira e prosseguiu até um lago artificial, encosta abaixo, além da casa do fazendeiro. Apesar da violência histórica que assola as disputas pelas terras indígenas no Mato Grosso do Sul, ninguém na reserva Teykue esperava acordar diante daquela pavorosa realidade.

A notícia correu logo: o garoto foi baleado pelo próprio dono da área. O agricultor Orlandino Carneiro Gonçalves alegou que o menino estava pescando em seu tanque e invadira sua propriedade muito fora dos limites da reserva. Então, sacou sua espingarda calibre .22 e, por causa de um peixe, tirou a vida do garoto. Confessou o crime e responde ao processo solto, em Caarapó, em mais um episódio mal resolvido - no Brasil, as questões fundiárias há décadas estão na origem da crescente violência entre proprietários de terras e povos indígenas.

O corpo de Denilson jaz agora a metros do lugar onde ele foi morto. Um monte de terra marca o local, encimado por uma cruz singela de madeira. Amigos e parentes aparecem com frequência para rezar e se comunicar com seu espírito. Os índios se mobilizaram depressa e, em sinal de resistência, ocuparam a fazenda do assassino, batizando-a, em sua língua, de tekoha Pindo Roky (tekoha é como os guaranis costumam chamar as terras que são retomadas por eles). Alguns índios ergueram choças de madeira e telhado de sapê para morar, mas outros dormem nos aposentos de Orlandino e preparam panelões de arroz e feijão na cozinha da casa. De calça jeans e cocar de penas, adolescentes munidos de arco e flecha - eles me lembram uma insólita mistura do rapper americano Jay Z com um guerreiro tribal - vagam a esmo pela propriedade. São o que parecem ser: jovens confusos. Pintar o rosto para uma batalha aleatória talvez dê a eles um sentimento de identidade.

O que se vê na casa ocupada é sintomático: os guaranis estão acostumados com certas conveniências. Hoje, lutam pela modernidade. Viver da terra é coisa do passado, argumentam os jovens, das histórias que seus avós lhes contam sobre o tempo em que caçavam macacos e pescavam para comer nas matas que cobriam quase todo o sul do então estado do Mato Grosso. A comida agora vem na cesta básica subsidiada pelo governo federal: arroz, feijão, macarrão, sal, açúcar, café e erva-mate para o chá. Quem pode complementa com puxero, osso de boi, vendido a 2 reais o quilo. São produtos que garantem a subsistência, se tanto, mas que também indicam um legado de dependência - uma condição arraigada demais na história desse povo.

Os guaranis foram um dos primeiros grupos indígenas a entrar em contato com os europeus tão logo desembarcaram na América do Sul, há mais de 500 anos. O território tradicional desses nativos abrangia grande área do Paraguai, o sul do Brasil e as províncias argentinas de Corrientes e Entre Rios, assim como partes do Uruguai e da Bolívia. Hoje, a população guarani, de pouco mais de 250 mil indivíduos (cerca de 35% da população original), distribui-se quase toda pela mesma região, dividida em três grandes grupos tribais: Kaiowá, Ñandeva e M'byá. O Kaiowá ("Povo da Floresta", na língua nativa) é o mais numeroso. Dos 60 mil guaranis que vivem em Mato Grosso do Sul, 50 mil são kaiowás. Como esse povo não conhece a escrita, e transmite suas tradições pela memória oral, há poucos documentos que registrem seu passado. Sabe-se, porém, que eram, em parte, nômades, muito ligados à natureza e à terra, tanto na luta pela sobrevivência como em termos espirituais.

Na colonização do Novo Mundo, duas linhas de pensamento prevaleceram sobre o que fazer com a imensa população de índios que ocupava terras prontas a serem habitadas e exploradas. Uma delas preconizava a eliminação, como ocorreu na América do Norte. Os portugueses, mais amistosos, escolheram a colonização. A ideia era simples: convertê-los ao cristianismo.

No começo do século passado, a tribo Guarani foi transferida de suas numerosas aldeias nas florestas do Mato Grosso e confinada em exíguos espaços delimitados pelo poder público. Entre 1918 e 1928, o governo criou nove reservas indígenas. Missionários se empenharam em transformar o modo de vida básico dos índios para que pudessem adotar um estilo de vida mais colonial. A iniciativa foi infrutífera: obrigar vários líderes a viver lado a lado causou frequentes disputas pelo poder e aumentou a violência nas reservas, uma tendência presente ainda hoje. Parte dos guaranis simplesmente foi embora: voltaram para a terra que pertencera a seus pais e avós. Muitos foram remunerados com sal e açúcar para derrubar a mata que sempre haviam chamado de lar e assim dar lugar às crescentes pastagens.

O governo loteou as terras a colonos para que povoassem a fronteira com o Paraguai, região vulnerável e problemática que foi cenário da Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870 - até hoje, o maior conflito armado internacional travado na América do Sul. Quando os fazendeiros passaram a cercar suas propriedades e expulsar os índios, os atritos começaram. Chegou então o "gado bravo" (como os guaranis chamam os rebanhos bovinos), e, aos poucos, os bois foram ocupando o lugar dos guaranis. Nos anos 1970, resistindo à colonização, os próprios guaranis criaram outras reservas. Houve casos, como o da aldeia Paraguaçu, na cidade de Paranhos, em que os índios voltaram oito vezes depois de serem expulsos pelo Exército.

A questão tornou-se ainda mais complexa quando o governo brasileiro reconheceu o direito dos povos indígenas a suas terras ancestrais, e, em 1988, incluiu na Constituição uma lei para que elas fossem demarcadas no prazo de cinco anos. Em seguida, porém, longos embates jurídicos ocorreram em torno do entendimento de que a nova lei valia apenas a áreas efetivamente habitadas por índios naquele momento. Até que, em 1993, foi julgada improcedente uma ação pela posse na reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, uma área de 1,7 milhão de hectares disputada por várias tribos, entre elas a Ingaricó, a Macuxi e a Uapixana. A ação requeria que, para que a terra fosse considerada dos índios, eles deveriam tirar seu sustento dali - exceto se tivessem sido removidos à força por não índios, ponderou o juiz. Esse caso revolucionário não apenas abriu as comportas para uma enxurrada de reivindicações no país inteiro como também ressaltou o fato de que o próprio governo federal havia removido muitos povos de suas terras ancestrais. No caso dos guaranis, ainda não se falou em indenização para os fazendeiros que tinham a posse das áreas. O impasse gera incessantes conflitos, com pistoleiros patrulhando os limites das fazendas para protegê-las de eventual invasão.

Vários acampamentos surgiram por causa da resistência de fazendeiros à ocupação. Via de regra, a vida dos guaranis nessas áreas é dura, sem água corrente ou eletricidade. "Isso aqui era tudo floresta", recorda-se Elena Benite, de 55 anos, ao lado de um toco de árvore defronte a sua choça, apontando para um pasto. Lembranças inundam sua mente, e um sorriso aflora em seus lábios. "A gente comia goiaba, jabuticaba. Meu pai caçava tatu e paca. Nunca nos sentíamos pobres, porque éramos felizes." Elena, seu marido, Jamon, e cerca de 50 outras famílias protagonizaram a retomada de Puelito, uma pequena reserva de mata rodeada por um rio em meio a intermináveis hectares de pasto. O grupo de guaranis está ali há sete anos, esperando que ela seja delimitada e homologada. As crianças não vão mais à escola agora distante. Também ficou difícil receber a cesta básica. Há escassez de água potável. Embora um juiz tenha dado parecer contrário à retomada, os guaranis, decididos, permanecem lá, depois de ter enviado ao governo federal uma carta garantindo que lutarão "até a morte".

Encontro Dácio Queiroz Silva em sua fazenda, a Fronteiras, na orla da cidade de Antônio João, bem perto da divisa com o Paraguai. Ele cria touros de raça para reprodução. O fazendeiro é tudo o que eu imaginava de um personagem como ele - e, ao mesmo tempo, não é nada daquilo. Ele desce de seu 4x4 Mitsubishi Triton estralando no chão as botas de caubói. De chapéu de feltro preto, Queiroz Silva atroa a varanda com sua voz de barítono. Na casa simples, não se vê vestígio de luxo; pelo contrário, a impressão é de que o mobiliário não é renovado há muito tempo. "Já são 15 anos de conflitos pela minha terra", declara ele. "Tenho vivido na incerteza. Minha propriedade decaiu, se desvalorizou. Não vou esperar mais."

Em 1998, um grupo de guaranis invadiu e ocupou a Fronteiras e outras fazendas vizinhas, entre elas a Cedro, a Barra e a Morro Alto. Quando chegaram, de arco e flecha em punho, a mensagem era clara: tinham ido para ficar. Montaram acampamento na Morro Alto, com permissão do proprietário, e ali estão, à espera de que a demarcação seja oficialmente homologada para que possam retomar as terras que acreditam ser de seus ancestrais. Queiroz Silva não tem a mesma opinião, e contratou uma equipe de advogados e pesquisadores para refutar a teoria dos índios. Hilário Rosa, antropólogo da Universidade do Sagrado Coração, em Bauru (SP), é um deles. Rosa tem uma teoria dos guaranis que contradiz a maioria dos estudos modernos sobre esse povo: os índios vieram do Paraguai e atravessaram a região do atual Mato Grosso do Sul ao se dirigir para a Amazônia, no norte. Nunca chegaram a seu destino. Queiroz Silva, que por duas vezes foi prefeito de Antônio João, garante que suas terras não são indígenas, e insiste em receber, no mínimo, uma indenização em valores de mercado.

Para muitos especialistas que priorizam o desenvolvimento econômico do país, Queiroz Silva e outros fazendeiros deveriam ser deixados onde estão - trabalhando e produzindo novos recursos. Afinal, o Brasil é o maior exportador de soja no mundo, e o segundo maior de carne bovina. Outro argumento é o de que as terras indígenas já representam 12% do território do Brasil (uma área equivalente à da França), enquanto as faixas produtivas destinadas à agropecuária assomam 21%.

Tal posição pressupõe que, se as terras forem devolvidas aos guaranis, serão usadas de modo improdutivo. Nossa sociedade romantiza os índios. Tendemos a achar que os guaranis querem voltar a sua terra ancestral, e plantar árvores de novo para que os animais selvagens retornem e eles possam então viver em choças, caçar o dia inteiro e rezar à noite vestidos com penas. Não é bem assim. "Você andaria por aí trajado como Pedro Álvares Cabral em 1500?", pergunta Tonico Benites ao fotógrafo Paulo Siqueira, que me acompanha. Benites é guarani e leciona antropologia na Universidade Federal de Dourados. "Ter celular e computador me torna menos índio? Estamos evoluindo junto com a sociedade moderna, como qualquer outro grupo étnico", diz ele, enquanto tomamos um café em meu hotel na cidade. Se não há mais florestas nem animais, como os guaranis pretendem utilizar as terras? "Queremos viver como fazendeiros", responde Benites. "Os índios sempre ouviram que não são capazes de fazer o que faz o homem branco. Mas disso nós sabemos: plantar e colher."

Os moradores da tekoha Kurusu Ambá, uma área que os índios ocuparam no município de Coronel Sapucaia, contam outra história. Cocares de penas adornam as cabeças, e uma prece tem início quando a van que nos conduz estaciona. Eles aparentam querer exibir que sua herança ancestral é merecedora da terra pela qual estão lutando. Mas, dez minutos após nossa chegada, tiros de revólver ecoam na aldeia improvisada. Olho em volta à procura de Paulo, e só consigo entrever sua camisa vermelha fulgurando em velocidade pela mata. Se Paulo está correndo, devemos ter problemas, penso. De fato, nos vemos diante de uma tentativa de homicídio motivada por uma rixa de família: no meio de uma bebedeira, o guarani conhecido como Osório sacou uma arma para matar o membro de uma família rival. Chegou a atirar, mas acabou sendo atingido na cabeça por um porrete de madeira. Violência e alcoolismo grassam nas reservas, fermentados pela mistura inflamável de vários líderes tribais confinados em um espaço pequeno.

Uma mulher, que não quer revelar seu nome por medo de represália, há alguns anos planta frutas e verduras e mantém um pequeno negócio no pedaço de terra que lhe coube na reserva. É honesta, laboriosa, e emprega jovens da terra, apesar de os ladrões terem saqueado sua plantação. O que ela anda vendo por lá "não é nada bom", diz. "Um cacique é beberrão, outro estuprou uma mulher. Mesmo que as terras sejam devolvidas, as coisas vão continuar assim." Ela acha que seu povo se tornou dependente demais dos alimentos subsidiados e da proteção de entidades como a Fundação Nacional do Índio (Funai). Uma ambulância comum não pode sequer atender a uma emergência em reserva ou terra indígena, pois isso é da alçada exclusiva da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

A Funai foi criada, em 1967, para substituir o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), organização que nasceu com ideais elevados e o objetivo de proteger a população indígena do Brasil e dar-lhe assistência médica, mas acabou extinta depois que uma comissão de inquérito apontou várias atrocidades contra as tribos sob a tutela do órgão. Enquanto dormimos na tekoha Pindo Roky, uma viatura da Polícia Federal vem várias vezes fazer a ronda e ver se está tudo bem na tribo. Os policiais foram enviados pela Funai, atendendo a um pedido da tribo, que diz não se sentir segura na terra ocupada. Fico surpresa com a eficiência da ação, mas nem sempre o poder público pode estar presente. Onde estava ele no dia da morte de Denilson? E no final do ano passado, quando uma jovem foi estuprada por oito homens no município de Iguatemi?

Para o antropólogo Rubem T. Almeida, que trabalha com os guaranis há anos, a Funai ainda é vital na luta pela regularização das reservas. "A Funai é o único caminho legal para a demarcação das terras indígenas", diz. Almeida reclama que, nos últimos anos, o governo federal parece querer esvaziar o órgão, de encontro aos interesses do agronegócio. "As atitudes oficiais recentes não favorecem a solução dos problemas fundiários de 50 mil guaranis no Mato Grosso do Sul. Podemos perder a oportunidade de dar solução a um problema que perdura há décadas, e que sempre foi deixado de lado por governos anteriores."

Como o conflito continua e se agrava cada vez mais, parece haver apenas um horizonte possível para guaranis e fazendeiros: indenizar, e não expropriar. Isso significa que os pecuaristas devem receber uma compensação pela perda de sua propriedade e de seu negócio quando a devolução das terras for homologada.

"Se o governo devolver a terra aos índios, tudo bem, me indenizem pelos prejuízos, e irei montar meu negócio em outro lugar", diz Dácio Queiroz Silva. O pai dele, Pio Silva, de 98 anos, comprou os 3 mil hectares de terras onduladas em 1956 (mais tarde adquiriu outros 1 500 de um vizinho), depois de trabalhar por 20 anos como capataz de uma fazenda em Minas Gerais, onde nasceu. Chamou seu novo recanto de Fronteiras, por causa da proximidade com o Paraguai. Trouxe 300 bois de trem desde Minas Gerais até Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, e o resto dos quase 300 quilômetros percorreu a pé com seu gado. Hoje possui 3 mil cabeças, e sua propriedade é avaliada em 40 milhões de reais (sem calcular o gado e o maquinário). Pio, um homem do tempo em que se vivia sem gêneros básicos, como sal e açúcar, é, em todos os aspectos, a representação perfeita do sonho colonial brasileiro, um self-made man que ascendeu de origens simples. No fim de um giro pela fazenda, seu filho Dácio se vira, aponta na direção de sua casa e diz, sem tremer a voz: "Quando nasci e meu cordão umbilical caiu, minha mãe o enterrou naquela árvore atrás da casa. Por isso, pode dizer àqueles caciques que a luta vai ser dura".

http://viajeaqui.abril.com.br/materias/guaranis-conflito-terra-indigena…
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