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Guaranis da megalópole

Carta Capital, Especial, p.10-15
Autor: LOBO, Flavio; PESSOA, Igor Bier
11 de Fev de 2004

Guaranis da megalópole
Uma aldeia encravada na maior cidade do País celebra a força de suas crenças e a perpetuação de tradições milenares.
Por Flavio Lobo e Igor Bier Pessoa

No Domingo 25 de Janeiro de 2004, cerca de um milhão e meio de pessoas aglomeraram-se na avenida 23 de Maio para, comemorar os 450 anos de São Paulo. No mesmo dia, a 15 quilômetros dali, outro grupo, 10 mil vezes menor, preparava outra celebração num cenário bem diferente. Numa estreita faixa de terra de menos de um alqueire, entre eucaliptos, pequenas roças de milho, casebres e árvores esparsas, os índios guaranis da aldeia Tekoá Pyau preparavam, desde as 9 horas da manhã, os alimentos tradicionais para o ritual milenar do Nhe-mongaraí, o batismo guarani, que começaria ao pôr-do-sol, atravessaria a madrugada e seria, pela primeira vez, registrada por um fotógrafo profissional.
Os contrastes entre os dois rituais ajudam a contar a história da cidade e do País. Em seus quatro séculos e meio de existência, São Paulo passou de um vilarejo de pouco mais de cem habitantes à terceira megalópole do planeta. Um verdadeiro big-bang populacional, fenômeno inverso ao ocorrido, ao longo do mesmo período, com os guaranis.
De acordo com o Instituto Socioambiental, estima-se que, no século XVI, a população indígena, dentro do território que hoje corresponde ao Brasil, chegava a algo entre 2 milhões e 4 milhões. Hoje eles são cerca de 370 mil no País, sendo 34 mil guaranis, dos quais pouco mais de mil vivem no município de São Paulo, distribuídos em quatro pequenos territórios, três dos quais reconhecidos pela Funai.
Representantes de uma cultura que dependia basicamente da caça, da pesca e da coleta de alimentos, os atuais "guaranis paulistanos", confinados em pequenos territórios de parcos recursos naturais, dão um impressionante exemplo de resistência cultural.
Impossibilitados de manter sua relação tradicional com a natureza e, ao mesmo tempo, com pouco acesso a benfeitorias urbanas e facilidades tecnológicas típicas da grande sociedade à sua volta, eles lutam para preservar sua língua, cultura, religião e as formas de organização social e política que herdaram dos antepassados.
Luta cujo cenário mais improvável e dramático é a aldeia Tekoá Pyau. Localizada no sopé do pico do Jaraguá, é limitada ao sul por uma rua, a oeste pela estrada turística do Jaraguá. Ironicamente, ao norte, a aldeia faz fronteira com o terreno de um vizinho português e, a leste, com a rodovia dos Bandeirantes. Trata-se da mais nova aldeia do município, com suas terras ainda em processo de reconhecimento pela Funai. É também, aparentemente, a que se encontra em situação mais precária, devido à exigüidade do território, à falta de recursos naturais e à localização em área urbana.
Vista de fora - tanto do ponto de vista geográfico quanto cultural - a aldeia se parece com uma pequena favela, como tantas outras. Impressão que só intensifica a surpresa dos visitantes que recebem a permissão de entrar e descobrem uma espécie de mundo paralelo, anexo à grande cidade.
E a surpresa aumenta quando se sabe que a aldeia, que hoje reúne 49 famílias, não pára de crescer. Parentes de outras aldeias do Estado de São Paulo, e mesmo do Paraná, onde os territórios são muito maiores e a terra cultivável, vêm buscar refúgio em Tekoá Pyau. O motivo desse poder de atração é a força espiritual do pajé da tribo, hoje considerado um dos mais fortes de toda a nação guarani, que se estende desde a Argentina até o Espírito Santo, além da Bolívia e do Mato Grosso do Sul.
José Fernandes Soares Karaí Poty é conhecido entre os seus como Guirá Pepó, que significa Asa de Pássaro. Aos 6o e poucos anos (ele diz nem saber onde nasceu), o pajé viaja freqüentemente a outras aldeias para celebrar cerimônias ou simplesmente para reforçar, com sua presença e palavra, o esforço de perpetuação da sua cultura. Sempre carinhoso com as crianças, o pajé não tem a mesma disposição com as infindáveis e repetitivas perguntas dos juruás (não índios) que visitam a aldeia.
Ao celebrar um batismo - rito em que a sociedade reconhece e acolhe um novo indivíduo, mais um continuador de suas tradições - no dia 25 de janeiro de 2004, a aldeia Tekoá Pyau, sob a liderança de Guirá Pepó, reafirma sua integridade, cinco séculos após a invasão européia e apesar dos 45o anos de fundação da "Capital Bandeirante".
Tekoá Pyau não é, evidentemente, um reduto de absoluta pureza cultural - algo impraticável, dado que a antiga relação dos guaranis com a natureza não pode ser reproduzida nas atuais condições. Hoje, eles usam jeans, camisetas do Corinthians, das últimas eleições ou dos Power Rangers. Alguns batalham por empregos, doações ou projetos em parceria com órgãos públicos ou ONGs. Há os que transitam pela aldeia com telefones celulares.
Mas ainda fumam o cachimbo petykoó (pronuncia-se petenguá), falam a mesma língua de seus antepassados, crêem no mito da Terra sem Males - onde ninguém adoece ou morre, onde a natureza é sempre abundante e as crianças crescem felizes - e contam com as bênçãos de Nhanderú Tênondé, divindade máxima do panteão guarani. (Quando a presença de Nhanderú entre os homens era regra e não exceção, diz Antonio Carlos Karaí Mirin de Lima - professor, historiador, liderança guarani e articulador hábil entre dois mundos -, "os nossos corpos eram rarefeitos".)
Em dias comuns, a vida corre pacata na aldeia. As crianças, que são muitas (a média é de três filhos por casal), brincam por toda a parte. Alguns homens e mulheres produzem artesanato, que depois é vendido na praça da Sé, ou outro ponto de comércio popular da cidade. Outros ficam placidamente sentados à porta de suas casas fumando seus petykoás. Mulheres cozinham sobre fogueiras no terreiro em frente às casas. Falam muito, sempre em guarani (muitos não compreendem bem o português), e riem com uma freqüência e desenvoltura que, aos olhos de um juruá, contrastam com as precárias condições de vida na aldeia.
Muitos têm rádios, mas o som eletrônico mais ouvido em Tekoá Pyau é o das televisões, presentes em mais de 2o das 34 casas da aldeia, e freqüentemente sintonizadas em noticiários, novelas e programas de auditório.
0 dia do Nhe-mongaraí, o rito mais importante do calendário guarani, é especial, e diferente. De manhã, homens, mulheres e crianças dividem-se nas tarefas de preparo de pamonhas, bolos de milho (bodiapé) e de trigo (xipá), batatas-doce (jety), carnes e o cauinjú, bebida feita à base de milho. Impressiona o contraste da forma tradicional de preparo com o uso de alguns utensílios "modernos", como panelas e escorredores de alumínio.
"O Nhe-mongaraí já mudou muito. Antigamente, durava vários dias, mas todas as aldeias guaranis mantêm a celebração do batismo", conta Karaí Mirin.
Na cerimônia, as crianças são batizadas pelo pajé, que, segundo a crença, recebe os nomes invocando as forças do universo relacionadas àquele espírito. Os já batizados são benzidos, renovando seus votos e sua crença na busca pela Terra sem Males. "Hoje, entretanto, essa procura é muito mais uma busca interna por paz e harmonia do que por um território mítico", explica Karaí Mirin.
Velas rústicas são confeccionadas especialmente para o ritual. A luz de cada vela representa a união do espírito de uma pessoa que será batizada ou benzida com o cosmo. Alguns não índios que mantêm relações de amizade com a tribo ou desenvolvem algum tipo de trabalho na comunidade são convidados à cerimônia e podem também receber seus nomes sagrados no idioma guarani.
Todo o preparo para o Nhe-mongaraí acontece dentro do opy (pronuncia-se opã), a casa de reza, feita de pau-a-pique e coberta de telhas de barro, onde, todo fim de tarde, os guaranis se reúnem para rezar. O interior é espartano: chão de terra batida, algumas tábuas servem de assento nas laterais e, na parede do lado leste, o altar guarani - uma cruz de madeira adornada com penas e vários objetos sagrados.
Ao fim da tarde, as mulheres varrem cuidadosamente o chão do opy, enquanto o pajé Guirá Pepó e seu assistente, Mário, terminam de preparar o altar e o ambá, recipiente de madeira cheio de cascas de cedro e água para o batismo.
O pajé Guirá Pepó separa os adornos que usará durante a cerimônia e pede para ser fotografado. Durante as fotos, olha fixamente para o fotógrafo e faz um discurso sobre as atrocidades cometidas pelos juruás contra seu povo. Salienta que o Nhe-mongaraí não é festa, é ritual sagrado de resistência e comunhão.
Quando o pôr-do-sol se aproxima, toda a aldeia começa a dirigir-se à casa de reza. As pessoas vão chegando aos poucos, os mais velhos sentam-se ao fundo, na parede oposta ao altar. Conversam, baforam o petykoá e tomam chimarrão.
Os jovens pegam os instrumentos, o violão, a rabeca e o m'baraká mirin (chocalho) e começam a entoar os cânticos tradicionais, acompanhados do coro das crianças que invoca Nhanderú. O som lembra algo entre uma ladainha e um mantra. A fumaça dos petykoás envolve tudo em uma bruma espessa. Sem abalar a atitude reverente dos adultos, as crianças correm e brincam dentro do opy.
No início da cerimônia, homens e mulheres, em filas separadas, dançam em passos miúdos ou correndo em círculos pelo centro do opy. O pajé puxa a reza numa voz tonitruante. Todos dirigem-se, em algum momento, aos pés da parede do altar onde sopram a fumaça do petykoá sobre o altar e os objetos sagrados.
A fumaça é o veículo dos espíritos, simboliza a bênção, a cura, a troca e a renovação. Envoltos por ela, os corpos, como que novamente rarefeitos, ignoram as roupas modernas e a megalópole que os cerca.
Após algumas horas, Guirá Pepó, com o violão colado à face banhada de suor e o braço apontando o céu, parece ressoar com o instrumento. O chão de terra vibra com a batida dos pés dos índios em transe.
Aparentemente exaurido, o pajé põe de lado o violão e começa a fazer um longo e inflamado discurso em guarani sagrado, linguagem só compreendida pelos iniciados. Ao final, o coro das mulheres e crianças faz, em timbre agudo, uma reverência ao pajé e às divindades. A música recomeça e as velas produzidas à tarde são fixadas ao altar pelos pajés de acordo com um intrincado padrão. Vários homens incumbem-se de acendê-las.
Guirá Pepó retira-se para um canto. A música não pára, mantendo o ritmo da cerimônia. O assistente Mário permanece por quase uma hora à frente do altar zelando pelas almas ali representadas e atirando ao chão as velas que estão prestes a se apagar.
Quando a última vela é atirada ao chão, a filha do pajé, acompanhada de outras mulheres, retira o ambá de seu pedestal e caminha com ele em círculos pelo opy. Mães e pais com suas crianças no colo formam uma fila, seguidos das demais mulheres e dos homens. Guirá Pepó levanta-se, coloca novamente seus adornos e começa o batismo propriamente dito.
O pajé posta-se à frente do ambá e, com a infusão de cedro, unge a cabeça das crianças, dando-lhes seu nome sagrado. Repete o mesmo com os adultos, sempre ao som dos cânticos de louvor. Perto das 3 da manhã, alguns índios e todos os juruás, exaustos, começam a deixar o opy.
Fora da casa de reza, as lâmpadas do pátio e o barulho contínuo do tráfego da rodovia dos Bandeirantes ajudam os que acabaram de testemunhar e participar do Nhe-mongaraí a retornar ao Terceiro Milênio da Era Cristã. Mas com as roupas impregnadas do cheiro de tabaco, os ouvidos cheios de sons ancestrais e o testemunho do renascimento de um povo guerreiro. Gente que assiste ao programa do Ratinho. E busca a Terra sem Males.

Carta Capital, 11/02/2004, p. 10-15.

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