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[Guarani-Kaiowá] Não tenhamos medo

Adital - http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=42439
Autor: Egon Dionísio Heck
29 de Out de 2009

O cacique Rosalino está sentado no banco em frente a seu rancho, pensativo. Como cacique e anfitrião, está preocupado, e com muita razão. Afinal de contas o tufão, a ventania que colocou parta da estrutura da Aty Guasu por terra, trouxe um certo alvoroço e incerteza. Como recomeçar, como arrumar novamente o local para dar sequência à importantíssima Grande Assembléia Guarani.

O cumprimentei, trocamos umas rápidas palavras e o convido "djahá" (vamos!). Vamos, responde pausadamente. Pediu à filha para trazer o cavalo. Em poucos minutos, cavalo encilhado, puxa o banquinho para subir na sua condução. Segue morro abaixo com muito cuidado pois o chão molhado está também escorregadio. Vai resoluto, com muita dignidade e altivez. Afinal de contas é um momento decisivo. Na agenda está previsto a vinda da senadora Marina Silva, rituais e depoimentos.

Chegando ao local da Aty Guasu vai saudando os participantes com acenos de mão e sorrisos contidos. Afinal de contas o cenário é um tanto desolador. As incertezas povoam sua mente. Segue mais uns passos e o cavalo é conduzido até o local da árvore que caíra sob um dos barracos ferindo uma adolescente que nele estava no momento da ventania. Faz das raízes fora da terra, seu apoio para descer do cavalo. Segue até o local da entrada da área onde já estão os caciques, pajés, no ritual de saudação de mais um dia, pedindo forças e iluminação aos deuses e espíritos aguerridos que sempre protegem o povo Guarani. Rosalino, ainda um tanto adoentado e com uma perna inchada, senta-se em frente ao xiru (uma espécie de altar) e acompanha atentamente os rituais.

O compromisso da Senadora Marina Silva

Pela primeira vez uma senadora viria a uma Aty Guasu, trazer sua palavra, afirmar seu compromisso com os direitos e luta do povo Guarani. Algumas dúvidas no ar: será que viria mesmo, será que o tempo permitiria o pouso do helicóptero no local! Apesar de um certo clima de incertezas , até de boatos de que ela teria cancelado a vinda, a comitiva de recepção, entre caciques, seguranças e a representante do gabinete Áurea, já ali presente, foi ao pequeno campo de futebol, a uns mil e quinhentos metros do local da Aty Guasu. Quando o helicóptero do exército pousou e abriu a porta e desceu aquela frágil criatura, um sonho começava se tornar realidade. Afinal de contas a imagem de helicóptero que pairava sobre a cabeça dos Kaiowá Guarani era aquele dos rasantes e crianças em pranto, no despejo de Nhanderu Marangatu.

A recepção ritual foi carinhosa e calorosa. Com dificuldade ela conseguiu chegar à mesa do improvisado abrigo em que a Assembléia continuou. O coordenador Getulio foi logo colocando pra senadora a proposta "As lideranças vão ter uma hora pra colocar a situação da vida de nosso povo e depois a senhora vai ter meia hora para falar pra nóis". A logo começaram as falas. Nelas estavam presentes os sentimentos de gratidão pela presença e a cobrança de apoio efetivo para o enfrentamento que o povo Guarani está tendo com os grandes interesses políticos e econômicos regionais que não querem reconhecer suas terras e seus direitos.

Depois de ouvir atentamente a Senadora Marina Silva dez a sua fala, pausada e firme. Começou fazendo a memória de sua presença anterior entre os Guarani, no Mato Grosso do Sul. Foi em 1999, no Panambizinho e depois no Takuara, municípios de Dourados e Juti, respectivamente.

"E na comunidade em seguida que não me lembro o nome da comunidade, ah, Takuara é quem me recebeu na comunidade foi o capitão Marcos. Foi também num momento muito difícil, naquele momento em que eles receberam estavam vivendo um momento de muita tensão. E quando eu cheguei lá teve uma cena muito impressionante quando o capitão Marcos comeu um punhado de terra do chão e falou que daquela terra ele só sairia morto. Foi quando ele me levou ao lugar da reza, na casinha de reza e fez a reza e comeu esse punhado de terra. Naquele momento ele me perguntou o que a senhora pode fazer, o eu a senhora pode prometer como senadora, o que vai fazer pela gente. A única coisa que eu disse era que iria estar junto, que iria estar do lado e que as pessoas que vão garantir a demarcação dessa terra á própria luta e a organização das comunidades indígenas.

Alianças e diplomacia Guarani

Obviamente que nós temos aqui nossos parceiros do Ministério Público, os parceiros da FUNAI os aliados apoiadores do Cimi e outros que não sei se estão aqui. E acho que temos que aprender a fazer as alianças, as alianças necessárias com essas pessoas que se dedicam; que têm muita dificuldade para trabalhar e às vezes arriscam sua própria vida para defender essa causa sem a estrutura necessária que muitas vezes tem para que outro lado.

É preciso buscar alianças também com os formadores de opinião mostrando a realidade dessas pessoas que estão aqui. Há uma tentativa de transformar essa grande oportunidade de pessoas que tem uma cultura, que tem uma visão de mundo uma forma de ser diferente das dos brancos, como se fossem invisíveis como se não existissem. Mas são quase 60 mil pessoas que vivem nessas condições.

Então em 1o lugar eu quero dizer que eu estou aqui como Senadora da República, estou aqui como aliada da causa, independentemente de ser senadora da república porque é possível que a partir do próximo ano que vem não mais o mandato de senadora, mas continuarei como professora, como pessoa aliada à causa. E qualquer que seja a circunstância em que eu esteja. E foi com essa aliança que desde os 17 anos começamos a trabalhar no Acre, meu estado, que tinha também muito conflito com relação a terras indígenas e hoje

Tem que ter todo cuidado em fazer a diplomacia indígena. Porque tudo que eles querem é mostrar é que são os índios que estão atacando, que estão agredindo, para que a opinião pública fique sempre contra os índios para conseguirem colocar parte da opinião pública contra os índios, em nome da mentira as pessoas na nossa cultura acham que ter dinheiro, ter riqueza isso é que é viver bem... A riqueza do índio é o igarapé cheio de peixe; a riqueza do índio é a mata cheia caça; a riqueza do índio é a floresta. São conceitos diferentes de riquezas. Agora aqui a riqueza já foi estragada em vários anos e o que nos precisamos fazer é reparar essa injustiça.

Então meus companheiros meus amigos o apelo que eu faço é esse que tenhamos todo o cuidado em fazer a diplomacia do povo Guarani-Kaiowá, como Raposa Serra do Sol foi capaz de fazer. Conseguiu uma aliança com o Brasil. E foi aliança com o Brasil que fez com que a Raposa Serra do Sol fosse demarcada. Trabalharam muitas pessoas parlamentares, antropólogos, intelectuais artistas, formadores de opinião e um homem que deu o parecer que foi o ministro Carlos A Brito. Que nos possamos encontrar o caminho para essa nova maneira de caminhar na solução para um problema gravíssimo. Eu sei que existe muitas propostas eu estou aqui me comprometendo a sentar com o pessoal da Funai com os grupos de trabalho...

Compromissos sem vãs promessas

Falarei ao presidente da FUNAI Marcio Meira e vou fazê-lo também da tribuna do senado como fiz naquela época que falei da comunidade do Panamizinho, que foi demarcada, não é mesmo? Foi demarcada em 2005, eu inclusive participei da cerimônia da demarcação. Eu me lembro que na véspera teve uma preparatória que quando tava falando da comunidade do Panambizinho que ia ser demarcada. Foi um dos momentos que eu me emocionei, eu chorei porque eu lembre do capitão Marcos e de toda aquela cena. E depois as pessoas para tripudiarem dos gestos daqueles que se comprometeram com essa realidade e que querem tratar essas pessoas que estão aqui como seres invisíveis, sem lugar, sem cultura e sem uma história. Disseram que eu era uma senadora chorona nas reuniões do governo para ganhar as causas!

E quem vai garantir a resolução desse problema é que tem que dar o termo de referência para os deputados e senadores, para o presidente da República, para as autoridades do que nós vamos fazer numa situação como essa., de degradação social em que as crianças estão subnutridas, em que as pessoas estão amontoadas num pequeno pedacinho de terra, que não dá pra plantar, que não dá para viver. Obviamente que eu gosto de ser muito transparente. Eu não vim aqui fazer promessas vãs. Não posso dizer para vocês que eu tenho como resolver o problema. Eu posso dizer que como senadora, como professora, como pessoa eu estou do lado de vocês e vou trabalhar junto com essas pessoas que já estão trabalhando para que a gente ajude a resolver.

Está correto, não podemos nos esconder atrás do medo. E em nome da coragem que nos leva a justiça é que nós temos que buscar junto ao Governo Federal, junto a Funai, junto ao Congresso Nacional os meios para fortalecer a Funai os meios para fortalecer os grupos de trabalho e os meios pra que essas pessoas possam dar conta do seu trabalho e fazer a justiça que se esperam. Então eu estou aqui não como alguém que vai fazer vãs promessas porque nunca fiz durante toda minha vida, mas alguém que vai estar comprometida, junto eu já estou, talvez nem precisasse vir aqui para estar, todo mundo sabe.

Eu gostaria que a gente se colocasse também nessa perspectiva de construir as alianças que sei que são difíceis... e como quero concluir dizendo uma coisa eu não falei o nome de todos que estão aqui eu anotei cada fala, mas eu acho que temos que começar a eleger os diplomatas do povo Guarani-Kaiowá, eu me coloco humildemente na minha comunidade eu sou de origem de população tradicional, não sou índia. Dizem que coisa oferecida...

Muito obrigada por essa segunda visita que vocês me proporcionam eu não sei se era isso que vocês esperavam que eu dissesse. Alguém me perguntou o que a senhora vai fazer se for candidata? Eu não vim aqui como candidata, eu vim aqui como senadora da república só isso certo. E um dia se puder e se for eu voltarei para discutirmos nestes termos, mas hoje os termos em quem me coloco é como senadora da república tão somente como companheira como parceira dos povos que se colocaram aqui pedindo ajuda. E o que eu posso dizer é que me disponho a ajudar e estarmos juntos. Muito obrigada. "

Apesar de todo o cuidado com as palavras, mas deixando claro seu compromisso com a luta pelos seus direitos às terras, a imprensa empresa buscou veicular a presença da senadora na Aty Guasu como campanha para sua possível candidatura para presidência da República.

Conflitos da cana

Durante a Aty Guasu as lideranças Guarani cobraram duramente dos representantes do governo e do Ministério Público atitudes decisivas e urgentes. O Procurador da República em Dourados, Dr. Marco Antonio procurou esclarecer as causas do recrudescimento dos conflitos e das crescentes dificuldades para o reconhecimento das terras dos Kaiowá Guarani.

"Vários locais em que terras estão sendo reivindicadas pelos indígenas, ha canas de açúcar sendo plantada por fazendeiros. Isso só aumenta uma pressão que já existe . Porque uma coisa é um pasto que ta com meia dúzia de vaca, outra coisa é quando esse pasto passa a ser utilizado pela cana de açúcar e aumenta muito a renda daquele produtor. Então isso acaba na minha visão aumentando os conflitos. Muito dos conflitos que surge que tão ocorrendo nos últimos anos tem clara vinculação com a cana de açúcar. Então é importante que a gente comece a trabalhar nisso. Porque esses mecanismos de pressão, pressionados os grandes compradores Petrobras, os grandes grupos que tem usina no Estado a não comprar cana de terras indígenas a não comprar cana de área de conflito vai acabar colaborando muito pra luta de vocês. A luta não é uma luta somente cobrar da FUNAI. Isso não é suficiente para que vocês tenham de volta seus territórios . Isso é bom deixar claro. Ha outras questões envolvidas e é fundamental que a gente trabalhe juntos, que a gente se articule para que a gente possa pressionar grupos econômicos, para que possa pressionar Banco Mundial, BNDES, todas as pessoas que colocam dinheiro em investimento do Estado, investimentos que tiram a terra de vocês, para que tenham responsabilidade para que eles analisem todo e qualquer investimento antes dele ser realizado. Porque sob toda essa questão de terra ela tem um fundo econômico, tem um fundo de dinheiro. Porque se não tivesse dinheiro nisso com certeza vocês já tinham de volta seus territórios há muito tempo. Então é importante a gente pensar isso é importante a gente colocar isso."

Em sua fala o procurador pediu que todos contribuíssem enviando informações sobre qualquer violência ou não cumprimento das obrigações das usinas com relação aos direitos dos trabalhadores indígenas. Esse monitoramente será importante para ampliar a pressão pelo reconhecimento e devolução dos territórios tradicionais do povo Kaiowá Guarani no Mato Grosso do Sul.

Não tenhamos medo

"Não tenhamos medo. O medo pode nos derrotar" (Avelina, do povo Nasda, Colômbia, fala durante o despejo de Laranjeira Nhanderu 11/09/09)

O que predominou em toda a Aty Guasu foi a disposição de lutar, sem medo, pela vida e pela terra. Não existe espaço para a vacilação. A espera em vãs promessas já se esgotou. Resta a ação decidida e sábia para reconquistar as terras. As falas emocionadas e indignadas perante a multidão de parentes, dos representantes de organismos públicos e de entidades aliadas, foram todos na mesma direção: queremos ações imediatas, nós vamos agir!

A fala do representante Guarani na Comissão Nacional de Política Indigenista - CNPI, Anastácio Peralta foi incisiva:

"Companheiro que for companheiro vai seguir nosso caminho junto, enfrentar! Morrer para mim é pouco hoje. Por que o meu povo está sofrendo muito mais do que eu. Crianças desnutridas, pessoas velhas sofrendo por aí pela sua terra há mais de 500 anos.. E nós estamos aqui se escondendo atrás de políticos safados, dando uma de medroso. Nos tem que enfrentar esse povo, gente! Quero pedir mais uma vez, tem que vir esse grupo (GT)! Deixa morrer um, não vai matar tudo não! A vida ta feita pra morrer. E se for por uma boa causa a gente entrega a vida. Mesmo já morreu muita gente. Morreu Marçal de Souza, Chico Mendes...Já morreu muita gente. Tem que morrer mais um pouco de gente pra alguém viver bem. Nois tem que criar coragem! Eu não quero ser assassino de meu povo não. Então a gente tem que enfrentar! Isso que eu quero falar pra vocês. Não dá pra todo ano a gente ficar fazendo três ou quatro Aty Guasu, ficar esperando a FUNAI. E vamos brigar uai, se é isso que quer. Eu sei que é a gente não vai conseguir isso...mais a gente também vai enfrentar. Não dá pra ficar atrás desse medo mais não. Porque é esse medo que ta fazendo a gente andar pra traz. Enfrentar é isso!"

Cimi MS
Campo Grande, outubro de 2009

* Assessor do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Mato Grosso do Sul

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