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Grilagem na rodovia BR-319: 9 - As falácias do discurso político

Amazônia Real - https://amazoniareal.com.br
Autor: Lucas Ferrante, Maryane B.T. Andrade e Philip M. Fearnside
21 de Set de 2021

Um dos argumentos políticos para a pavimentação da BR-319 é que a rodovia melhoraria o acesso às fiscalizações e, assim, coibiria as infrações ambientais, mas mostramos que o efeito contrário é mais provável: maior tráfego é responsável por invasão de terras e desmatamento. Isso já é evidente na BR-319, onde um programa de "manutenção" de rodovias estimulou o desmatamento, mas não resultou em governança para controle de crimes ambientais [1].

Os resultados descritos aqui mostram que a titulação de reivindicações de terras ilegais na BR-319 se intensificou após o anúncio dos planos de pavimentação. Isso sugere que a pavimentação não trará governança, mas aumentará o desmatamento e a concentração de terras na região. Embora a titulação de reivindicações ilegais de terras seja frequentemente retratada como um meio de desacelerar o desmatamento, removendo a motivação para desmatar para justificar títulos, um estudo recente usando dados de satélite para documentar o desmatamento em 10.647 propriedades rurais entre 2011 e 2016 mostra claramente que o efeito oposto resultou do programa de titulação de terras "Terra Legal", com pequenos e médios proprietários de terras aumentando seu desmatamento e grandes proprietários de terra não sendo afetados [2]. Reformas para aprovar a regularização fundiária pelo governo federal recompensam aqueles que cometeram crimes ambientais e estimulam a grilagem de terras, criando a expectativa de perdões futuros [3, 4].

Em 02 de dezembro de 2020, o Ministério da Agricultura (MAPA) e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) publicaram uma portaria conjunta que terceirizará aos municípios brasileiros o processo de regularização fundiária das terras do governo federal [5]. A portaria é um incentivo à grilagem de terras na região, já que os governos municipais da Amazônia brasileira costumam ser cúmplices de crimes ambientais. Por exemplo, o governo de um dos municípios ao longo da BR-319 (Tapauá) tem usado suas escavadeiras para abrir um ramal ilegal conectando-se à rodovia, cortando uma terra indígena e um parque nacional [6]. Em 2018, no município de Humaitá (que abrange a porção sul da rodovia BR-319), o prefeito e vereadores foram presos por envolvimento em um atentado que ateou fogo aos escritórios do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio) [7].

Além dos processos ilegais observados no presente estudo, a legislação brasileira tem sido violada por ações governamentais como a licitação oficial e posterior assinatura de contrato com uma construtora para pavimentação do "Lote C" sem a conclusão dos estudos ambientais, colocando a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos da região em risco [8, 9]. Essas ações precisam ser revogadas e não repetidas. Tendo em vista que a decisão de primeira instância exigindo estudos ambientais para o "Lote C" já foi anulada pelo titular do Superior Tribunal de Justiça, resta recurso ao Supremo Tribunal Federal. Isso seria justificado pelo colapso ambiental sem precedentes que a reconstrução da BR-319 poderia causar, especialmente na ausência de estudos ambientais e consulta aos povos indígenas [9].

Os dados do presente estudo mostram que o "Lote C" e o "trecho do meio" estão sendo visados por gangues especializadas em grilagem de terras e que as reivindicações ilegais de terras muitas vezes são reconhecidas pelo Incra, órgão responsável por fiscalizar e prevenir ocupações ilegais O contrato de licitação e construção do "Lote C" sem estudos ambientais prévios e consulta aos povos indígenas deve ser questionado, e o envolvimento de deputados federais e juízes merece investigação por parte das autoridades competentes.

Também é necessário suspender imediatamente a portaria publicada em 02 de dezembro de 2020 [5] que terceiriza aos municípios a regularização de reivindicações de terras do governo federal, pois pode-se esperar que aumente muito a regularização de terras que estão sendo ocupadas ilegalmente na Amazônia, como as áreas reivindicadas por meio da grilagem documentada no presente estudo. O envolvimento do poder público no processo de regularização de áreas ocupadas de forma irregular acrescenta à necessidade de suspender a manutenção e pavimentação da rodovia BR-319 até a conclusão e aprovação dos estudos de impacto ambiental (EIA) e de viabilidade econômica (EVTEA) para o "trecho do meio" e para o "lote C" e, a realização da consulta conforme a Convenção OIT-169 de todos os povos indígenas impactados.[10]

Notas:

[1] Santos I (2020) Grilagem faz floresta virar fumaça no maior estado brasileiro. Deutsche Welle, 09 de outubro de 2020.

[2] Probst B, BenYishay A, Kontoleon, A & dos Reis TP (2020) Impacts of a large-scale titling initiative on deforestation in the Brazilian Amazon. https://doi.org/10.1038/s41893-020-0537-2

[3] Fearnside, P.M. (2020) O perigo da "lei da grilagem". Amazônia Real, 22 de maio de 2020.

[4] Maisonnave F & Almeida L (2020) Esperança de regularização faz com que grileiros transformem castanhais em pasto no AM. Folha de S. Paulo, 26 de julho de 2020.

[5] MAPA & INCRA (Ministério da Agricultura & Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). (2020) Portaria Conjunta No 1, de 02 de dezembro de 2020.

[6] Fearnside PM, Ferrante L, Yanai AM & Isaac Júnior MA (2020) Trans-Purus, a última floresta intacta. Amazônia Real

[7] Farias E (2018) Prefeito de Humaitá e vereadores são presos por envolvimento em ataque a prédios do Ibama e ICMBio. Amazônia Real, 27 de março de 2018.

[8] Ferrante L & Fearnside PM (2020) BR-319: O caminho para o desmatamento da Amazônia. Amazônia Real, 07 de agosto de 2020.

[9] Ferrante, L., M.B.T. de Andrade, L. Leite, C.A. Silva Junior, M. Lima, M.G. Coelho Junior, E.C. da Silva Neto, D. Campolina, K. Carolino, L.M. Diele-Viegas, E.J.A.L. Pereira & P.M. Fearnside. (2021) BR-319: O caminho para o colapso da Amazônia e a violação dos direitos indígenas. Amazônia Real, 23 de fevereiro de 2021.

[10] Este texto é traduzido de: Ferrante, L.; Andrade, M.B.T.; Fearnside, P.M. (2021) Land grabbing on Brazil's Highway BR-319 as a spearhead for Amazonian deforestation. Land Use Policy 108: art. 105559. A pesquisa dos autores é financiada exclusivamente por fontes acadêmicas. LF e MBTA agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). PMF agradece CNPq (429795 / 2016-5, 311103 / 2015-4), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) (PRJ13.03).

Fonte: https://amazoniareal.com.br/grilagem-na-rodovia-br-319-9-as-falacias-do…

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