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Grilagem de terras do Xingu: justiça federal decide contra

Jornal Pessoal
17 de Jul de 2006

Cinco seringais, cobrindo uma área de 1,2 milhão de hectares no vale do rio Xingu, em região mais conhecida como "Terra do Meio", foram registrados no cartório de imóveis de Altamira e são reivindicados - direta ou indiretamente - como seus pela Amazônia Projetos Ecológicos, um dos braços da Construtora C. R. Almeida.

Apesar de alguma diáfana fumaça de direito emitida por esses papéis, eles não conferem propriedade aos seus detentores nem os autorizam a ocupar a área, que equivale a 1% do território do Pará, o segundo maior Estado brasileiro. No entanto, como a grilagem que praticam com esses papéis se caracteriza pela audácia e violência, o Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública para evitar que os grileiros acabem tirando proveito das fraudes, favorecendo-se da leniência da administração pública.

A Procuradoria Regional da República no Pará quer impedir que os portadores desses papéis espúrios possam vir receber indenização da União. É que as terras griladas no Xingu se superpõem a duas reservas indígenas (Araweté e Apyterewa) e a uma unidade de proteção ambiental, a Estação Ecológica da Terra do Meio, criada no ano passado. Por portas e travessas, podia acontecer de o governo federal acabar desapropriando esses imóveis, pagando pela exclusão dos seringais da área protegida, sem considerar sua base de ilicitude.

A iniciativa recebeu o endosso do juiz da vara única da justiça federal em Altamira, Herculano Martins Nacif, que no dia 30 acolheu a ação do MPF, ajuizada na véspera. Além de proibir o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) de fazer qualquer ressarcimento à empresa, o juiz federal avocará para si o processo instaurado perante a justiça estadual pelo Iterpa (Instituto de Terras do Pará) visando o cancelamento da matrícula, registro e averbações existentes no cartório imobiliário de Altamira de cinco dos sete seringais arrolados (são Mossoró, Belo Horizonte, Caxinguba, Humaitá e Forte Veneza), que foram declarados indisponíveis "até a solução do litígio". O magistrado determinou ainda a retirada imediata de todos os prepostos da empresa desses mesmos seringais, "bem como de policiais militares que, porventura, estejam guarnecendo os referidos imóveis".

A Amazônia Projetos Ecológicos, de Cecílio do Rego Almeida, terá que indenizar "os danos morais causados à comunidade, decorrentes da atividade lesiva". A empresa também foi condenada a recompor o meio ambiente, "mediante sua condenação nos custos da recuperação da área degradada, em projeto a ser elaborado e executado, por pessoa jurídica idônea, indicada pelo Ibama".

O juiz federal ficou impressionado com as dimensões que a grilagem assume atualmente: de um estágio inicial "praticamente artesanal", a fraude "evoluiu para um sofisticado esquema que conta com a participação de funcionários públicos, órgãos governamentais, 'laranjas' e outras pessoas mal intencionadas, que levam a cabo verdadeiros devaneios técnicos que tendem a servir de respaldo para 'esquentar' os documentos fraudulentos".

"Este fenômeno histórico de corrupção - acrescenta o juiz Nacif - faz com que boa parte das terras brasileiras sejam de propriedade privada fictícia, sendo por vezes observada a existência de fazendas de dois ou três andares, uma vez que sobrepostas". O juiz diz que "emblemático é, de fato, o caso da empresa Incenxil [antiga firma local absorvida pelo grupo C. R. Almeida], objeto de apuração por CPI's estadual e federal, existindo, inclusive, quanto à questão, ações cível e penal que tramitam na Justiça Federal, muito bem servindo para exemplificar este tipo de atividade ilegal".

Lamenta que a situação denunciada pelo Ministério Público "aparentemente representa não um caso isolado, mas uma prática corriqueira perpetrada por empresas de envergadura, por vezes, internacional, sendo sempre utilizadas como fachada para práticas delituosas, buscando-se com isso a impunidade".

A análise dos documentos apresentados fez o julgador verificar os "fortes indícios" de que a Amazônia Projetos Ecológicos "não é legítima proprietária dos Seringais Mossoró, Belo Horizonte, Caxinguba, Humaitá e Forte Veneza, sendo que os títulos de propriedade sobre estas áreas possuem como alicerce meras transcrições de suposto título de posse, estando ausente a comprovação de cadeia dominial".

Lembra que em procedimento administrativo, a Corregedoria de Justiça das Comarcas do Interior do Pará determinou o bloqueio das matrículas desses seringais, exceto o Belo Horizonte, fato este que "comprova a irregularidade dos respectivos títulos imobiliários, e demonstra de forma inequívoca, a verossimilhança das alegações" do MPF.

Quanto ao descrédito em relação às escrituras, destaca o trecho no qual a Corregedoria de Justiça informa que a oficial titular do cartório de Altamira, Eugênia Silva Freitas, respondendo a 29 procedimentos criminais na justiça federal, apesar de afastada, "foi substituída por pessoa de sua confiança, que ela mesma indicou quatro meses antes de seu afastamento. O Cartório continuou a funcionar normalmente, como se nada tivesse acontecido, com auferimento integral de sua renda, no mesmo local que antes, sendo que na parte da frente funciona a serventia e na parte dos fundos a residência da Oficial afastada". Devido a essa situação, a corregedoria do TJE determinou a manutenção dos serviços de registro de imóveis da Comarca de Altamira sob correição permanente.

Já quanto a outros dois seringais, o Belo Horizonte e o Humaitá, o juiz destaca as ações de cancelamento de matrículas movida pelo Iterpa contra o espólio de Raimundo Ciro de Moura, que deverão ser transferidas para a jurisdição federal.

Afirma ser impossível "desconsiderar as patentes irregularidades desenvolvidas a olhos vistos" pelos funcionários do cartório de imóveis de Altamira, "conforme já apurado diversas vezes judicialmente, sendo que não há notícias de julgados que venham a depor em favor da idoneidade dos registros das imensas extensões de terras que são freqüentemente alvo de matérias jornalísticas, algumas das quais juntadas aos presentes autos".

Dentre essas matérias, artigos do Jornal Pessoal, que serviram de pretexto para nove ações judiciais movidas contra mim, na justiça estadual, pelo empresário C. R. Almeida, os desembargadores João Alberto Paiva e Maria do Céu Cabral Duarte e o madeireiro Wandeir dos Reis Costa. Em duas dessas ações, uma cível (do empresário) e outra penal (do desembargador Paiva), já fui condenado.

"Na verdade - continua a sentença do juiz - o que se pratica é uma verdadeira aquisição de propriedades por osmose. Explica-se: inicialmente o fraudador adquire ilegalmente uma fração de terras já significativa (por exemplo, através de registro de títulos de posses na condição de títulos dominiais); na seqüência, são feitas averbações que tendem a engordar ainda mais o latifúndio, sendo que o tempo e a impunidade são os fatores que trazem perspectivas, fortes, de que o delito será bem sucedido".

E completa: "Ademais, a insegurança jurídica proveniente dessas fraudes engendra um Estado paralelo, onde a força é a lei e os grileiros os legisladores. Disso tudo resulta um triste panorama, no qual muitos brasileiros acreditam que esses crimes são de somenos relevância e que na realidade trata-se apenas do 'jeitinho brasileiro' de obter vantagens. Contudo, é um engano tal raciocínio, pois esta indústria ilegal de aquisição de terras impossibilita a efetivação de uma reforma agrária justa e que muitos dos principais primados constitucionais possam sair do papel e ir para a realidade. Desta forma, não há como se construir uma sociedade livre, justa e solidária sem combater, com toda a veemência necessária, a grilagem. Não há como proteger a especulação fundiária improdutiva em detrimento dos menos favorecidos. Não há como a Justiça vedar seus olhos. Deve ela, com a aplicação dos ditames constitucionais e dos rigores da lei obstaculizar esse esquema vil e trazer a paz social de volta".

Na justiça federal, o punido é o grileiro, não quem o denuncia. Já na justiça estadual, os valores foram invertidos. Por quê? E até quando?

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