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Governo rompeu o diálogo com o movimento indígena

JB, País, p. A6
Autor: FEITOSA, Saulo
11 de Jan de 2004

''Governo rompeu o diálogo com o movimento indígena''
Decepcionado, especialista diz que Lula não avançou na questão dos índios

Saulo Feitosa

ROMOALDO DE SOUZA

De posse de um relatório que a Igreja Católica pretende apresentar até o fim deste mês, relacionando 33 assassinatos de lideres indígenas no ano passado, o vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Saulo Feitosa, doutor em História Indigenista e defensor dos índios há mais de 20 anos, se diz ''estarrecido'' e ''decepcionado'' com a pouca atenção que o governo do presidente Lula tem dedicado à questão. Para ele, nada mudou desde que o PT foi guindado ao Planalto.
- No primeiro ano de governo, índios foram assassinados no país exatamente pelo descaso das autoridades. Além de romper o diálogo com organizações e com os povos indígenas, Lula tem sido refém de pessoas contrárias aos interesses dos índios - afirma Feitosa.
Saulo Feitosa inclui no rol dos aliados que exercem influência sobre o Executivo federal o governador de Roraima, Flamarion Portela, que trocou o PSL pelo PT, ''embora sempre tenha sido contrário às mobilizações em favor das causas indigenistas.''
A causa indígena não põe apenas fazendeiros e mineradores de um lado e indigenistas de outro. Existe divisão também na própria Igreja Católica, onde o conselho indigenista encontra fortes resistências.
- Muitos setores da sociedade são preconceituosos e alguns integrantes da Igreja não compreendem o nosso trabalho - lamenta Saulo Feitosa.
Como exemplo dessa incompreensão, o vice-presidente do Cimi lembra que está sendo processado pelo delegado da Polícia Federal, Servilho Paiva, por crime de difamação, no processo de duplo homicídio dos indígenas Josenílson José dos Santos e José Ademilson Barbosa da Silva. Paiva irritou-se com as críticas que recebeu de Feitosa e levou o indigenista à Justiça.
Governo Lula
Estamos decepcionados com o governo. Esperávamos que houvesse indicativos do Executivo apontando os caminhos a serem trilhados. Tudo o que estava apresentado como proposta ficou de lado. O governo rompeu o diálogo com o movimento indígena. Ficamos sem informações sobre o que pretendia. Ao mesmo tempo, o governo começou a desenvolver ações que causaram impacto muito negativo. A redução de terras indígenas, como o que aconteceu com a kaiapó, no Pará, por exemplo, - que passou de 260 mil hectares para 221 mil - foi muito ruim.
Compromissos do governo
O governo, de fato, não estabeleceu na sua agenda a questão indígena como prioridade. O presidente Lula montou uma base de apoio formada por políticos que, historicamente, sempre foram contra as causas indígenas. Em Roraima, por exemplo, temos uma bancada de deputados e senadores que sempre foram os principais atores na elaboração de propostas contrárias aos interesses indígenas. Esses parlamentares sempre se revelaram como um lobby permanente, super-articulado, contrário aos interesses indígenas. Além do governador Flamarion Portela e seu vice, Salomão Cruz.
Refém de Flamarion
A filiação do governador ao PT colocou condicionantes, como a não homologação da terra indígena Raposo Serra do Sol. Ou, no mínimo, fez com que o processo fosse retardado. Fazendo um paralelo com os governos anteriores, isso nos leva a concluir que o atual não se diferenciou em nada. As terras indígenas continuam sendo usadas como moeda de troca com a base de sustentação no Congresso.
Explosões no campo
No Mato Grosso, temos a movimentação dos plantadores de soja, dos fazendeiros e do próprio governador, Blairo Maggi (PPS), que é um grande plantador de soja e contrário a desocupação da terra já homologada. Lá, o índios têm a posse, mas não têm a terra porque o governo federal não age para que isso aconteça. Em Mato Grosso do Sul, temos conflitos dos guarani-kaiwá e os terena com fazendeiros. Já em Santa Catarina, a situação é de racismo. Além do sul da Bahia, com os pataxó hã-hã-hãe, onde perdura uma situação indefinida com as ações da Justiça e liminares.
Polícia Federal
Os policiais federais nunca foram preparados para atuar com a questão indígena. Questionamos a forma como a PF age em terras indígenas. Já não há uma vontade manifesta de defender os índios. Quando a PF faz uma operação em terra indígena, não é diferente das operações feitas em morros do Rio.
Funai sucateada
O governo Lula não tem possibilitado a própria Funai de atuar em favor dos povos indígenas. Continua sem conseguir atuar porque está sucateada. O governo não se propôs, até agora, a repensar a política indigenista, nem a reaparelhar o Estado, ou provocar mudanças no órgão indigenista oficial.
Interesse nos minérios
Não tem fundamento as denúncias de que o Cimi e algumas entidades estariam de olho no minério das terras indígenas. Durante a Constituinte, fomos vítima de uma grande armação quando a imprensa divulgava, nas primeiras páginas, manchetes afirmando que o Cimi era uma das entidades que tinha interesse na exploração mineral. Essa acusação já foram, comprovadamente, desmoralizada.
Lobby
Lobistas de empresas mineradoras sempre tentaram desqualificar a ação da defesa dos índios. Até uma CPI Mista foi formada no Congresso. Na hora de votar o relatório, foi comprovado que as denúncias não procediam. Houve, então, uma mobilização das forças reacionárias no Congresso e a comissão foi desfeita.
CPI das ONGs
Do mesmo jeito que existe deputado bem e mal-intencionado, existem organizações bem e mal-intencionadas. O fato de haver uma ou outra organização constituída com o objetivo de defender interesses da sociedade, não significa que todas sejam assim.
Igreja Católica
O Cimi é um organismo eclesiástico e só atuamos onde há presença indígena, com o devido respaldo da igreja local. Somos responsáveis pela articulação e animação da pastoral indígena. Nossa força vem daí. Se tem bases atuando, a igreja local assume e respalda o trabalho. Apesar de sermos um grupo pequeno, se comparado a Funai, nossa presença é muito maior.

Saulo Feitosa

JB, 11/01/2004, País, p. A6

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