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Governo pode criar câmara para mediar conflito ambiental

Valor Econômico-São Paulo-SP
Autor: Gustavo Faleiros
19 de Jan de 2004

No momento em que economistas e empresários convergem em uma opinião - a de que o crescimento econômico no país dependerá de investimentos em infra estrutura - a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, faz ressalta que a questão ambiental não se coloca como obstáculo aos planos de expansão. "Não é nosso interesse emperrar o processo, em absoluto", diz. A posição de Marina é uma resposta às críticas do setor de infra-estrutura, que se intensificaram no último mês.

A Associação Brasileira de Infra Estrutura e Indústria de Base (Abdib), por exemplo, reuniu há poucas semanas empresários de peso em sua sede, que, em coro, reclamaram do baixo número de licenças ambientais concedidas neste ano. Segundo a Abdib, para o setor de energia foram concedidas pelo governo federal em 2003 apenas cinco licenças, entre prévias e de instalação. Os números da diretoria de licenciamento do Ibama, no entanto, são outros. Vinte licenças foram concedidas só para hidrelétricas, segundo o órgão. As novas solicitações de licenciamento foram apenas cinco, observa a ministra, que também afirma que muitos projetos estão parados por problemas com o Ministério Público. "Mas quem vai brigar com juiz? Está aqui a Marina, o grande pecado dela é ser ambientalista. Politicamente, isso rende".

A ministra revela que o ministério trabalha para reduzir os conflitos no momento de licenciar grandes projetos. O governo, conta, estuda criar uma câmara de mediação dentro da Advocacia Geral da União. "Não existe hoje um sistema adequado para fazer a mediação de conflito. Em muitos casos, as próprias empresas a fazem". Marina também defende o seu projeto original de tornar a questão ambiental pauta de todas ações de governo. Mesmo com as disputas em torno do projeto de lei dos transgênicos, ela garante que a "visão integrada" avança. Como exemplo, cita os projetos da rodovia BR-163 e a usina hidrelétrica de Belo Monte.

"No Acre me diziam 'você é contra o progresso, quer que todo mundo vire índio'. Nunca tive medo deste discurso"

Leia a seguir os principais trechos da entrevista que a ministra Marina Silva concedeu ao Valor no seu gabinete em Brasília.

Valor: Representantes do setor de infra-estrutura reclamam que a área de Meio Ambiente está sendo um entrave para investimentos, que está licenciando pouco. Na sua opinião, ministra, a que se devem estas críticas? Elas são injustas?

Marina Silva: Os nossos números mostram que os pedidos de licença foram bem menores neste ano do que em relação a outros anos. De toda forma, estamos trabalhando para criar um processo virtuoso no licenciamento, que possa dialogar com os interesses estratégicos do desenvolvimento. Não é nosso interesse emperrar o processo, em absoluto. Mas tem que se dizer que, boa parte do que está parado, não é porque a licença foi negada, mas sim porque o Ministério Público entrou com uma ação. Alguns procedimentos já estavam tão desacreditados que o Ministério Público entrava com uma ação civil preventiva.

Temos dificuldades no Ministério, mas elas estão sendo tratadas em vários níveis. Estamos nos debruçando para que no licenciamento ambiental não sejam represados todos os conflitos existentes nos projetos. Não existe hoje um sistema adequado para fazer a mediação de conflito. Em muitos casos, as próprias empresas fazem a mediação, e aí quem não tem as demandas atendidas, chega no último momento, entra na justiça. E o problema fica debitado no processo de licenciamento. O que estamos fazendo é um trabalho com a Advocacia Geral da União para se criar uma câmara de mediação de conflitos, e trabalhamos para que questões polêmicas sejam consideradas no planejamento.

Valor: Como atuaria esta câmara de mediação de conflitos?

Marina: A idéia é que a gente possa ter um espaço desvinculado dos vários interesses para fazer essa mediação. Não pode ser o ministério porque estamos lidando com uma visão particular, ambiental. Também não podem ser as empresas, porque elas vêem o seu lado. Tem que ser um espaço público, que veja o interesse do Estado, mas que também veja o interesse dos cidadãos.

O ideal é que se faça como fizemos em Abrolhos. Sentamos com o Ministério de Minas e Energia e com a Agência Nacional de Petróleo para decidir que um certo número de blocos não seria licitado pois teria um alto impacto ambiental. Também trabalhamos essa dimensão no modelo de política energética e na política de reforma agrária. Muitas coisas acontecem por falta de um tratamento antecipado da questão ambiental. Tudo isso não vai preterir o licenciamento, mas já se resolve boa parte dos problemas.

Valor: Na primeira carteira de projetos das Parcerias Público-Privadas (PPP) há obras com potencial de polêmica ambiental, como o Rodoanel e a BR 163. O ministro do Planejamento, Guido Mantega, garante que os projetos poderão ser feitos sem impasses. A sra. concorda com isso?

Marina: Acho que não devo interpretar uma fala do ministro, mas o que posso depreender do encaminhamento do governo é que todos os projetos deverão viabilizar-se considerando a variável ambiental. Se existem projetos que podem causar problemas, vamos verificar quais são as ações que podem ser feitas a priori para evitar tais impactos. Assim estamos fazendo com a BR-163 [pavimentação da rodovia Cuiabá- Santarém], e também em relação a Belo Monte [usina hidrelétrica de grande porte planejada para ser instalada no Rio Xingu, Pará], onde decidimos cancelar o processo anterior, e fazer novos estudos e novo licenciamento ambiental.

Essa é uma decisão corajosa do governo. Há necessidade dos investimentos, que, em si, não são nem bons nem maus. O problema é como o Estado dá o tratamento aos impactos ambientais. Existem projetos que pode se chegar à conclusão que são tão impactantes que não há solução. No caso de Abrolhos, essa foi a decisão. Por que se vai licitar, se depois não tem como licenciar, se já está sabendo que não vai dar para licenciar? Aí você cria expectativa e o Meio Ambiente virá o vilão da história.

"É difícil pegar uma agenda com um passivo ambiental de 500 anos e achar que se pode resolver isso em 12 meses"

Valor: Sob esse aspecto, os projetos contidos no plano plurianual (PPA) não criam essa expectativa? Tanto na BR-163 como em Belo Monte já há consórcios formados para investir.

Marina: Sim, mas essa expectativa, de certa forma, já estava posta por fatores anteriores. Seriam investimentos que dificilmente se viabilizariam sem as ações que estamos tomando agora. Encontramos esses projetos tentando se viabilizar sem as devidas precauções. Por isso paralisamos os processos de audiências públicas e resolvemos tomar as ações necessárias. Na BR-163, criaremos unidades de conservação e floresta nacionais, faremos o ordenamento territorial. No caso de Belo Monte se tentou passar por cima da lei, fazendo a licença no Estado do Pará, e como é um investimento federal, o Ministério Público foi lá e embargou.

O problema é que, politicamente, ninguém diz que tal investimento está parado porque o Ministério Público embargou. O pessoal vai brigar com juiz? Bem, está lá a Marina, ela é ambientalista, e esse é o grande pecado dela. Isso politicamente rende. Acho engraçado que todos adoram ter economistas no Ministério da Fazenda, educadores no Ministério da Educação e médicos no Ministério da Saúde, mas aqui o erro é ter ambientalista. No Meio Ambiente tem geógrafo, agrônomo, economista, historiador, sociólogo, biólogo, tudo o que você imaginar. Todos são ambientalistas. Para mim seria triste se dissessem que o problema do Ministério é que foram nomeados um bando de devastadores, que não cumprem o dever de casa.

Valor: As expectativa em relação ao crescimento econômico em 2004 são bastante positivas. O país já está preparado para crescer com sustentabilidade ambiental?

Marina Silva: O esforço que está sendo feito desde que assumimos o Ministério do Meio Ambiente é exatamente compatibilizar a necessidade estratégica do desenvolvimento econômico e social com a sustentabilidade ambiental. A nossa opção foi buscar uma agenda dentro do governo que faça com que a política ambiental aconteça de maneira integrada. Trabalhamos em cima de quatro diretrizes - a participação social, o fortalecimento do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), o desenvolvimento sustentável e a transversalidade. Seja na infra-estrutura, na agricultura, na reforma agrária, enfim nos mais diversos setores de governo.

O esforço de governo é que a variável ambiental se faça presente no planejamento. Se você me pergunta se isso está dado nestes 12 meses de governo, eu te digo que não, é um processo em construção. Até porque essa é a primeira vez que se faz um esforço desta natureza. Essa opção de fazer política estruturante de forma consistente, requer também uma postura de não ficar fazendo pirotecnia, ou criando agendas artificiais. É um processo delicado. As máquinas públicas estavam treinadas historicamente para funcionarem separadas. Para que ocorra a integração é necessário uma liderança política do próprio presidente e uma capacidade de solidariedade e respeito entre os ministros.

Valor: Se a sra. tivesse que fazer um balanço deste ano, quais seriam as principais vitórias e derrotas do Meio Ambiente?

Marina: Eu não lido com a idéia de ficar vendo derrota, porque sou uma pessoa de processo. Fica muito difícil pegar uma agenda que tem um passivo ambiental e social de 500 anos e achar que você pode resolver isso em 12 meses. Eu diria que trabalhamos mediante à determinação de evitar tudo o que não se pode , mas temos o mesmo empenho para construir a forma correta de fazer.

Eu digo que fazer a BR-163 no meio da Amazônia, com a participação de diversos setores da sociedade, é uma engenharia que as pessoas podem subestimar, mas isso requer uma capacidade política muito forte e, sobretudo, credibilidade. Para mim, só ter esse processo de forma tão consistente como uma ação de governo, e não como um questão isolada do Meio Ambiente, é uma vitória.

Dentre os passivos, não podemos deixar de dizer que a questão dos transgênicos foi tensionada. Mas o que as pessoas viram na agenda do governo neste ano? Viram apenas a questão dos transgênicos e a questão da importação de pneus, que graças a Deus nós já estamos resolvendo. Fizemos uma nova resolução do Conama [Conselho Nacional de Meio Ambiente] que derruba a indústria de liminares que faz com que entrem pneus usados no nosso país.

O mogno, por exemplo, estava há seis anos sob moratória. Quando chegamos aqui, criamos um grupo interministerial e trabalhamos com a sociedade civil e setores interessados. Construímos uma proposta para se explorar mogno de uma maneira sustentável. O que queremos é combater a ilegalidade renitente e criar um processo virtuoso com os que estão fazendo corretamente mas não têm como competir com aqueles que exploram terras indígenas e não pagam direitos trabalhistas. Se você sabe o que quer e onde quer chegar, você não enterra o desenvolvimento, mas o viabiliza.

Valor: É certo para a sra. que o projeto dos transgênicos não sofrerá modificações contrárias a sua posição?

Marina: Olha, estamos trabalhando para aprovar um marco adequado. Entendo que além de não impedir a pesquisa ou barrar o setor produtivo, é a forma de sair deste impasse. Tentou-se fazer um atalho passando por cima da Constituição, que prevê o licenciamento ambiental. A idéia foi dar um jeitinho nos transgênicos para que não fosse preciso o licenciamento. Com isso, ficamos parados seis anos, o atalho não viabilizou absolutamente nada. Agora, fizemos um projeto de lei que defende os interesses legítimos dos consumidores e também os interesses estratégicos e legítimos da pesquisa. No meu entendimento, o projeto de lei, está correto. Estamos analisando, inclusive, como se pode facilitar a pesquisa no país, já criamos uma série de procedimentos para o licenciamento, que não existiam quando chegamos ao governo. Demos uma primeira licença para o mamão transgênico. Evitamos agir no bojo da pressão, quando diziam que a ministra era do tempo das trevas, que era contra a pesquisa.

Mas é claro que o Congresso é soberano e o debate vai ser vigoroso. Eu espero que ele não seja desleal. Eu não parto do princípio, em momento algum, de que as pessoas estão defendendo suas teses porque são a favor de empresas, mas sim porque acreditam em suas teses. Mas é difícil lidar quando você, de boa vontade, coloca suas teses na mesa e as pessoas não querem nem saber, nem lêem um parágrafo. Para aqueles que querem regra nenhuma, fica difícil de dialogar. Eu sou muito acostumada com isso. No Acre a gente dizia: somos a favor da estrada desde que se faça os estudos de impacto, que se demarque a terra dos índios, que se criem as reservas extrativistas, que se criem as florestas nacionais. Quando se punha essas condições, todos vinham e diziam "Você é contra o progresso, você quer que todo mundo vire índio". Mas nunca tive medo deste discurso.

Valor: Com relação ao problema de exploração ilegal de madeira na Amazônia, atualmente o Estado do Pará passa por um forte conflito entre madeireiros e governo. O Ibama está sendo acusado de não estar aprovando planos de exploração, crítica que ficou mais intensa quando o órgão entrou em greve. Como solucionar o conflito?

Marina: Primeiro temos que limpar essa história que o problema é só o Ibama. É claro que nossa estrutura precisa ser melhorada. Fizemos um novo concurso, mas agora regionalizado. Num processo anterior, de 600 agentes aprovados, metade já pediu para sair, pois não se adaptou, não foram treinados antes de serem enviados para as áreas. O concurso regionalizado foi feito para que as pessoas tenham a dimensão social e cultural da região. Estamos também enviando à Casa Civil a nossa proposta de reestruturação do Ibama.

Agora tem outro lado. Fizemos um levantamento com 1,2 mil empresas e chegamos a um dado que 182 empresas no Pará tinham planos de manejo fraudulentos. Não havia nenhuma forma de controle sobre isso, porque havia uma estrutura precária. A crise que está acontecendo é uma resposta à decisão do governo brasileiro em fiscalizar os planos que estavam em terras griladas.

Valor: Este ano a sra. trabalhou com o orçamento apertado, R$ 349,3 milhões. E no ano que vem o orçamento nominal, de R$ 441,3 milhões, é menor do que o realizado em 2002, R$ 508 milhões. Como vai se trabalhar com estes recursos?

Marina: Uma sinalização do ministro Guido Mantega é de que vamos trabalhar com um orçamento que seja real. Uma coisa é ter o orçamento nominal, que é contingenciado, e outra é trabalhar com perspectivas daquilo que de fato vai se ter disponível. É claro que é desejável, e essa é uma vontade do governo, que se amplie o orçamento nos mais diferentes setores. Agora, a perspectiva de que podemos evitar o contingenciamento já é bastante alentadora em relação ao orçamento anterior. Outra coisa que é preciso dizer é que 2002 foi um ano atípico, com receitas extraordinárias. [Dos R$ 349, 3 milhões de 2003, cerca de 89% haviam sido liberados até o dia 16/12, informou a assessoria do Ministério]

Valor: As conversas sobre reforma ministerial no âmbito do governo, de alguma forma, têm impactado as ações do seu ministério?

Marina: Essa discussão eu não acompanho porque ela é de estrita competência e capacidade e legitimidade do presidente. Quem tem o poder de nomear ministro tem o poder de desconvocar. Trabalho com a idéia de que você está aqui dando o melhor de si para fazer um serviço. Então não me preocupo, é uma decisão do presidente. Para mim é extremamente honroso estar nestes 12 meses com este projeto político. Principalmente com esta lógica de fazer política integrada de governo. Sem nenhum preconceito com a jardinagem que, para mim, é uma arte maravilhosa, mas não teríamos alternativa de fazer jardinagem ambiental. Seria um prato cheio se eu quisesse, mas não duraria seis meses.

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