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04 de Fev de 2025
Governo não cedeu controle de terras indígenas para empresa privada
04.02.2025 - 18h16
João Pedro Capobianco
Rio de Janeiro - RJ
Circula, pelas redes sociais, a alegação de que o governo federal, por meio do Ministério dos Povos Indígenas, cedeu 14% do território nacional para a instituição privada Ambipar. É falso.
Por WhatsApp, leitores da Lupa sugeriram que o conteúdo fosse analisado. Confira a seguir o trabalho de verificação:
O governo federal não cedeu o controle de terras indígenas brasileiras a estrangeiros, nem entregou terras indígenas equivalentes a 14% do território nacional para gerenciamento por empresa privada, como afirmou o ex-candidato à Presidência em 2022, "Padre Kelmon", em publicação recente nas redes sociais. Para se ter uma ideia da magnitude do número divulgado nas redes, segundo dados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do Instituto Socioambiental (ISA), para chegar a 14% do território nacional é preciso somar todas as terras indígenas do país. O Ministério dos Povos Indígenas classificou a divulgação do número como "equivocada e falaciosa".
O que aconteceu foi a assinatura de um Protocolo de Intenções, um documento sem consequências jurídicas, entre o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a empresa brasileira Ambipar, que atua com projetos de gestão ambiental. Este tipo de acordo não prevê contrapartida ou pagamentos, mas indica apenas a possibilidade de ambas as partes futuramente solidificarem uma potencial parceria em projetos.
A assinatura do protocolo ocorreu durante a realização do Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça), entre os dias 20 e 24 de janeiro, ocasião em que o governo federal foi representado pelo secretário-executivo da pasta, Eloy Terena. O MPI é chefiado por Sônia Guajajara.
O documento assinado entre MPI e Ambipar é uma sinalização de intenções. De acordo com a empresa, ambas as partes sinalizaram o interesse comum de desenvolver em terras indígenas ações de prevenção e mitigação de riscos, como incêndios florestais e contaminação de recursos hídricos. Entre as ações que podem vir a ser desenvolvidas estão o monitoramento ambiental e suporte técnico para gestão de resíduos e mitigação de desastres.
Em nota à Lupa, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) afirmou que "é juridicamente impossível" que o documento assinado transfira qualquer tipo de controle ou poder de ação para a empresa sobre terras indígenas. A pasta disse, ainda, que a alegação de que o governo estaria transferindo o controle de terras indígenas à iniciativa privada "ignora a própria natureza do documento e visa gerar desinformação sobre a iniciativa".
Em resposta a conteúdos enganosos que passaram a circular nas redes após a assinatura do documento, o MPI publicou nota com a afirmação de que as intenções manifestadas pelas partes "só serão utilizadas se estiverem previstas nos Planos de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PGTAs) e contarem com o consentimento dos povos de cada território, respeitando a consulta livre, prévia e informada".
Ambipar nega gestão territorial de terras indígenas
Em nota à Lupa, a Ambipar afirmou que "não terá concessão de floresta e nem gestão territorial das áreas definidas no Protocolo de Intenções firmado com o Ministério dos Povos Indígenas" e que não atuará em projetos de comercialização de créditos de carbono nos locais previstos no documento.
A empresa disse que o documento assinado prevê a contribuição com as comunidades indígenas "por meio de sua linha de atuação em gestão ambiental e resposta a emergências, trabalhando em parceria com as comunidades, as quais já têm seus modos de atuação, para desenvolver soluções sustentáveis e alinhadas com suas necessidades e especificidades socioculturais".
No entanto, em entrevista à CNN no dia 24 de janeiro, uma executiva da empresa havia indicado que o trabalho nas terras indígenas começaria em breve. A head de Carbon Solutions da Ambipar, Soraya Pires, disse que a empresa já havia mapeado ações prioritárias e que pretendia iniciar atividades tão logo fosse possível. "As atividades começam assim que retornarmos para nossas atividades no Brasil. Não esperaremos o plano de trabalho ser concluído, queremos que as atividades já iniciem para que ambas aconteçam em paralelo".
O Ministério dos Povos Indígenas, que já havia classificado conteúdos publicados sobre a parceria como fake news, ressaltou que a empresa não está autorizada a atuar em territórios indígenas com base no documento e apontou erro grave quanto à área de abrangência da potencial cooperação. "A informação que circula sobre a suposta atuação da empresa em 14% do território brasileiro é equivocada e falaciosa - o número faz referência a estimativas de estudos e pesquisadores sobre a área ocupada pelo total de TIs no país", informou a pasta.
Apesar do erro apontado pelo ministério, a Ambipar manteve seu dado, em nota à Lupa, de que, nos termos do Protocolo de Intenções, "a iniciativa visa atingir aproximadamente 1 milhão de quilômetros quadrados de territórios indígenas, ou seja, quase 14% do território brasileiro e o equivalente à soma das áreas de França e Inglaterra".
Posteriormente, a Ambipar informou à Lupa que a empresa não está autorizada a atuar em territórios indígenas com base no documento assinado. "O fato de a Ambipar ter assinado um protocolo de intenções com o Ministério, com o MPI, é um começo de tratativas. (...) Isso não quer dizer que a empresa já pode atuar lá amanhã ou começou a atuar ontem, não é isso. (...) Sendo assim, não tem nenhum tipo de trabalho de Ambipar hoje".
Protocolo de Intenções não tem efeitos jurídicos
Um Protocolo de Intenções é um instrumento que formaliza um vínculo de cooperação entre duas entidades, sem transferência de recursos entre elas. Pela própria definição do governo federal, trata-se de um documento genérico, que não gera obrigações imediatas e não exige um projeto específico para que seja firmado.
O professor titular da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV) Carlos Ari Sundfeld explicou, em entrevista à Lupa, que um documento desta natureza não produz efeitos jurídicos. "Protocolo de intenções marca uma primeira aproximação das partes, mas que em si não gera efeito jurídico concreto nenhum, isto é, não autoriza ninguém a entrar em imóvel público, a receber dinheiro público, a ter benefícios públicos, não cria obrigações nem deveres".
De acordo com Sundfeld, a partir desta manifestação de um interesse comum, o estabelecimento de uma relação jurídica futura depende de novas negociações, que devem respeitar ritos administrativos para que se chegue a um novo documento.
Há que se ressaltar, ainda, que o artigo 231 da Constituição Federal prevê que atos como "a ocupação, o domínio e a posse" de terras indígenas são nulos e extintos, a não ser que haja relevante interesse público da União manifestado em lei complementar. O dispositivo também considera que as terras indígenas são inalienáveis (não podem ser vendidas) e seus direitos são imprescritíveis (não perdem a validade).
Conteúdo semelhante foi checado por Aos Fatos, Estadão Verifica, UOL Confere e Boatos.org
https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2025/02/04/governo-nao-cedeu-control…
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