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Governo Lula, Roraima e a Raposa Serra do Sol: do vazio político ao retrocesso do Estado de direito

Vincenzo Lauriola*
Autor: Vincenzo Lauriola*
01 de Out de 2004

Em seu artigo "O Governo Lula e as Terras Indígenas", o antropólogo Marco Paulo Schettino desenha um quadro claro, lúcido e verídico, da situação de extrema decepção em que o Governo Lula foi capaz de se colocar em menos de dois anos, com relação à (falta de) política indigenista, e mais especificamente com relação às questões fundiárias. Um dos exemplos mais gritantes e emblemáticos de como, não tendo clareza desde o começo sobre os rumos a seguir, o governo se colocou num verdadeiro pantanal, onde a cada tentativa de se mexer, afunda um pouco mais, é a Raposa Serra do Sol, em Roraima. Mesmo neste caso - que o autor cita como exceção a adoção de critérios conservadores para a aplicação da lei pela FUNAI - a despeito das declarações, alguns sinais não deixam de ser preocupantes, na medida em que, mais uma vez apontam para "saídas negociadas", o que de fato significa abrir porta para o desmembramento puro e simples da terra indígena. O que e com quem dá para negociar (ou não)? Quais os custos, políticos, éticos, e institucionais, para o próprio Estado de direito, de tais negociações? Dá para negociar a própria essência, a natureza de direitos constitucionais, sem violar a Carta Magna, sem enfraquecer as bases do próprio Estado de direito? E quais os requisitos mínimos de legalidade e/ou legitimidade das contrapartes de tais negociações? Existem casos em que, ao negociar com certos atores e/ou certos objetos, o Estado mina as bases de sua própria legitimidade. É o exemplo, atualíssimo, do terrorismo: mesmo com posições políticas diferentes, os Estados não negociam com os terroristas, por não reconhecer a legitimidade de seus métodos de ação.

Em janeiro de 2004 o governo Lula viu a reação dos setores anti-indígenas de Roraima às declarações do Ministro da Justiça sobre a iminente homologação da TI Raposa Serra do Sol. Os rizicultores da RSS, 7 empresários que, a despeito da área já demarcada, encorajados pelos governantes locais, há cerca de uma década ocupam áreas crescentes da TI com suas lavouras, com o apoio, explícito ou indireto, de políticos, governantes e elites locais, decretaram na cidade um verdadeiro estado de sítio. Durante uma semana, houve invasão de prédios públicos, seqüestro de pessoas, ameaça de invasão da sede de organizações indígenas como o CIR (entre as poucas cuja luta histórica para os direitos humanos e ambientais no Estado é reconhecida e premiada, nacional e internacionalmente) ou de seus aliados, como a Igreja Católica (a própria Catedral de Boa Vista sofreu ameaças tangíveis de invasão), os caminhões dos arrozeiros bloquearam todas as rodovias de acesso e/ou saída de Boa Vista, e os pichadores oficiais do movimento enfeitaram os carros dos boa-vistenses de "Fora FUNAI", "Fora ONGs", "Fora Diocese", "Xó estrangeiros". Poucas semanas depois um funcionário da FUNAI foi trucidado por garimpeiros na área yanomami enquanto o enredo do carnaval de Boa Vista cantava "Fora FUNAI", a poucos metros da praça central, onde se ergue a estátua dourada de homenagem ao garimpeiro, símbolo da história da capital e do Estado. Tudo isso para mostrar os músculos e pressionar o governo federal contra a homologação da TI RSS em área continua. Tudo isso numa Unidade da Federação cujo orçamento depende por mais de 90% de recursos federais; onde durante anos mais de 10% da folha de pagamento dos servidores estaduais foi sistematicamente desviada para os bolsos de deputados e outros políticos (escândalo dos "gafanhotos"); onde apenas um ano antes, após encontrar o corpo do indígena Aldo Macuxi enterrado numa cova rasa na fazenda de um vereador de Uiramutã (município virtual, criado ilegalmente dentro da mesma RSS mas,... neo-petista !!!), o laudo pericial do IML local atestou "morte natural" (posteriormente o IML de Brasília reconheceu ter havido uma execução pelas costas com os braços levantados); onde... (a lista de ilegalidades impunes poderia se alongar muito).

E frente a tudo isso, o que fez o governo do presidente eleito dizendo "Quero um Brasil decente"? O governo vacilou: ao mesmo tempo em que, durante meses, continuava declarando a homologação como decisão já tomada, de fato cedeu à chantagem da bancada federal de RR, a que se elege com poucos milhares de votos...

No vácuo político sobre o sentido do direito que transparecia da obstinada protelação da homologação, que contraditoriamente continuava-se anunciando como decisão já tomada, abriu-se espaço para o arbítrio de poucos, capazes de manipular os mecanismos do direito, as informações na mídia e, direta ou indiretamente, a orientação dos magistrados. O resultado é que, em poucos meses, as pressões políticas exercidas por meio de atos criminais, gozando da impunidade ampla e habitual neste pedaço de Brasil, fizeram recuar o governo de seus propósitos legais declarados, demonstrando a facilidade e eficácia da chantagem posta em ato. O exemplo mais claro e eloqüente do sucesso dessa estratégia talvez sejam as próprias declarações de tal arrozeiro, entre os principais lideres dos motins de janeiro, já indiciado pela justiça, hoje candidato a prefeito de Pacaraima, outro município criado - com procedimentos de dúbia legalidade - dentro da Terra Indígena São Marcos, que, ao comentar as últimas declarações do Ministro da Justiça, que mais uma vez confirma a intenção presidencial de homologar a RSS em área única, afirma: "O Lula está fora desse processo. A nota do Ministro é ridícula. O Lula vai sair do poder e nós vamos ficar aqui. E o PT vai junto com ele" (Folha de Boa Vista, 31/08/2004).

O governo Lula abriu espaço para que comissões políticas incompetentes e inconseqüentes, presididas por figuras tão inexperientes quanto arrogantes (que alguém já chamou de cara pálida, cara de pau), apenas na busca de articulações politiqueiras para empreitadas eleitoreiras no quintal de casa própria (como o apoio do PFL para candidaturas a prefeito na abaixada fluminense), apos sobrevôos de poucas horas, começassem a produzir relatórios, repletos de inverdades técnico-científicas e argumentações fanta-político-estratégicas, redigidos em poucos dias utilizando quase que exclusivamente as funções copia e cola do processador de texto, e com embasamento insuficiente sequer para um trabalho de curso de um primeiro ano de graduação de uma qualquer universidade, para contestar politicamente os laudos e relatórios de demarcação da FUNAI, baseados em décadas de estudos científicos de profissionais do mais alto nível, reconhecidos nacional e mundialmente, como os que assinaram os laudos antropológicos e de demarcação da Raposa Serra do Sol. Assim, o vácuo político que se configurava sobre o próprio sentido da lei, abriu espaço para que as próprias instancias judiciais iniciassem uma serie de pronunciamentos e decisões sem precedentes, dando andamento e continuidade a um processo cujo objetivo claro é anular a portaria de demarcação da Terra Indígena, e fornecendo ao presidente Lula o álibi que estava precisando para protelar ulteriormente sua decisão "já tomada". O círculo estava fechado.

Uma ação popular na justiça argumenta que se for demarcada a RSS em área única haveria conseqüências negativas para (ou até inviabilizaria-se) o desenvolvimento do Estado, alegando a escassez de terras agricultáveis como o maior impedimento. Isso com base em laudos supostamente interdisciplinares onde o parecer do antropólogo (o que, conforme a lei, é o principal responsável pelo embasamento histórico-cultural da própria natureza do direto fundiário indígena, fundamentado na posse imemorial e ocupação tradicional, e que no caso específico, e o único favorável à área continua) é desde o inicio e estruturalmente minoritário no meio de outros técnicos, cujas posições, conhecidas desde o inicio como anti-indígenas, perfeitamente alinhadas com o discurso político local, que em alguns casos contribuíram inclusive a formar, tendo já se formulado laudos anteriores, por conta do Governo do Estado, contrários à área continua. Mesmo sem considerar que, num dos Estados menos densamente povoados do Brasil (325.000 habitantes em 225.000 Km2) alegar falta de terra pode ser considerado já por si ficção cientifica, ou fingindo de não ver os resultados de levantamentos técnico-fundiários da EMBRAPA/RR, que atestam a disponibilidade no Estado de 28.000 Km2 (2.800.000 ha, mais de 1,5 vezes a área total da TI RSS !) de terras institucionalmente livres e aptas para a agricultura, o que isso tem a ver com os direitos originários dos povos indígenas da RSS sobre suas terras? Se as terras são indígenas, isso não quer dizer que compete aos índios decidir sobre seu próprio desenvolvimento naquelas terras? Ou eles não seriam, ao mesmo título que os não-índios, cidadãos brasileiros e parte integrante da população do Estado? E mesmo se for comprovado que o uso exclusivo indígena daquelas terras comportaria uma taxa menor de atividade econômica no Estado, os conceitos e os indicadores do que chamamos de desenvolvimento são tão relativos, etnocêntricos, criticados e criticáveis (o próprio Banco Mundial reconhece cada vez mais os limites de concepções e indicadores tradicionais como o PIB, buscando definir novos indicadores, como o IDH, para dar conta de tantas imperfeições), que qualquer conclusão supostamente "científica" sobre o assunto não passa em realidade de um ponto de vista de um ou um grupo de técnicos, sendo que um ou outro grupo de técnicos, igualmente ou mais qualificados, poderiam perfeitamente chegar a conclusões opostas. Mesmo admitindo que as teses desses técnicos sejam cientificamente bem fundamentadas (lembramos que, assim que sair do laboratório para se aplicar à complexidade do real, qualquer ciência perde sua validade absoluta e se abre para o contraditório entre uma diversidade de posições), com certeza não são as únicas possíveis.

Ou, pior ainda: manipulando grosseiramente atores e mídia, inclusive re-qualificando os motins de janeiro como "fatos novos" se busca (e com sucesso!) vender, para os governantes em Brasília, para a opinião pública nacional e para os magistrados, a imagem de um iminente risco de conflito inter-etnico. Neste hipotético conflito, as elites locais, após décadas de manipulação deliberada de fatos e memórias, inculcando o preconceito nos bancos das escolas, transformando opressores e escravizadores de índios em "desbravadores" e "figuras" da história local, vestem hoje a máscara do Estado e, escondendo seu papel de fomentadores, se apresentam como árbitros, mediadores, pacificadores. A memória dos governantes de hoje é realmente tão curta de não lembrar o significado histórico e político do termo "pacificação" para os povos indígenas na Amazônia, perpetrada em nome do Estado brasileiro pelas mesmas elites locais apenas há algumas décadas, durante o regime militar ?

Os tantos políticos que vão a Roraima para conhecer este pedaço de hemisfério norte do Brasil que representa a última fronteira, sempre viajam de avião, no único vôo noturno que o liga ao hemisfério sul. Seria tão mais instrutivo viajar por terra e de dia, de Manaus a Boa Vista ! Daria para perceber claramente quanta terra, já desmatada e cercada, às margens da BR 174, está realmente disponível para usos mais produtivos que as raras cabeças de gado que, de vez em quando e com um certo esforço, o viajante apenas consegue enxergar. Assim como, atravessando a TI Waimiri-Atroari, poderiam tocar com mão a história daquela área, percebendo o imenso custo humano e ambiental da miragem desenvolvimentista que a BR 174 representa: após ser quase exterminado pela "pacificação" necessária a sua construção, aquele povo indígena acaba de festejar por sua população ter atingido 1.000 pessoas, um terço do contingente originário. Assim como daria para perceber que as centenas de km de buraqueiras são obstáculos imensamente mais poderosos para um uso mais intenso da BR do que as correntes, que os índios erguem durante a noite para reduzir o impacto do transito sobre a fauna que os alimenta, e que os políticos de RR responsabilizam por "impedir o desenvolvimento".

O discurso anti-indígena e os frutos mais manipulados e mediatizados da cooptação, grosseiramente praticada por décadas, re-qualificados como "fatos novos" e "riscos iminentes de danos irreversíveis" na incompreensível e contorta linguagem dos magistrados, forneceram os pretextos para suspender liminarmente a portaria demarcatória da Terra Indígena, mais de 5 anos apos sua edição, jogando para o espaço qualquer principio de certeza do direito, de eficácia de portarias ministeriais, qualquer sentido de direito constitucional originário. Alegando "fatos novos" ou "riscos iminentes" será que, daqui para frente qualquer juiz poderá suspender liminarmente, ou até anular os atos demarcatórios de qualquer terra indígena?

Assim, frente às comunidades indígenas que se mobilizam para tentar frear com novas moradias o avanço descontrolado das lavouras em suas terras, que em alguns casos mais que decuplicaram sua área nos últimos dois anos, o mesmo juiz dá reintegração de posse aos arrozeiros invasores, e manda os índios sair de suas casas construídas nas fronteiras dos arrozais. Hoje, na RSS talvez mais que em outros casos e momentos de nossa historia recente, parecem tomar corpo as letras do Djavan: "nessa terra tudo da', terra de índio / nessa terra tudo dá, não para o índio /quando alguém puder plantar, quem sabe índio / quando alguém puder plantar, não e' índio".

No vazio político sobre o sentido do direito o arbítrio puro vem se apossando legalmente dos mecanismos do judiciário para reverter profundamente o sentido pratico dos direitos territoriais indígenas. Pior que nos regimes militares: lá não havia a Constituição de 1988, não precisava torcer o sentido da Carta Magna. Assim o governo Lula corre o risco de ser lembrado como o governo que contribuiu de forma decisiva a remover os últimos empecilhos legais à privatização das Terras Indígenas e penetração livre e descontrolada do mercado e do capitalismo global nos recantos mais remotos da Amazônia. Ao mesmo tempo em que busca no discurso o fortalecimento do Estado como ator central da definição das decisões coletivas e das políticas publicas, o governo Lula não percebe que ao fazer isso em contextos locais histórica, política e estruturalmente frágeis e/ou corrompidos, esvazia definitivamente de qualquer poder de auto-organização as sociedades indígenas, promovendo um novo integracionismo, fundado na cooptação econômica e política, na troca entre direitos originários e assistencialismo (hoje: cotas!), negando de fato qualquer possibilidade plena e duradoura para o Brasil ser real e plenamente um país plurietnico.

Nas incertezas profundas que hoje assombram o cenário futuro dos direitos indígenas no Brasil, podemos afirmar que se retrocessos dramáticos serão evitados isto será graças à mobilização dos próprios indígenas. Na RSS, frente ao avanço das lavouras brancas em suas terras, destruindo lagos, biodiversidade e espalhando agrotóxicos, enquanto IBAMA e FUNAI se preocupam com penas em artesanato e pesca com timbó, eles arriscam suas próprias vidas para defender a terra de seus pais que tomaram emprestada de seus filhos. Mais uma vez não há muito que acrescentar as letras do Djavan: "sua ação e' valida, meu caro índio /sua ação e' valida, valida o índio / isso pode demorar, te cuida índio / isso pode demorar, coisa de índio"...

" Sócio-economista ambiental, Doutor em Desenvolvimento Sustentável e Ciências Sociais, Pesquisador em Etno-ecologia, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Coordenação de Ecologia (CPEC), Manaus, AM.

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