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Governo corre para privatizar Cuiaba-Santarem

OESP, Nacional, p. A12
27 de Jun de 2004

Governo corre para privatizar Cuiabá-Santarém
Grupo do governo gastou seis dias nos 1.700 km da BR-163, estudando como recuperá-la

LUIZ MAKLOUF DE CARVALHO Especial para o Estado

SANTARÉM - O governo trabalha, sem alarde e com pressa, para privatizar a recuperação de 1.340 quilômetros da rodovia federal Cuiabá-Santarém. Inaugurada há 30 anos, no tempo da ditadura, a BR-163 é uma das maiores calamidades rodoviárias do País, especialmente no inverno e no trecho paraense - formado pelos 698 quilômetros entre a divisa com Mato Grosso e o entroncamento com a também devastada Transamazônica (BR-230), mais 115 por esta, até Rurópolis (PA), e outros 217, quando volta a ser a BR-163 e chega a Santarém (PA), às margens do Rio Tapajós. Em todo esse trecho, 930 quilômetros, apenas 123 estão asfaltados, parte deles, na etapa final, cheia de buracos.
A evidência mais recente de que o governo quer começar a tirar os 30 anos de atraso ainda neste mandato foi uma viagem discreta, às agruras da rodovia, de nove integrantes de um Grupo Técnico Interministerial criado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em março deste ano. Composto por técnicos qualificados de três ministérios (Casa Civil, Transportes e Integração Nacional), o grupo sofreu na pele as precárias condições de trafegabilidade de grande parte da rodovia.
Os quatro que fizeram o percurso completo - José Maria da Cunha, Carlos Eduardo de Souza Bastos, Cecília Gontijo, do Ministério dos Transportes, e Leiza Martins Duburgas, da Casa Civil - levaram seis dias, de 13 a 19 de maio, para cruzar os 1.700 quilômetros que ligam Cuiabá (MT) a Santarém (PA). Houve encontros de trabalho com cinco prefeitos da região e uma visita rápida à base aérea da Serra do Cachimbo.
A partir de Guarantã do Norte (MT), divisa sub judice dos dois Estados, a viagem, em duas camionetes com tração nas quatro rodas, foi um misto de calvário e aventura. A pedido, o engenheiro José Maria Cunha, da Secretaria de Desenvolvimento do Ministério dos Transportes, fez um relato do que chamou de expedição (ver matéria ao lado) e cedeu fotografias.
Cinco dias - O Estado refez o trajeto do grupo interministerial em um carro de passeio convencional, motor 1.8, sem tração.
Dirigindo somente de dia, com paradas curtas para entrevistas, cinco horas perdidas esperando que um atoleiro fosse desobstruído, três à espera de que o carro fosse puxado de uma cratera e também de um lamaçal, levou cinco dias para fazer o percurso de Cuiabá a Santarém - da manhã de 18 de junho, sexta-feira, ao começo da noite de 22, terça-feira. O carro ficou irreconhecível.
Do jeito que está - com atoleiros intransponíveis sem tração, erosão serpenteando em crateras profundas, lamaçais e buraqueira - a rodovia mais parece, na maior parte do trecho paraense, uma péssima estrada carroçável ou um excelente desafio para uma prova de rali. São raros os trechos em que se pode engatar a quarta marcha e fazer uma média de 70 quilômetros por hora. A média do percurso fica entre 25 e 35 quilômetros por hora, mesmo sendo verão. No inverno, o trecho fica intransitável.
"Pela primeira vez, uma equipe de pesquisadores e formuladores do governo federal saiu de trás de suas escrivaninhas para pôr literalmente o pé na estrada e sentir de perto os impactos de um projeto relevante para o Brasil", disse o diretor de Outorgas do Ministério dos Transportes, Alexandre Gravriloff. O exagero de Gravriloff reflete o entusiasmo com que o governo está acreditando nesta privatização.
Os quatro prefeitos que receberam o grupo interministerial partilham o mesmo sentimento. "Agora sai", disse Otaviano Pivetta, de Lucas do Rio Verde (MT).
"A visita do grupo interministerial trouxe um novo alento", afirmou José Domingos Fraga Filho, de Sorriso (MT).
Nilson Leitão, prefeito de Sinop (MT), acha que "um sonho de 30 anos está saindo do papel". Lutero Siqueira da Silva, de Guarantã do Norte (MT), achou "inédito" que o grupo técnico o tenha procurado "sem politicagem e sem dar despesa para a prefeitura". "Eu estou acreditando", disse. O prefeito de Novo Progresso (PA), Juscelino Alves Rodrigues, adota o mesmo tom: "O governo não vai fazer, mas está arrumando os meios para que seja feito."
Há mais evidências de que a privatização e o asfaltamento podem mesmo acontecer. Em julho e agosto, serão realizadas as consultas e audiências públicas nos municípios diretamente interessados. Pela legislação ambiental, elas são obrigatórias para que o Ibama possa conceder a Licença Prévia (LP), sem a qual as obras não podem começar. Os Estudos de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) já foram elaborados para o trecho paraense e estão em fase conclusiva no trecho de Mato Grosso.
"No ritmo que vai, o edital da licitação sai em outubro e será concluído em março do ano que vem", diz o engenheiro José Maria Cunha. "Mantido o cronograma atual, as obras começam em maio de 2005". Devem terminar em três anos.
A licitação será regida pela Lei de Concessões, de 1995, não mais pela Parceria Público Privada (PPP), em que entraria verba orçamentária, como o governo chegou a pensar inicialmente. Os 1.340 quilômetros a serem licitados - de Nova Mutum (MT) a Rurópolis (PA), com 32 quilômetros saindo da 163 em direção a Miritituba, na beira do Tapajós - deverão custar US$ 300 milhões.
Segundo Cunha, 870 quilômetros serão reconstruídos e 470 recuperados. A contrapartida de quem levar a licitação será a cobrança de pedágio. Existe a intenção de que os veículos de passageiros sejam liberados do ônus. O trecho de Rurópolis a Santarém não entra nesse pacote, mas está sendo negociado com o governo do Pará.
Consórcio - O governo já tem como certo que pelo menos um candidato vai se habilitar ao edital - o poderoso consórcio que reúne as grandes empresas exportadoras de soja do norte de Mato Grosso e do Pólo Industrial de Manaus, além de algumas grandes empreiteiras. O consórcio dispõe de um estudo preliminar de viabilidade que calculou o investimento em US$ 175 milhões. Eles seriam compensados pela cobrança do pedágio em estimados 25 anos de concessão. Com esses números, o consórcio se dispunha a bancar 20% do investimento. O resto deve ser financiado pelo BNDES e por fundos do Centro-Oeste e do Norte.
O interesse principal dos empresários é diminuir o tempo e o custo do transporte dos produtos que exportam. Por Miritituba, de onde as cargas seriam despachadas para o porto de Santarém, a Europa está a menos cinco dias de viagem do que dos portos de Santos e de Paranaguá.
Para o governo, o asfaltamento da rodovia pode se associar a dois cenários:
um, o da exploração predatória de sempre, com conflitos sociais, inchaço das cidades, desemprego e uma paisagem degradada. Outro, o da exploração em bases sustentáveis, com desenvolvimento e progresso. O governo aposta no segundo cenário.

Um gigantesco atoleiro no meio do caminho
Ficar dias parado na estrada, uma rotina que pode mudar com asfaltamento

O relato da viagem do grupo técnico interministerial, segundo o engenheiro José Maria da Cunha, do Ministério dos Transportes:
"Chegamos a Guarantã do Norte (MT) em 15 de maio. Ouvimos depoimentos emocionados, mostrando o abandono desse povo e a ausência do poder público na região. Lá, diferentemente do que foi assistido nas outras comunidades, o desenvolvimento não tem o mesmo ímpeto e atraso foi atribuído à ausência do Estado.
A equipe passou a noite em Guarantã, seguindo, na manhã do dia 16, para Novo Progresso, no Pará. Durante o percurso, foi possível conhecer a Reserva do Cachimbo e a Cachoeira do Curuá. Esse trecho foi percorrido durante todo o dia, chegando-se a Novo Progresso à noite.
Na manhã de 17 de maio, a sociedade se organizou, juntamente com o governante local, para receber o grupo que eles acreditavam ter respostas para seus anseios sobre a tão esperada pavimentação da rodovia que corta o município.
Após a reunião, a viagem prosseguiu com destino a Itaituba (PA). No entanto, o cronograma não pôde ser cumprido devido às precárias condições daquilo que se pode chamar de rodovia. Não existe trajeto definido, muito menos mão de direção. O fluxo de veículos acontece de acordo com as escassas condições e segue a rota aberta pelos tratores, único meio de transporte que supera os atoleiros e serve como suporte para os demais veículos. Para esse trabalho, os tratoristas cobram quantias significativas, maiores do que as que poderiam ser pagas em pedágios.
Os prejuízos para os caminhoneiros que trafegam pela BR-163 não se resumem às taxas pagas aos tratoristas. Peças são substituídas diversas vezes, mercadorias se deterioram e dias de trabalho são perdidos quando não se consegue transpor um atoleiro. Caminhões carregados de madeira, com maquinário de colheita e, até mesmo, microônibus de passageiros, são obrigados a encostar e esperar horas, ou dias.
Um desses gigantescos atoleiros impediu a equipe de prosseguir. O pernoite foi ao relento, perto do Rio Aruri. No alvorecer, a equipe estava com o pé na estrada. Nesse trecho, até Trairão, os atoleiros foram superados com dificuldade. Por esse motivo, pequeno percurso de 30 quilômetros foi vencido em 15 horas. A partir daí, a estrada tornou-se trafegável, apesar de ainda em situação precária.
Para honrar compromissos estabelecidos, a equipe passou a noite guiando pela BR-163, passando de madrugada pelo entroncamento com a BR-230 (Transamazônica), só descansando em Santarém, onde chegou em 19 de maio, às 10h30.
Em Santarém, a expedição fez rápida visita ao Porto e seguiu para Belém, onde no dia seguinte se reuniu com o governo paraense. No encontro, ficou claro o interesse do Estado na pavimentação da BR-163. Foram estabelecidos os papéis dos governos e agendados novos encontros objetivando uma participação do governo estadual na conclusão da pavimentação do trecho Cuiabá-Santarém.
A viagem foi importantíssima sobre vários aspectos: serviu para mostrar aos membros do governo federal as precárias condições da rodovia e evidenciar a situação de abandono das comunidades que vivem às margens do eixo viário.
O projeto de pavimentação será importante não só pelo seu aspecto econômico - criará um forte corredor de exportação pelo Norte do País -, mas também pelo aspecto social, envolvendo uma população de cerca de 2 milhões de habitantes que vivem em condições de subdesenvolvimento." (L.M.C.)

OESP, 27/06/2004, Nacional, p. A12

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