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Gisele das selvas

O Globo, Ela, p. 1-2
07 de Jul de 2007

Gisele das selvas
Jovem, bela e inspirada por Lévi-Strauss, antropóloga francesa se divide entre Paris e a Amazônia, onde muda até de nome para estudar os caiapós

Melina Dalboni

A antropóloga francesa Emilie Barrucand, de 27 anos, divide-se entre Paris e a Amazônia.

Loura, olhos azuis, magra - uma mistura de Paula Toller e Gisele Bündchen -, ela se transforma em outra Emilie durante metade do ano. Passa a se chamar Irenapti ou Kakwoj, pinta a pele com urucum e jenipapo e se integra à família do líder indígena Raoni.

O interesse por índios brasileiros foi despertado ainda criança. Aos 16 anos, começou a estudar português, e depois da leitura de "Tristes trópicos", de Claude Lévi-Strauss, decidiu que iria trabalhar pela difusão e preservação da cultura indígena. Desde 2001, Emilie passa de quatro a seis meses por ano na aldeia Metuktire, dos índios Caiapó, no Mato Grosso. A pesquisa de campo resultou na fundação da Associação Wayanga, da qual é presidente, na publicação do livro "Amazonie en sursis", lançado em 2005 na França, e no artigo "Água, nosso bem comum". Semana que vem, ela embarca em mais uma missão para mapear a cultura caiapó e recuperar lendas e histórias do povo para as futuras gerações da tribo.

- Alguns rituais e cerimônias estão se perdendo. Vou em busca dos especialistas culturais e dos mais velhos. E também vou gravar, a pedido do Raoni, as lendas e os mitos contados por ele - conta.

Na Amazônia, sem filtro solar

Emilie Barrucand não gosta de tratar sua experiência como algo exótico. Para a francesa, seu destino de trabalhar pela preservação da cultura indígena é certo e lógico. Ao ouvir o pedido da fotógrafa para que sentasse no chão para fazer algumas fotos, disse:
-
Prefiro não fazer. Não vai parecer: "Ah ela é uma índia branca?" Não quero isso.

Criada no sul da França, numa família de classe média, a antropóloga passava as férias na casa da avó materna, em Roubaix, no norte do país. Lá, acompanhava de perto o trabalho social desenvolvido pela avó com crianças carentes e idosos.

Ela foi meu grande exemplo e me ensinou a tentar fazer algo pelos outros.

Depois de terminar a escola, a francesa pensou em ser jornalista para escrever reportagens sobre a cultura indígena.

Começou a cursar Letras, mas mudou a matrícula para antropologia na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Chegou à conclusão de que precisava compreender a cultura para assim poder ajudá-los. Aos 19 anos, passou dois meses em Gana, como voluntária na construção de dormitórios para populações carentes na região do Volta.

- Foi como um teste para ver se estava pronta para enfrentar a Amazônia. Queria ver se tinha condições físicas e mentais de conviver com populações locais, num ambiente tropical e longe do conforto. Meus pais achavam muito perigoso - lembra.

Na volta à França, Emilie estagiou na revista "Grand Reporter" e começou a montar um projeto de pesquisa de campo na Amazônia. Ganhou três bolsas de estudo e marcou a data da viagem. Dez dias antes, soube que o cacique Raoni faria uma palestra na Maison de l'Amérique Latine, em Paris, e foi atrás dele.

Apresentou seu projeto e o seguiu em mais uma série de conferências na Bélgica. Antes de se despedir, Raoni disse: - Se você quiser, eu levo você.

Ela vai à caça com os homens
E Emilie veio. Chegou pela primeira vez aldeia Caiapó há seis anos sabendo muito pouco sobre os hábitos. Não entendia língua, muito menos as piadas que faziam com ela. Aprendeu tudo, inclusive o idioma, observando e ouvindo as histórias dos mais velhos. Quando está na aldeia, Emilie fica hospedada na casa de Raoni, onde divide espaço com 15 pessoas, entre filhas, netos genros do líder. Ali é tratada como uma sobrinha de criação de Raoni. Seu nome indígena foi dado pela irmã do cacique. Usa vestido de algodão, como o das índias, dorme na rede e come peixe e mandioca, base alimentar deles. O sacrifício, que para ela não existe, tem apenas um objetivo repetido exaustivamente pela antropóloga, o de "contribuir para a preservação da cultura e o respeito aos índios".

- Há bastante preconceito em relação aos povos indígenas. Meu objetivo é tentar dar informações às pessoas. Ouvi pessoas dizerem que os índios são primitivos, subdesenvolvidos, preguiçosos. Ao contrário.

Eles são muito inteligentes, cultos e engenhosos. São mestres em zoologia, agronomia, geologia e pedologia. A sabedoria deles não é superficial. O mundo fala em desenvolvimento sustentável como solução para a destruição ambiental , eles têm chave. Fruto do conhecimento sobre os recursos naturais acumulados por milênios, os povos indígenas desenvolveram um manejo sustentável exemplar. Eles poderiam ser nossos professores.

A experiência de passar seis temporadas na aldeia Caiapó provocou mudanças na vida de Emilie:
- Sou menos materialista e muito mais livre. A gente se sente em geral sossegado com uma casa, carro na garagem, celular. Como se não pudéssemos sobreviver sem isso. A sociedade ocidental acredita que a liberdade está nisso. Ao contrário, são escravizados. Tento não ficar presa a isso e consegui me afastar mais com os índios.

Em Paris, distante da cultura da subsistência, ela dá conferências sobre desenvolvimento desenvolvimento sustentável e cultura indígena. No início de junho, seu trabalho foi homenageado no Senado Federal da França e hoje ela mantém uma parceria com a prefeitura de Besançon. Emilie não é tão radical quanto parece ("Não sou uma monja", diz). Ela vai a shopping, faz luzes no cabelo e usa maquiagem, pouquíssima e de vez em quando, é verdade. Mas não gosta muito de falar sobre esses assuntos, prefere focar seu discurso nos índios.

A nécessaire brasileira traz o básico, xampu e sabonete. Nem protetor solar, para proteger a pele branquíssima, ela tem.

Na mala, a antropóloga leva blocos, gravador e miçangas, presente para as mulheres, que adoram colares e pulseiras:
- Para os índios, as miçangas são tão preciosas quanto as penas. E sempre reproduzem os desenhos das peles dos animais nos acessórios, assim como nas pinturas corporais. Os símbolos desta pulseira imitam os do jabuti - diz Emilie, mostrando sua pulseirinha colorida.

Quando está com os índios caiapós, Emilie participa das atividades femininas como plantar e cozinhar. O único privilégio que ela tem, justificado pela condição de pesquisadora, é o de observar os homens na caça e na pesca e acompanhar as lideranças para que possa compreender a complexidade da organização social e política deles.

Emilie destaca três pontos em que, para ela, os índios são mais desenvolvidos que os outros povos. A educação, a liderança política e a relação com o meio ambiente.

Emilie garante que as crianças caiapós são muito mais espertas e inteligentes do que as francesas. E os caciques indígenas são modelo do "chefe de Estado perfeito":
- O chefe caiapó precisa ser um exemplo para todos. É o contrário dos chefes da sociedade ocidental, que recebem salários altos e privilégios. O caiapó distribui tudo o que ele tem para a aldeia e precisa ser culto, humilde e observador.

Existe um ideal e, se ele não o respeita, o povo o ignora e ele perde sua função.

Óleo de coco para alisar o cabelo
Um dos preconceitos que Emilie tenta combater é o de que os caiapós são machistas. Segundo a antropóloga, as mulheres têm mais poder em casa. Quando se casa, o homem vai morar com os pais da noiva. Por este motivo, se o dois se separarem, quem sai de casa é ele. Existe o divórcio, sem burocracia, e as mulheres se casam, em média, duas vezes.

Tem uma divisão muito clara de trabalho, mas é uma sociedade igualitária. Os homens não têm poder sobre as mulheres. Até mesmo na política, o machismo é apenas aparente. Eles se reúnem na Casa dos Homens, no centro da aldeia.

Mas, quando voltam para casa, contam tudo para as mulheres e elas opinam.

Apesar disso, ela não acredita que a mulher consiga entrar na política a ponto de se tornar uma cacique.

- A sociedade caiapó tem uma cultura muito forte. Tem regras muito diferentes elas funcionam muito bem.

Na aldeia, a francesa adota a estética dos índios. Pinta a pele com urucum e uma mistura de jenipapo com carvão. Os desenhos, inspirados na pele dos animais, dão informação sobre o status social e a idade.

A estética é importante para eles.
Eles usam óleo de coco para alisar o cabelo. Usam enfeites de pena, algodão, miçangas. Com seus enfeites, pinturas e cabelos lisos, eles se sentem mais bonitos e atraentes.

As visitas freqüentes ao Brasil ("Meu país de coração") têm os índios como principal motivação. Mas a antropóloga também adora o "calor humano dos brasileiros" e a relação entre a natureza e cidade, sobretudo no Rio, onde está hospedada pela segunda vez. Quando não está escrevendo ou não tem encontros com especialistas em índios, vai praia em Ipanema. Emilie tem planos de um dia vir morar de vez no Brasil.

O Globo, 07/07/2007, Ela, p. 1-2

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