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Gigante abandonado

O Globo, Razão Social, p. 12-13
19 de Out de 2010

Gigante abandonado
Baía de Guanabara recebe toneladas de resíduos, esgoto e dejetos industriais

Na ponte Rio-Niterói, um papel de bala voa da janela de um carro. Alguns quilômetros à frente, na Estação das Barcas, no Centro de Niterói, um pescador lança sua rede a poucos metros de uma saída de esgoto. Enquanto isso, do outro lado das fronteiras da cidade do Rio de Janeiro, o pólo industrial de Duque de Caxias funciona a todo vapor, lançando restos do processo na água. E moradores da Ilha do Governador varrem lixo trazido para seus quintais pelas águas de praias do bairro. Basta um dia percorrendo o entorno da Baía de Guanabara para ver como os cidadãos, corporativos ou não, tratam mal um dos cartões-postais da cidade que quer ser, um dia, sustentável.
O principal problema é consenso entre especialistas: o esgoto. Há cinco estações de tratamento na extensão da Baía, mas este número é considerado insuficiente para a demanda. Ou seja, grande parte do esgoto é lançado in natura, não só por empresas como pelos cerca de nove milhões de habitantes que moram em municípios no entorno da Baía de Guanabara e não raramente a tratam como uma vala sem fim. Esse é o cenário atual da segunda maior baía do país, segundo a presidente do Instituto Baía de Guanabara (IBG), Dora Negreiros: - Não adianta limpar como se fosse uma piscina. A questão não é só tratar esgoto, mas manter a fiscalização das indústrias e educar a população. A parcela de esgoto tratado lançado na Baía não chega a 10%. E mesmo as empresas que cuidam do quintal de casa ao reduzir os dejetos não olham para a região. É preciso pressionar o governo e trabalhar junto com a população. Se as empresas não ajudarem no entorno, não vão sobreviver.
Embora mais controlados nas últimas duas décadas, os dejetos das companhias ainda criam problemas.
Segundo a Secretaria Estadual de Meio Ambiente, a Refinaria da Petrobras em Duque de Caxias (Reduc) está na lista de quem cria problemas, pois não cumpriu o Termo de Ajuste de Conduta assinado com a Secretaria em 2000 para tratar seus efluentes e foi multada recentemente. Deve assinar um novo TAC. A empresa se defende, dizendo que há um projeto de construção de uma nova estação de tratamento de despejos industriais (ETDI), prevista para entrar em operação no primeiro semestre de 2016.
Outra empresa que causa problemas à Baía, segundo a Secretaria, é a Pan-Americana Indústrias Químicas.
Mas a empresa nega. Em nota, diz que desconhece "qualquer fato que relacione suas atividades a possíveis danos ao ecossistema" e diz que que cumpre rigorosamente a legislação ambiental. Há estaleiros também atrasados nos controles ambientais, embora um TAC tenha sido assinado em 2002.
Percorrendo a Baía, é claro o isolamento da maior parte dos programas de despoluição dentro das corporações. No lado oeste, onde a maior parte das empresas se concentra, há comunidades cujo esgoto e os resíduos vão parar, invariavelmente, na Baía.
Há também muitas borracharias e lavajatos, muitos instalados próximo às indústrias, onde óleo de carro, produtos químicos e água suja rolam até se misturarem ao esgoto. Sem contar no grande e antigo vizinho, o Aterro Sanitário de Gramacho, que colabora para a poluição.
Guardadas as devidas proporções, os pequenos negócios são apontados pela presidente do IBG como outro grande problema. É o caso de empreendimentos irregulares de beira de estrada no caminho de Niterói a Manilha, por exemplo, ou sem apoio de infraestrutura em locais como a Ilha do Fundão, no centro universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Por lá, multiplicam-se restaurantes à beira da Praia da Ilha do Fundão, como o Bar do Alexandre, do casal Célia e Alexandre Dias. Em uma sexta-feira ao meio-dia, o lugar estava cheio de universitários e trabalhadores que pareciam alheios à quantidade de lixo trazida às areias pela maré e ao mau cheiro oriundo de uma saída de esgoto a apenas alguns passos. Segundo Célia, o local é abandonado pelo poder público e a areia só é limpa quando ela e o marido decidem fazer isso: - Semana passada, tive que pedir ajuda a amigos para retirar um sofá da água. Todo dia é uma quantidade absurda de lixo. E aqui na redondeza os outros restaurantes limpam a caixa de gordura direto na Baía mesmo. Só nós temos uma parceria e doamos óleo.
Mesmo assim, alguma coisa sempre vai parar no esgoto - contou.
Na mesma praia, o pescador de siris Miraci da Rosa trabalhava na areia coberta de lixo. Sapatos, colchonetes, absorventes, um ar-condicionado, uma perna de boneca e até oferendas dividiam espaço com sua caixa lotada de siris. Quando criança, ele pescava com o pai e se lembra de nadar com prazer naquelas mesmas águas. Hoje, Miraci só entra no mar de tênis, e explica: já machucou os pés muitas vezes dentro dágua: - É lixo pra dedéu. Um monte de coisa que espeta. Vidro, vareta, palito de churrasco, tem de tudo. E até meus siris às vezes ficam presos em alguma coisa suja e até morrem. Como ninguém vem aqui limpar, o jeito é queimar mesmo. Todo mundo aqui faz isso - disse ele, apontando uma marca de fogueira no chão, feita por ele para incinerar o lixo achado na praia.
Já se foi o tempo também em que morar na beira de uma das praias da Baía era luxo. Na Ilha do Governador, por exemplo, embora a paisagem continue sendo belíssima, ter as águas da Baía como vizinhas não é tarefa fácil.
Na casa da jovem Aline Mello, de 18 anos, em Tubiacanga, foi necessário isolar uma descida que saía do quintal e acabava direto na areia. O jeito que a família arranjou foi colocar uma porta deitada, para conter a montanha de lixo que se deposita ali quase todos os dias. Para Aline, uma pena, já que, quando se mudou, a menina acreditava que poderia pegar sol e mergulhar durante o verão: - Eu era menor, e diziam que iam despoluir a Baía. Quando meus pais me contaram que íamos morar na beira da praia, nunca imaginei que ia encontrar televisão encalhada na areia, bichos mortos e outras coisas. E tem vizinhos meus que, mesmo assim, nadam de vez em quando.
Nem sempre ficar longe da água é opção. Para os pescadores é questão de sobrevivência. E não são poucos os que trabalham ao redor da Baía. No Gradim, por exemplo, em São Gonçalo, vários já tiveram ao menos algum tipo de micose, e até pouco tempo eram comuns os casos de hepatite. Segundo o presidente da associação da colônia de pescadores do local, Reinaldo de Almeida, eles trabalham próximos a uma saída de esgoto, e já não têm facilidade de garantir o sustento no local: - Vários rios deságuam aqui perto cheios de água suja. A gente tem que trabalhar dentro da água, expostos a isso tudo. E com a chegada de grandes empresas e estaleiros, nossas embarcações não podem ir muito longe. E o barulho debaixo da água afasta os peixes - contou ele, citando seis tipos que não aparecem mais por ali, como a canhanha e a piraúna.
No entanto, o cenário na vila dos pescadores do Gradim mostra que a população ainda não entende sua participação no problema. Na frente das casas, o lixo se acumula. E nem todo vem da Baía. Durante o tempo em que a equipe de reportagem estava no local, uma mulher limpou uma caixa na areia e crianças jogaram palitos de picolé no chão próximo a Baía sem preocupação.
Uma esperança vem no compromisso firmado pelo Rio de Janeiro de despoluir a Baía para receber a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Segundo a secretária estadual do Meio Ambiente, Marilene Ramos, será lançado em breve um novo programa de despoluição, que está em negociação com o Banco Interamericano de Desenvolvimento: - Os maiores problemas são os lixões e o esgoto. Temos um planejamento para melhorar isso e queremos assinar o contrato no primeiro semestre de 2011. O investimento será de R$ 1,2 bilhão.

IBG baiadeguanabara.org.br

O Globo, 19/10/2010, Razão Social, p. 12-13

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