VOLTAR

Gasto com saneamento no pais e o menor em 10 anos

FSP, Brasil, p.A4, A6
16 de Jan de 2005

Ritmo de investimento adiaria para 2038 a meta de universalizar a rede
Gasto com saneamento no país é o menor em 10 anos
Marta Salomon
Da sucursal de Brasília
Fim de tarde de quinta-feira e o mau cheiro virou rotina: os meninos nem tapam o nariz quando saltam sobre o esgoto a céu aberto para atravessar a rua na quadra 59 da favela Itapuã, distante cerca de 30 km do Palácio do Planalto.
A favela é um exemplo de uma realidade expressa em números: os dois primeiros anos do governo Luiz Inácio Lula da Silva registraram os mais baixos investimentos desde 1995 em água e esgoto. No governo que diz ter elegido as obras em saneamento como uma das suas prioridades, o ritmo de gastos pode custar algumas décadas a mais para universalizar os serviços na área.
Gastos de investimento e custeio em saneamento urbano e rural feitos com dinheiro de impostos federais, autorizados no ano e pagos até 31 de dezembro em quatro ministérios diferentes, consumiram R$ 249,2 milhões em 2004. Com os desembolsos de empréstimos com dinheiro do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), de R$ 240 milhões, as duas principais fontes de financiamento públicas em saneamento básico não chegaram a R$ 500 milhões no ano.
Embora esse valor represente mais que o triplo dos gastos registrados pelos mesmos critérios em 2003 (R$ 60 milhões), ainda é menor que o necessário para universalizar os serviços de água e esgoto até 2020. O cumprimento dessa meta custaria R$ 178 bilhões, segundo estudo realizado pelo Ministério das Cidades.
De acordo com projeção feita pela Aesbe (Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais), mantido o atual ritmo de gastos públicos em saneamento, a universalização ficaria para 2038. O levantamento oficial mais recente, feito em 2002, indica que mais de dois a cada dez (23,3%) domicílios urbanos do país não têm esgotamento sanitário, e um entre dez (10,7%) não dispõem de água encanada.
Compromissos
O governo prefere contabilizar como gastos as verbas públicas contratadas nos dois últimos anos -e que demoram mais de um ano para sair do papel e podem até mesmo ser canceladas, como ocorreu com uma parte dos projetos escolhidos em 2003.
Considerando os compromissos de gastos (chamados empenhos, ainda numa fase inicial) do Orçamento da União e os empréstimos contratados pela Caixa Econômica Federal, tampouco pagos, o Ministério das Cidades chega a R$ 5,2 bilhões de investimentos nos dois primeiros anos do mandato. Para 2005, o governo ainda não definiu o tamanho do corte nos gastos públicos.
Para comparar com a série histórica de investimentos entre 1995 e 2002 divulgada em dezembro pelo próprio governo, em documento conjunto das Cidades e da Fazenda, deveriam ser usados os gastos do Orçamento na fase imediatamente anterior aos pagamentos (empenhos liquidados), cujos números não estavam disponíveis nas Cidades até sexta-feira. No caso do dinheiro do FGTS, a série histórica considera os desembolsos.
Sérgio Gonçalves, secretário nacional interino de Saneamento Ambiental, alega que os investimentos em água e esgoto levam mais tempo para sair do papel do que obras em estradas, por exemplo. "É um ritmo necessariamente mais lento, que segue todo um rito para qualificar o gasto", disse. Segundo o secretário, a conclusão de uma obra contratada com recursos da União a fundo perdido ou empréstimo pode durar três anos.
Ermínia Maricato, ministra interina das Cidades, atribuiu um ritmo mais lento nos pagamentos a exigências mais rígidas adotadas pelo governo Lula para conter irregularidades comuns em obras de saneamento, como a construção de redes de esgoto sem estação de tratamento. "Não nos interessa simplesmente gastar, não queremos demorar, mas não podemos abrir mão de um controle maior", disse.
Relatório de gestão da Controladoria Geral da União de 2003 encontrou obras paralisadas e inacabadas, além de falhas nos projetos, entre outras irregularidades. Embora a pulverização dos recursos públicos no setor seja reconhecidamente um obstáculo para a eficácia dos gastos em saneamento, o governo já se comprometeu com as emendas individuais apresentadas por deputados e senadores em 2005.

Para especialista, menos recursos podem gerar "retardamento" na queda de doenças como diarréia infantil
Investimento menor breca queda de doenças
Michele Oliveira
Da redação
A redução de investimentos em saneamento básico (abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de lixo) pode fazer com que a tendência de queda das doenças relacionadas ao saneamento inadequado perca o fôlego. A opinião é do epidemiologista Eliseu Waldman, da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Segundo Waldman, menos recursos investidos em saneamento básico não farão com que doenças relacionadas a esse tipo de infra-estrutura inadequada aumentem. O resultado na saúde pública, de acordo com o epidemiologista, seria um "retardamento na velocidade de queda" de doenças como diarréia infantil, por exemplo.
O crescimento do número de doenças não haveria porque, segundo Waldman, há uma "boa cobertura" de saneamento básico no país, além da tendência de queda dessas doenças.
Nos últimos anos o país vê caírem os números de internação e de óbito por doenças relacionadas ao saneamento inadequado.
De acordo com Indicadores de Desenvolvimento Sustentável, divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) no ano passado, o número de internações por doenças como diarréia, dengue, febre amarela e leptospirose caiu de 730 por 100 mil habitantes em 1993 para 375 por 100 mil habitantes em 2002.
Uma diminuição de recursos do governo em saneamento pode fazer com que essa queda se torne mais lenta nos próximos anos.
"Lógico que não é uma decisão favorável à saúde e às condições de vida da população. [Diminuir investimentos em saneamento] É uma decisão ruim, sem dúvida", afirmou o epidemiologista.
Segundo Carlos Pontes, do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, em Recife, vinculado à Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), com menos recursos haveria, na hipótese mais otimista, "manutenção" da situação atual, do ponto de vista da saúde pública. Ou seja, a queda das doenças ligadas ao saneamento inadequado ficaria, nos próximos anos, estagnada com menos investimentos.
Pouco investimento
De acordo com Pontes, a menor ocorrência das doenças ligadas ao saneamento inadequado "acontece por conta da atuação da saúde" e não por melhorias recentes promovidas no saneamento básico.
"Da década de 90 para cá, os investimentos em saneamento são muito baixos", afirma.
"Projetos do SUS -como o Programa Saúde da Família e o Agente Comunitário de Saúde- criam proximidade com as pessoas e conseguem resolver rapidamente essas doenças, evitando tanto a internação como o óbito", afirma. "Mas as pessoas seguem se reinfectando."
"Saneamento básico não se trata apenas de saúde pública. A falta de saneamento é uma injustiça social, é uma questão de inclusão", diz Pontes.
Modos de transmissão
As doenças relacionadas à precariedade do saneamento básico são divididas em quatro principais categorias.
Elas podem ser transmitidas por meio de fezes (diarréia e hepatite A), por meio de inseto vetor (malária e dengue), por meio do contado com a água (leptospirose) e podem estar relacionadas à higiene (micoses).
Em caso de cortes em saneamento, Eliseu Waldman diz ser menos pior que eles aconteçam no tratamento de esgoto, a última e mais cara fase. Abastecimento de água e coleta de esgoto são fundamentais.

Projeto vai ao Congresso em fevereiro
Os investimentos públicos em ritmo lento não são compensados por investimentos privados, que aguardam a definição de um marco regulatório para o setor de saneamento básico. Regras claras inexistem desde os anos 80.
Depois de sucessivos adiamentos, o governo estima que sua proposta será encaminhada ao Congresso em fevereiro, tão logo os deputados e senadores voltem das férias. O texto, em debate desde o primeiro ano do governo Lula, já foi objeto de trabalho de um grupo interministerial e ainda passa por análise de juristas.
A versão mais recente da proposta enfrenta críticas, sobretudo ao entendimento do governo de que cabe às cidades o poder de ceder à iniciativa privada a exploração de serviço de água e esgoto.
A Aesbe (Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais) avalia que o modelo defendido pelo governo pode comprometer mais a universalização dos serviços de saneamento em cidades menores e mais pobres.
A intenção da proposta é permitir consórcios públicos de municípios para tocar as obras e serviços. Esse modelo substituiria o criado na década de 70, de subsídios cruzados, em que as tarifas cobradas por empresas estaduais dos municípios maiores cobre investimentos nos municípios menores. A Aesbe alerta que os investimentos com recursos próprios das empresas estaduais tendem a cair já desde 2004 (os balanços serão fechados em abril), devido ao aumento dos impostos cobrados dos prestadores de serviços.
Em 2004, em recolhimento de PIS/Pasep e Cofins, as empresas estaduais pagaram R$ 923 mi, mais que a União pagou em investimentos com recursos a fundo perdido e empréstimos com dinheiro do FGTS. Em 2005, o recolhimento deve passar de R$ 1 bi.

FSP, 16/01/2005, p. A4, A6

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.