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Gas natural, apendice do setor eletrico?

OESP, Economia, p.B2
Autor: PIRES, Adriano
10 de Out de 2005

Gás natural, apêndice do setor elétrico?
Adriano Pires
Movido pelo temor de um 'apagão' de energia elétrica no final desta década, o governo pretende apresentar um projeto de lei para o gás natural. Caso concretize suas intenções, colocará toda a cadeia de gás natural a reboque dos destinos do setor elétrico, criando sérios impedimentos para o seu desenvolvimento.
Seguindo o objetivo de 'modicidade tarifária a qualquer custo', que balizou a idealização das regras implementadas para o setor elétrico em 2004, a proposta de novo modelo tem como âncora a criação de um mercado secundário compulsório para o gás, idealizado com o objetivo principal de reduzir o custo da energia elétrica. Nesse mercado secundário, as usinas térmicas vão vender, por intermédio das distribuidoras de gás canalizado, seus contratos de gás com desconto na forma não firme, significando que o consumidor desse contrato poderá ter seu fornecimento interrompido a qualquer momento, caso as usinas necessitem utilizar o combustível. Em função das receitas adicionais provenientes desse mercado secundário, as térmicas teriam uma diminuição nos seus custos fixos, o que levaria a uma redução dos custos da energia gerada e vendida aos agentes do mercado de eletricidade.
Aparentemente benéfica aos bolsos dos consumidores, a idéia corrói, no entanto, a cadeia de valor do gás natural, inviabilizando investimentos imprescindíveis para o seu desenvolvimento. Isso porque, para viabilizar o crescimento das redes de transporte e distribuição e expandir a produção, os agentes no mercado de gás necessitam de um fluxo de receitas previsível, resultado de contratos de longo prazo, em que parcela da conta é paga pelos compradores com ou sem a utilização do energético. Em contrapartida a essa obrigatoriedade de pagamento, esses consumidores têm a garantia do recebimento das quantidades contratadas, estipuladas nos chamados contratos firmes.
Na medida em que os consumidores com contratos firmes perceberem que as usinas térmicas não são despachadas com freqüência, haveria incentivos à migração para contratos não-firmes, mais baratos e de baixa probabilidade de serem interrompidos. Essa hipótese reduziria os fluxos de receitas necessários ao pagamento, ao longo da cadeia de gás, das obrigações contratuais que sustentam a expansão da infra-estrutura e da oferta de gás natural. Haveria, assim, menor incentivo para os investimentos num momento em que já há escassez do energético para o atendimento da crescente demanda, em particular na Região Nordeste. Num cenário de escassez de energia elétrica, seja por expansão mais acelerada do consumo ou por razões climáticas, o risco de interrupção do fornecimento será mais alto. Conseqüentemente, as indústrias que migraram para contratos não-firmes terão elevados gastos com combustível backup, transformando o que parecia ser uma ótima idéia para cortar custos de energia numa enorme conta a pagar.
Em ambas as situações, a imprevisibilidade transmitida ao mercado de gás adicionará incertezas em relação às receitas dos agentes, aumentará os riscos dos investimentos ao longo da cadeia e inibirá a expansão da oferta, com conseqüências negativas para os consumidores finais.
Ao obrigar à criação de contratos não-firmes e afetar as receitas futuras das concessionárias estaduais de distribuição de gás canalizado, a proposta de mercado secundário do governo federal invade a esfera de competência dos Estados no que se refere à regulamentação da distribuição de gás aos consumidores finais, estabelecida na Constituição federal. Desta forma, a proposta ameaça gerar conflitos intermináveis entre reguladores estaduais e a esfera federal, o que ofuscará o objetivo de promover investimentos e o crescimento sustentado do mercado.
A organização de um verdadeiro mercado secundário acompanha, naturalmente, o aumento do número de agentes na comercialização de gás, regras efetivas de acesso à infra-estrutura de transporte e distribuição, dispositivos transparentes para cessão de capacidade e disseminação de inovações contratuais. Sem a gestação dessas precondições, o mercado secundário proposto pelo governo aparenta mais um conjunto de regras autoritárias, voltadas, unicamente, para amenizar, com resultados duvidosos, os custos de contratação de curto prazo da energia elétrica.
A busca de soluções mágicas e intempestivas para o mercado de energia retrata, na verdade, falhas das políticas e do planejamento governamentais, que não resolveram os impedimentos legais nem deram os sinais econômicos adequados para o aumento da capacidade de geração de eletricidade e da expansão sustentada da oferta de gás no Brasil. No que se refere à geração térmica, observa-se que as diretrizes para sua inserção dentro do sistema elétrico brasileiro deveriam constar do novo modelo institucional do setor elétrico, e não numa lei de gás natural. Além disso, a promoção de sua competitividade deveria estar baseada na promoção, a médio prazo, da elevação da oferta e do incremento da competição na comercialização do gás natural.
Na Lei no 9478/97, a chamada Lei do Petróleo, o gás natural recebeu tratamento idêntico ao de outros derivados de petróleo. Ao longo do tempo, essa discrepância resultou num marco legal insuficiente para desenvolver a indústria do gás natural no âmbito federal e inapropriado para o exercício de algumas de suas atividades, principalmente o transporte por gasodutos. Agora, a proposta de regulamentação apresentada pelo governo incorre em erro similar, ao conceber regras que submetem o gás natural aos caminhos (ou descaminhos) da regulação do setor elétrico.

Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE), é professor da UFRJ

OESP, 10/10/2005, p. B2

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