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Garimpo ilegal e desastres levam mineração a buscar rótulo sustentável

FSP, Ambiente, p. B4
20 de Jul de 2023

Garimpo ilegal e desastres levam mineração a buscar rótulo sustentável
Repaginação para conter perdas com avanço garimpeiro é vista com ceticismo por ambientalista e estudiosos

Fabio Victor
19.jul.2023 às 13h42

Desastres ambientais, pressão internacional e o avanço do garimpo ilegal no governo Bolsonaro levaram o setor mineral brasileiro a buscar no último ano um reposicionamento de imagem para incorporar um rótulo de boas práticas de sustentabilidade.
Se para os críticos a expressão "mineração sustentável" não passa de um oximoro -uma contradição em termos-, o sindicato das grandes mineradoras do país passou a adotá-la como uma espécie de mantra.
A imagem do segmento teve imenso impacto negativo primeiro com a tragédia de Mariana, em novembro de 2015, que matou 19 pessoas, devastou comunidades, dasabrigou centenas de famílias e desgraçou o rio Doce. Depois veio o desastre de Brumadinho, com 270 vítimas fatais e mais ruína humana, material e ambiental.
Nos últimos anos, a expansão do garimpo ilegal, turbinada pelo aumento do preço do ouro no mercado internacional e pela permissividade na gestão Bolsonaro, pioraram a situação. As mineradoras se queixam de que a sociedade não raro confunde sua atividade industrial com a de garimpeiros à margem da lei.
Por fim, mas não menos importante, as exigências do mercado internacional quanto às práticas e origem dos minerais exportados tornaram inevitável uma mudança de postura.
O reposicionamento de imagem ganhou força sobretudo depois da contratação, pelo Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração), entidade que representa as principais mineradoras do país, de Raul Jungmann como diretor-presidente.
Político com bom trânsito nos três Poderes em Brasília, no empresariado e nas Forças Armadas, ex-deputado federal e ex-ministro do Desenvolvimento Agrário no governo Fernando Henrique Cardoso e da Defesa e da Segurança Pública no governo Michel Temer, ele assumiu o cargo em maio de 2022. Desde então, é um mascate da agenda ESG (sigla em inglês para boas práticas ambientais, sociais e de governança) das grandes mineradoras.
O Ibram reúne gigantes multinacionais, como Anglo American, Kinross e a própria Vale, responsável pela tragédia de Brumadinho e sócia (com a BHP) da Samarco, responsável pelo desastre de Mariana. Representa um setor que faturou R$ 339 bilhões em 2021 e R$ 250 bilhões em 2022.
Jungmann conta que foi contratado por meio de um headhunter. Durante o processo de seleção, o então vice-presidente da Vale Luiz Eduardo Osorio, com quem já mantinha boas relações, lhe transmitiu a missão de fazer o tal reposicionamento de imagem.
Um dos sinais mais claros do "rebranding" foi a inflexão em relação ao projeto de regulamentar a mineração em terras indígenas.
Quando o governo de Jair Bolsonaro enviou ao Congresso um projeto com essa intenção, em 2020, o Ibram o endossou sem rodeios. "A iniciativa é adequada e deve ser apoiada pelos brasileiros", escreveu o então diretor-presidente do órgão, Flávio Ottoni Penido.
No ano passado, a base de Bolsonaro no Parlamento fez uma ofensiva para aprovar a liberação, mas o Ibram, já presidido por Jungmann, modulou o discurso, externando ressalvas ao projeto, mas deixando espaço para apoiar a prática no futuro.
Jungmann alega que nunca houve apoio efetivo ao projeto, mas "silêncio". "É um setor muito retraído, que não lida diretamente com o público. E que, de certa forma, tem boas posições em termos de sustentabilidade, mas não vinha colocando isso."
Diz também que, por falha de comunicação, a importância da mineração é subestimada. "Tudo em torno de você nesse instante ou é mineral ou foi industrializado a partir de minérios. A água que você bebe é minério. A luz, o filamento de tungstênio, é minério. O celular tem 14 minerais diferentes, mas ninguém se dá conta disso", diz. "A mineração só aparece na hora do desastre."
Escancarada na mais recente tragédia humanitária na Terra Indígena Yanomami, a voracidade do garimpo à margem da lei nos quatro anos de governo Bolsonaro criou um concorrente forte à indústria. Causou danos ao faturamento (segundo o Ibram, são 50 toneladas de ouro ilegal por ano, quase metade das pouco mais de 100 toneladas produzidas no país) e levou o setor a apoiar iniciativas no Parlamento e na sociedade civil para conter a sangria garimpeira, como o projeto para regulamentar o comércio de ouro e substituir a atual lei da "declaração de boa-fé".
Jungmann diz já ter feito três reuniões com o Banco Central para debater como aprimorar a fiscalização das DTVMs, instituições que atuam na comercialização com autorização do BC.
O Ibram apoiou o lançamento, no final de março, da Frente Parlamentar da Mineração Sustentável no Congresso (que tem como vice-presidente o senador Zequinha Marinho, do PL-PA, defensor histórico do garimpo) e buscou o governo Lula se apresentando como parceiro no combate à extração ilegal na Amazônia e projetos correlatos.
Certo alinhamento pode ser percebido também no discurso. Nos últimos meses, Lula tem repetido que a Amazônia não pode ser encarada como um "santuário ecológico", mesmos raciocínio e palavras utilizados recentemente por um executivo da Vale.
Outras iniciativas do Ibram foram a publicação do "Livro Verde de Mineração", com ações do setor para mitigar o impacto ambiental e exemplos de áreas de mineração adaptadas a novos usos após o fechamento -informa, por exemplo, que o lago do parque Ibirapuera e a raia da USP já foram áreas de extração de areia-, e a criação de um aplicativo com a situação em tempo real e o grau de segurança das barragens.
A próxima cartada é a organização da Conferência Internacional Amazônia e Novas Economias, de 30 de agosto a 1o de setembro, em Belém. "Queremos fixar o compromisso de preservação das florestas, de respeito à preservação das terras e dos povos originários e à natureza", diz Jungmann.
O sul-coreano Ban Ki-moon, ex-secretário-geral da ONU, e o presidente da Colômbia Iván Duque estão entre os convidados. O patrocinador principal do evento será a Vale.
Todo esse esforço impõe uma questão: mas existe mineração sustentável?
Márcio Santilli, ex-presidente da Funai e um dos fundadores do ISA (Instituto Socioambiental), responde com uma gargalhada. "A mineração se reporta a uma riqueza natural que se esgota. Então a sustentabilidade é em termos, porque você subtrai da natureza algo para sempre, a base natural se exaure com o tempo. Por mais longevo que seja o projeto -uma jazida pode durar cem anos-, o que fica no lugar? Os exemplos que temos não são muito bons", diz.
Professor de economia da Unifesspa (Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará), Giliad de Souza Silva segue na mesma toada.
"Por definição, a mineração retira recursos da natureza para transformar em outra coisa. Mostrar que isso é sustentável exige um esforço argumentativo muito grande", afirma Silva, um dos coordenadores do projeto De Olho na Cfem, que monitora a aplicação dos royalties da mineração em municípios com grande produção.
A mudança de discurso do Ibram, opina o professor, é um movimento para "transformar o investimento dos acionistas num investimento limpo, que não depreda". "Para mim, é um caso típico de 'greenwashing'", afirma, aludindo à propaganda enganosa sobre boa prática ambiental.
O jornalista Maurício Ângelo, criador do Observatório da Mineração, também considera que "mineração sustentável é uma contradição, pela própria natureza da operação". "Seja na de grande escala industrial, com suas explosões gigantescas, ou num garimpo ilegal na Amazônia destruindo rios com dragas. Basta ver vídeos ou visitar esses lugares para ver que é impossível", diz.
Para o presidente da Febrageo (Federação Brasileira de Geólogos), Caiubi Kuhn, embora toda atividade minerária tenha impacto à natureza, é possível fazer mineração com maior sustentabilidade. "Defendemos o mapeamento, saber de antemão o que tem nessas áreas, precisamos conhecer nosso subsolo, e isso depende de investimento em pesquisa e inovação."
Kuhn diz ver o reposicionamento no discurso das empresas como "um esforço positivo".
"Mas, em termos práticos, não vimos mudança. A Febrageo defende uma política de desenvolvimento e inovação, melhoria nos processos para redução de impacto ambiental, já prevista na lei ambiental mas não regularizada. É muito triste que depois de Brumadinho, de Mariana e da tragédia Yanomami o setor não tenha passado por uma reestruturação profunda."
Assim como todos os outros entrevistados, Kuhn afirma que um grande entrave à tentativa de mitigar os efeitos da atividade ao meio ambiente é o sucateamento da ANM (Agência Nacional de Mineração).
O déficit de pessoal e as debilidades de estrutura e orçamento levaram a seguidas paralisações de servidores desde maio e preocupam toda a cadeia produtiva. Sem a solução dos problemas, a meta da "mineração sustentável" torna-se tanto mais complexa.

FSP, 20/07/2023, Ambiente, p. B4

https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2023/07/garimpo-ilegal-e-desastr…

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