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Futuro de 14 mil índios é o centro da polêmica de hidrelétrica no Pará

O Globo, Economia, p. 32
24 de Jun de 2007

Futuro de 14 mil índios é o centro da polêmica de hidrelétrica no Pará
Construção da usina de Belo Monte coloca aldeias em lados opostos

Fellipe Awi
Enviado especial

Alçada pelo governo à condição de obra prioritária do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, chegou, talvez, a sua última encruzilhada. Nela estão cerca de 14 mil índios que vivem às margens do Rio Xingu.

Para as partes envolvidas numa polêmica que já dura mais de 20 anos, eles são agora o último obstáculo para quem defende a usina ou a tábua de salvação para quem a rejeita. Cada um dos lados dessa disputa acusa o outro de usar os indígenas a favor de sua causa.

O GLOBO visitou as duas aldeias que serão mais atingidas caso a barragem seja construída, os Jurunas do Paquiçamba e os Araras do Maia. Elas ficam na Volta Grande do Xingu, como é chamada a enorme curva que o rio faz cerca de 100 km depois de Altamira. Especialistas contrários ao projeto sustentam que esse trecho vai perder tanta água que corre o risco de secar no verão da Amazônia (de julho a dezembro). Outros 17 povos de 11 terras indígenas também seriam afetados por impactos sobre a flora e a fauna da região.

Em nota oficial, a Eletrobrás diz que "as conseqüências que poderão ocorrer para as comunidades indígenas serão avaliadas e tratadas com a Funai".

Os que defenderam estatal foram beneficiados
De lados opostos do rio, quase frontalmente, jurunas e araras refletem como os índios ganharam status de peça-chave na disputa entre a Eletrobrás, que retomou os estudos de impacto ambiental em janeiro, e o Ministério Público Federal e do Pará, autores de diversas ações contrárias à construção de Belo Monte. Os jurunas, que são a favor da barragem, ganharam da estatal um conjunto de placas de energia solar e a promessa de que sua terra será triplicada. Os araras continuam sem luz elétrica e têm pouca perspectiva de melhorias nas condições de vida.

- Cooptação de índios é uma estratégia de baixo nível que a Eletrobrás está usando. Eles não fizeram o mesmo com os araras porque esses ainda não têm a terra homologada - afirma o procurador da República em Altamira, Marco Antonio Delfino.

Estão fazendo com os paquiçambas o que fizeram com os parakanãs em Tucuruí.

Índio não é burro, se o sujeito lhe dá energia, ele vai ficar a seu favor - completa o antropólogo indigenista Antonio Carlos Magalhães.

Antenas parabólicas em meio à pobreza
Os jurunas do Paquiçamba são o único povo indígena do Xingu a favor de Belo Monte. O cacique Manoel Juruna não gosta de falar sobre o assunto, mas já deixou sua posição clara ao Cimi, o Conselho Indigenista Missionário. Na aldeia, placas de energia solar e antenas parabólicas formam um cenário inusitado no meio de tanta pobreza. Todos sabem quem deu o presente e ninguém mais imagina a vida sem luz para a TV.

- É outra coisa a vida alumiada. Era até difícil andar pela aldeia à noite - conta a mulher do cacique, Maria Juruna. Quando tem jogo de futebol na TV, os araras atravessam o rio para se juntar aos vizinhos.

Na aldeia deles, além da luz, faltam água potável e posto de saúde. Segundo o cacique José Carlos Arara, a Eletrobrás já mandou técnicos duas vezes à comunidade, mas nunca lhes explicou o que acontecerá com os 77 índios da aldeia. Os araras já estão ali há mais de 70 anos. Assim como os jurunas, eles guardaram pouco da cultura de seus ancestrais e vivem mais como povos ribeirinhos.

- Nossa comida quase toda vem do Xingu. Com menos água, teremos menos peixes e a malária vai crescer. Essa represa vai mudar toda a nossa vida - reclama o cacique.

O Ministério Público Federal e do Pará e diversos movimentos sociais organizaram um encontro de povos indígenas em Altamira, no início do mês. Ali, kaiapós se vestiram e dançaram como fazem em tempos de guerra. Outros, como os Araras da Cachoeira Seca, chamaram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de inimigo porque ele quer a construção de Belo Monte. No fim, 17 povos assinaram uma carta endereçada a Lula posicionando-se contra a usina.

A única aldeia que não participou foi a dos paquiçambas.

- Esse pessoal está usando os índios como massa de manobra porque sabem que eles sensibilizam até a comunidade internacional afirma Valmir Soares, conselheiro do Consórcio Belo Monte, que reúne prefeitos e empresários da região a favor da hidrelétrica.

O Ministério Público argumenta que o Congresso Nacional não poderia ter autorizado a retomada dos estudos sem ouvir os índios, como manda o artigo 231 da Constituição. A Eletrobrás diz que "todos os grupos sociais envolvidos serão ouvidos".

- Belo Monte vai mudar a época de colheita, de pesca e os peixes vão desaparecer.

Existe a possibilidade de toda uma etnia sair do lugar onde está há centenas de anos. A Eletrobrás está desconsiderando isso afirma o procurador-chefe do MPF no Pará, Felício Pontes.

Ministério Público questiona estudo
Empresas teriam acesso a informações privilegiadas

A retomada dos estudos de impacto ambiental no Rio Xingu criou uma nova polêmica em torno da hidrelétrica de Belo Monte. Por meio de uma ação civil pública contra a Eletrobrás, o Ministério Público Federal (MPF) está questionando os autores do EIA-Rima, um consórcio privado formado por Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Norberto Odebrecht. O procurador Marco Antônio Delfino afirma que as três empresas foram contratadas sem licitação pela estatal, para um convênio de cooperação técnica.

Queremos saber até que ponto estão pré-fabricando necessidades numa obra milionária. Essas empresas podem ser beneficiadas pela construção da hidrelétrica. Estão querendo fazer a usina a toque de caixa, com pouca transparência - diz Delfino.

O procurador afirma que, no mínimo, tentará impedir que as empresas participem das obras ou de qualquer licitação da usina, pois teriam informações privilegiadas. Os gestores técnicos dos estudos, Carlos Moya e Eduardo Martins, argumentam que o consórcio está apenas cumprindo o decreto legislativo que autorizou a retomada dos trabalhos e que não há necessidade de licitação.

- O consórcio está fazendo um investimento de risco. Se Belo Monte for considerada inviável, ele perde dinheiro. Se for viável, o grupo investidor que ganhar a concessão vai nos ressarcir. Tudo é feito dentro da maior transparência - informa Moya.

Moya e Martins, no entanto, dizem que as empresas têm o direito de participar da construção e até de se juntar ao grupo de investidores na concorrência pela concessão. O EIA-Rima depende ainda da formulação do termo de referência por parte do Ibama. Como, em geral, o termo é um documento inicial do estudo, os procuradores vêem aí outra irregularidade.

A relação entre o custo da obra, orçada em R$ 7,5 bilhões, e a produção de energia também é polêmica. Na ação pública do MPF, os procuradores usam os estudos do pesquisador Oswaldo Sevá, da Unicamp, que diz que a usina produzirá em média 1.300Mw, o que seria pouco para o tamanho do investimento. Só produziria mais se fossem construídas outras barragens no Xingu, o que agravaria danos ambientais e sociais.

No verão, o fluxo de água é muito baixo.
A usina vai funcionar a pleno vapor apenas quatro meses por ano - diz Delfino.

Segundo a Eletrobrás, os estudos de Sevá não levam em conta que a usina Belo Monte estará interligada ao Sistema Integrado Nacional. Isso significa que, quando estiver produzindo pouco, será suprida por outras usinas. Assim, ela terá uma potência instalada de 11.181Mw e produzirá 4.796Mw de energia firme, atrás apenas de Itaipu no Brasil.
Há divergências ainda sobre o tamanho do alagamento que será provocado pela usina.

A previsão inicial da Eletrobrás foi corrigida de 1.225 quilômetros quadrados para 440 quilômetros quadrados. Para Sevá, o alagamento chegaria a oito mil quilômetros quadrados. (Fellipe Awi)

O Globo, 24/06/2007, Economia, p. 32

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