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Funai vai à Justiça contra a Vale do Rio Doce

FSP, Dinheiro, p. B7
22 de Nov de 2006

Funai vai à Justiça contra a Vale do Rio Doce
Empresa diz que decreto a desobriga de repassar dinheiro aos índios; para presidente da Funai, mineradora foge do dever
Funai pede na Justiça que a Vale mantenha repasse de R$ 596,9 mil por mês, para prevenir revolta dos índios; juiz ainda não se pronunciou

ELVIRA LOBATO
DA SUCURSAL DO RIO

A Funai (Fundação Nacional do Índio) entrou com ação cautelar na Justiça Federal de Marabá (PA) para obrigar a Vale do Rio Doce a reiniciar a ajuda financeira aos índios xicrins, que vivem em áreas próximas da mina de Carajás, no sudeste do Pará. A ajuda foi interrompida no fim de outubro, depois da invasão da mina por 200 guerreiros da tribo.
A empresa afirma que um decreto do ex-presidente FHC, que criou a Floresta Nacional de Carajás, em 1998, desobrigou-a de repassar dinheiro às comunidades indígenas próximas da jazida e da ferrovia de Carajás e que continuou a fazê-lo, a partir de então, por mera liberalidade.
A ação cautelar pede que a Vale continue a repassar R$ 596,9 mil por mês aos xicrins, para prevenir uma revolta dos índios, que estariam em "situação periclitante". Até ontem à tarde, o juiz não havia se manifestado. São cerca de mil índios, divididos em duas aldeias.
O presidente da Funai, o antropólogo Mércio Pereira Gomes, diz que não se trata de liberalidade, mas de obrigação legal e contratual da Vale. "É uma compensação por ela ter recebido gratuitamente do governo as jazidas de Carajás." Ele diz que a jazida está em áreas de posse imemorial dos índios, onde estão restos mortais de seus antepassados.
A Vale cancelou o convênio existente havia 17 anos com os xicrins e suspendeu o pagamento das duas últimas parcelas referente ao repasse de R$ 9 milhões acertado para este ano. O acirramento coincide com a aquisição, pela Vale, da segunda maior mineradora mundial de níquel, a Inco, por cerca de US$ 17 bilhões.
A Vale lucrou R$ 4 bilhões no último trimestre. A ajuda prevista para os xicrins em 2006 corresponde ao lucro de quatro horas e meia nesse período. A empresa diz que repassa cerca de R$ 10 mil ao ano por índio e que, proporcionalmente, desembolsa dez vezes mais do que a Funai e a Funasa (Fundação Nacional de Saúde).
A Vale denunciou o governo brasileiro na OEA (Organização dos Estados Americanos) por não cumprir suas obrigações com os indígenas.

Acionistas
O diretor de projetos institucionais estratégicos da empresa, Walter Cover, diz que o fato de ser grande não a torna responsável pelas populações carentes em seu entorno e que isso é tarefa do governo. "A empresa tem compromissos com seus acionistas, de crescer e de dar lucro", afirmou.
A Vale admite voltar a ajudar os xicrins, desde que o governo crie projetos que viabilizem a auto-suficiência das comunidades. Reclama que parte do dinheiro foi gasta na compra de carros importados e diz que não quer continuar só custeando consumo.
Gomes contrapõe que a Vale não apresentou nada de concreto para superar o impasse com os xicrins. Sobre a forma como os índios gastam o dinheiro, disse não condenar os caciques por comprarem carros importados e que também não critica os diretores da Vale por morarem em apartamentos de luxo.

Incra
O gerente-geral jurídico da Vale, José Alberto Araújo, diz que a resolução 331/86 do Senado não obriga a empresa a dar dinheiro aos índios porque não lhe foi dada a concessão do uso da terra, como exigia o artigo 3o do documento. O processo ficou no Incra por cinco anos, até ser devolvido por não se tratar de reforma agrária.
O governo e a empresa não se preocuparam com a inexistência da concessão até as vésperas da privatização, em 1997. Em março, dois meses antes do leilão de privatização, o ex-presidente FHC assinou um decreto sem número, reafirmando a autorização para a concessão do direito de uso da terra à empresa.
Um ano depois da privatização, FHC assinou novo decreto criando a Floresta Nacional de Carajás na mesma área onde havia sido autorizado o direito de uso para a Vale. A administração da floresta foi, então, repassada ao Ibama, em convênio com a própria Vale.
Esse decreto é o pivô da confusão jurídica sobre os direitos dos índios. Para a Funai, ele não desobrigou a Vale da ajuda, porque não houve revogação do decreto anterior. Já a empresa sustenta que o decreto de 1997 foi extinto, porque perdeu o objeto.
A Folha perguntou ao Ibama, à Casa Civil da Presidência da República e ao DNPM se o decreto de 97 continua em vigor (o que garantiria o direito dos índios) ou se foi anulado com a criação da floresta, o que tornaria questionável o direito dos índios à ajuda financeira. Nenhum órgão elucidou o fato.
O ex-presidente do Ibama Eduardo Martins, que participou da criação da Floresta Nacional de Carajás, disse à Folha que a questão dos índios nem sequer foi abordada pelas autoridades na elaboração do decreto, em 1998.

Entenda o caso Vale x Índios

1 Banco Mundial
Ao financiar o projeto Carajás, em 1982, o Banco Mundial exigiu que a Vale do Rio Doce repassasse US$ 13 milhões aos índios, para compensá-los do impacto nas comunidades causado pela exploração e transporte do minério de ferro. À época, a Vale era estatal, subordinada ao Ministério das Minas e Energia

2 Carajás
Carajás fica no sudeste do Pará e é a maior mina de ferro a céu aberto do mundo. Próximo da mina ficam os índios xicrim. 0 dinheiro foi repassado aos índios por intermédio da Funai (Fundação Nacional do Índio), ao longo de cinco anos

3 Senado
Em 1986, o Senado aprovou a resolução 331, autorizando o Executivo a dar à Vale o direito de uso, por tempo indeterminado, de 412 mil hectares de terras da União adjacentes à mina. Em contrapartida, ela se comprometeu a preservar o ambiente e amparar as populações indígenas

4 Convênio
Em 1989, a empresa assinou o convênio 453 com os índios xicrim, estabelecendo seus compromissos nas áreas de educação, saúde, atividades produtivas, vigilância e administração

5 Concessão
Pela resolução do Senado, o Executivo teria de emitir a concessão do uso da terra para a Vale, que registraria a posse e os compromissos com os índios em cartório. Mas isso não aconteceu

6 Falha
Houve falha burocrática. 0 Incra foi encarregado de demarcar as terras e emitir a concessão de uso. Mas, só depois de cinco anos, percebeu que a decisão não lhe cabia, por não se tratar de reforma agrária

7 Privatização
Em março de 1997, quando a empresa estava para ser privatizada, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso reafirmou, por decreto, o direito da Vale ao uso da terra e sua responsabilidade de assistência aos índios. A SPU (Secretaria de Patrimônio da União) foi designada para fazer o ato de concessão

8 Deputados
No entanto, um grupo de deputados federais questionou a validade do uso de terras públicas por uma empresa privada. 0 STF (Supremo Tribunal Federal) suspendeu os efeitos do decreto até 2002, quando a ação dos deputados foi julgada improcedente

9 Floresta
A Vale estava privatizada havia um ano quando FHC autorizou em 98, por decreto, a criação da Floresta Nacional de Carajás nos 412 mil hectares em questão. 0 texto não faz referência ao decreto de 97 nem aos índios

10 Negociações
As negociações entre a empresa e os índios ficaram cada vez mais difíceis. Ela passou a alegar que não teria obrigação legal de dar assistência aos índios, porque não recebeu a concessão do uso da terra

11 Rompimento
No dia 31 de outubro, a Vale rompeu unilateralmente o convênio com os xicrim. Segundo a empresa, o decreto de 97 perdeu efeito com a criação da Floresta Nacional de Carajás. A Funai sustenta que o decreto de 97 continua em vigor, e que a empresa está obrigada a cumprir as determinações do Senado

12 Justiça
A divergência terá de ser resolvida pela Justiça. Na semana passada, a Funai entrou com ação cautelar na Justiça Federal de Marabá (PA) para obrigar a Vale a repassar dinheiro aos xicrim. A Vale entrou com processo na OEA (Organização dos Estados Americanos) acusando o governo brasileiro de não dar assistência aos índios

FSP, 22/11/2006, Dinheiro, p. B7

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