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'A Funai não tem o direito de leiloar as minhas fotos', diz Sebastião Salgado

O Globo - https://oglobo.globo.com/brasil
Autor: SALGADO, Sebastião
28 de Jun de 2020

'A Funai não tem o direito de leiloar as minhas fotos', diz Sebastião Salgado
Fundação retirou de exposição 15 obras doadas pelo fotógrafo depois que ele criticou atuação do órgão e fez apelo mundial a favor dos indígenas

Daniel Biasetto

RIO - Empenhado em diversas frentes de apoio à causa indígena dentro e fora do Brasil desde o início da pandemia do coronavírus, o fotógrafo Sebastião Salgado vive há quase dois meses o que considera uma das maiores polêmicas de sua carreira. Tenta, incrédulo, impedir que a Fundação Nacional do Índio (Funai) leiloe ou devolva 15 obras de sua autoria em retalição à campanha promovida por ele junto a diversos artistas internacionais (veja quem apoiou) para que o governo Jair Bolsonaro, o Congresso e o Judiciário brasileiros intervenham e evitem um extermínio nas aldeias.
Salgado acusa o governo federal de retirar apoio financeiro, material e humano da Funai e denuncia boicote de ações destinadas a proteger comunidades indígenas de invasões de grileiros e garimpeiros, crítica que levou a Funai a retirar os quadros espalhados por diversas salas da fundação.
Produzidas em parceria com a própria Funai durante visita do fotógrafo em 2017 aos Korubo, povo de recente contato que habita o Vale do Javari, no Amazonas, as obras avaliadas por Salgado em R$ 1,5 milhão chegaram a ser anunciadas para leilão no site do órgão, o que está proibido por ele.
A Funai afirma que os quadros (veja a lista das obras) doados por Salgado "estão aguardando a retirada pelo fotógrafo" e que espera uma resposta sobre a proposta de leilão para "ajudar os povos indígenas no contexto da pandemia da covid-19".
De Paris, Salgado comenta o assunto pela primeira vez desde que sofreu a retaliação da Funai, diz que não aceita a devolução e não virá ao Brasil para buscar os quadros. Ele promete recorrer à Procuradoria-Geral da República (PGR) para mantê-los com a Funai, uma vez que, doados à União, não são de sua propriedade."Essas fotos não são nem da Funai e nem são minhas. Essas fotos pertencem ao meu país, pertencem ao Brasil", diz.

Confira a entrevista:
O que aconteceu com as obras doadas à Funai?
Houve um conflito. Eles quiseram me devolver as fotos, mas essas fotos não são nem da Funai e nem são minhas. Essas fotos pertencem ao meu país, pertencem ao Brasil. Eu não tenho o direito de pegar de volta , eu não tenho o direito de leiloar e a Funai também não.

Mas a Funai afirma que eles aguardam sua retirada..
Então, se efetivamente a Funai não quiser guardar, eu tenho que procurar alguns dos Poderes brasileiros, possivelmente a Procuradoria-Geral da República para ser o guardião dessas fotografias, até eu poder devolvê-las à Funai.

A Funai te procurou?
Eu recebi essa semana uma carta propondo eu ir retirar as obras, propondo de eu fazer um leilão, eu não aceito, eu não posso aceitar. Eu posso até doar outras fotografias minhas para leilão, para mim não tem problema nenhum. Mas aquelas fotografias não, pois elas não pertencem a mim e nem à Funai, elas pertencem à União, são fotografias do governo brasileiro. Eu não posso meter a mão em patrimônio nacional.

Qual era o acordo com a Funai?
O mais inacreditável que é essas fotos com os Korubo foram tiradas graças à ajuda da Funai. Se não fosse a Funai eu não teria conseguido essas fotos. Não é pelo valor material. Ainda que eu venda cada uma delas por US$ 20 mil, são 15 obras, algo em torno de R$ 1,5 milhão, esse não é o problema. Eu tenho colecionadores que compram minhas fotografias e eu posso viver desses colecionadores, mas para instituições do meu país que eu acho importante, eu doo, como eu doei essas para Funai.

Como vê a gestão da Funai hoje?
A Funai é hoje uma instituição que não trabalha para a causa indígena. A tentativa de nomear um pastor evangélico para assessorar os indígenas isolados é preocupante. O inimigo maior dos indígenas isolados são os religiosos que tentam catequizar, consquistar esses indígenas. É um ultraje à comunidade indígena o nome desse missionário (Ricardo Lopes Dias) não ser aprovado, e a Funai recorrer para que ele reassuma o posto. Eu acho isso uma ação anti-indígena. Outras ações da Funai também são profundamente anti- indígenas. Mas eu acho que isso é temporário. A Funai não está totalmente destruída, a maioria dos quadros da Funai está lá, e na modificação do Executivo do Brasil, a Funai voltará a ser aquela grande instituição que sempre foi. Eu dou um tempo à Funai. A Funai é tão grande. A história da Funai é imensa. A Funai vai voltar a ser a casa dos indígenas.

A campanha surtiu o efeito desejado?
Temos recebido uma resposta excelente após a divulgação de nossa Carta aos Poderes e já se nota que houve uma mudança da filosofia em direção às comunidades indígenas. Nos reunimos frenquentemente com o ministro Dias Toffoli, outros integrantes do Supremo, como o assessor da presidência do STF, General Ajax Pinheiro, o procurador-geral da República, Augusto Aras, e membros do Conselho Nacional de Justiça. Também temos uma interlocução forte com parlamentares e empresários de diversos setores para discutir questões relacionadas à proteção da Amazônia.

O governo brasileiro foi convidado para participar das reuniões?
Tivemos uma boa aproximação do Exército e do minstro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva. Discutimos diversos projeto apresentados para economia na Amazônia. Mas não conseguimos um contato melhor com o Executivo, porque o Executivo é isolado.

Acha exagero falar em ameaça de genocídio dos povos indígenas?
Não é exagero. Estou extremamente temeroso com os povos isolados do Vale do Javari. Quando se tem conhecimento da falta de defesa imunológica dos indígenas isolados, quando se incentiva a invasão dos territórios protegidos por lei, quando se tem total informação da letalidade e contágio da Covid-19 e quando não se protege por opção, acho que o termo genocídio está completamente caracterizado com o preenchimento das condições acima.

Consegue enxergar algo de positivo nesses tempos de incertezas?
Nós estamos vivendo momentos extremamente difíceis. Mas o que estou gostando neste momento é, claro que jamais os indígenas estiveram tão ameaçados, mas também eles jamais estiveram tão organizados. Isso está criando um fundo de resistência colossal bonito de ver.

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