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Funai na mira do movimento indigenista

Ibasenet
Autor: Flávia Mattar
18 de Jul de 2003

Foi divulgada pela imprensa, em 14 de julho, a indicação de Antônio Carlos Nantes de Oliveira para a presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai). O fato foi desmentido no dia seguinte pelo atual presidente do órgão, Eduardo Almeida, após encontro com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Almeida disse não saber de onde saíram as especulações à respeito de sua saída, e alegou que "a Funai incomoda muita gente, como madeireiros, garimpeiros e latifundiários". O IbaseNet entrou em contato com o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em Brasília, Egon Heck, que afirmou que de nada adiantaria substituir o atual presidente do órgão. Ele defende, antes de mais nada, a discussão de uma política indigenista para o país que contemple os interesses indígenas de maneira ampla e democrática.

IbaseNet - Como tem sido a atuação da Funai?

Egon Heck - A Funai tem 35 anos de existência. Teve um progressivo aumento de funcionários que passou de 700 para 5 mil no final do período militar, no qual tinha uma estrutura autoritária e o objetivo ideológico de controle das populações indígenas e daqueles que com elas trabalhavam. Foi exercendo com certa eficácia essa função, muito mais do que a defesa dos direitos desses povos.

Depois desse período, de 1985 para cá, passou a sofrer de uma inconstância a toda a prova. Aqueles que ocupavam a presidência da Funai ficavam menos de 4 meses no cargo. Houve também uma deterioração na qualidade de seus funcionários. Vale dizer que o último curso de indigenismo foi oferecido em 1982.

Depois da década de 1990, começou o processo de sucateamento. Dificuldades operacionais dificultam ainda mais a proteção dos direitos dos povos indígenas, a garantia da terra etc. Os recursos foram diminuindo anualmente, o quadro de funcionários hoje chega a 2.500.

Junta-se a tudo isso as ambigüidades nas quais a Funai se move. É um organismo defensor dos direitos indígenas submetido aos interesses de um Estado comandado por uma minoria econômica. Obviamente que isso já fez com que, sempre nos momentos cruciais, entre a defesa dos povos indígenas e a garantia dos direitos e privilégios de uma minoria, prevalecesse os interesses dessa minoria econômica.

IbaseNet - O senhor vê algum aspecto positivo na Funai?

Egon Heck - Sempre houve em seus quadros pessoas dedicadas à causa indígena. Lembro-me, por exemplo, de antropólogos que na década de 1980 foram expulsos da Funai por terem tentado implementar uma política diferente. Na verdade, em vários momentos entraram quadros que buscaram ser fiéis a sua missão de defesa dos direitos dos povos indígenas.

IbaseNet - Sem muito sucesso?

Egon Heck - Sem sucesso ou com muito pouco êxito. Foram implementadas ações, por exemplo, principalmente na área de saúde preventiva - apesar de precárias no tempo da Funai e hoje no âmbito da Funasa -, que têm evitado um maior número de mortes por epidemias e doenças que se alastraram nas últimas décadas entre os povos indígenas. Em alguns aspectos, houve avanços em questões relativas à terra. Podemos considerar como avanço que no Estatuto do Índio, aprovado em 1973, tenha sido estabelecido o prazo de 5 anos para a demarcação de todas as terras indígenas. Ou seja, em 1978 esse processo deveria ter sido concluído. A Constituição de 1988 novamente deu 5 anos, mas, mais uma vez, esse prazo não foi cumprido. Hoje, em torno de 80% das terras indígenas sofrem algum tipo de invasão e quase metade delas necessitam concluir seu processo demarcatório de regularização. Apesar de tudo isso, podemos dizer que com a luta dos povos indígena, a Funai foi sendo pressionada e foi exercendo a sua função de promover o avanço da regularização de terras.

IbaseNet - Mas os empecilhos foram maiores...

Egon Heck - É lamentável que estejamos assistindo regularmente a notícias de violência, conflitos envolvendo as terras indígenas. Esse deveria ser um capítulo encerrado. A lei não foi cumprida. Acho que é uma demonstração a mais de que as elites que têm o mando do Estado fizeram com que as demarcações não se concluíssem. Chegamos a um novo milênio, a um novo governo, e estamos, infelizmente, ainda aguardando a sinalização de uma nova política indigenista que leve, não por um tipo de mágica ou milagre, à superação dessa situação.

IbaseNet - A imprensa divulgou que Antônio Carlos Nantes de Oliveira ocuparia a presidência da Funai, substituindo Eduardo Almeida. Logo em seguida, a informação foi desmentida. Acredita a substituição resolveria a situação da Funai?

Egon Heck - Entendemos que não é por meio de nomes que vamos superar a situação crítica em que se encontra a prática do indigenismo. É preciso que haja uma reorientação que vai desde a criação de um espaço de definição e fiscalização da política até a reorganização das bases executivas dessa política. Seja através da Funai, do Ministério da Saúde, do Ministério da Educação, do Ministério do Desenvolvimento Agrário etc. Insistimos que, se o governo quiser efetivamente ter êxito, é preciso redimensionar a definição, fiscalização e participação na política indigenista.

IbaseNet - No caso de uma mudança futura, como vê a indicação desse nome específico?

Egon Heck - As poucas informações que se tinha até o momento eram realmente preocupantes. A indicação trouxe uma grande apreensão. Seu nome está vinculado à prestação de serviços à Prefeitura de Roraima, notadamente anti indígena. Pessoas que têm militado nessa área, em Roraima, têm tido articulação com interesses econômicos. Não devemos fazer juízo sobre a vida de Antônio Carlos, isso não nos cabe, mas temos a obrigação, como cidadãos desse país e aliados dos povos indígenas, de alertar para um processo que nos pareceu totalmente incorreto.

IbaseNet - A indicação do nome foi feita sem a participação do movimento indigenista?

Egon Heck - Sem que fosse conhecido no próprio movimento. Lembro quando, na época da ditadura militar, o general Bandeira de Melo foi indicado para a presidência da Funai. Ele afirmou que conhecia índio por cartão postal e julgava ser suficiente para a sua administração. Não precisamos de um administrador para a Funai, precisamos de alguém que aglutine todos aqueles que são sensíveis à causa indígena, que dentro do governo tenha base suficiente para efetivamente poder pensar e implementar uma política indigenista para ser executada através da Funai.

IbaseNet - Por que, após o encontro com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, houve uma mudança de rumo na indicação de Antônio Carlos?

Egon Heck - Me parece que existe uma insatisfação diante da incapacidade de se fazer avançar uma política indigenista, como o próprio governo defendia. Essa insatisfação, dentro do próprio governo, levou à decisão de mudança na presidência. A mudança nos prazos para ocorrer a substituição teria se dado em função da constatação, talvez enxergada dentro do próprio Planalto, de não ser suficiente se pensar simplesmente em um novo nome. Espero que esteja sendo pensado algo como a criação de uma Comissão de Política Indigenista, na qual os povos indígenas, a sociedade, os Ministérios que atuam com a questão possam constituir um espaço definidor e fiscalizador de uma nova política. Assim, são muito maiores as chances de êxito, seja qual for o nome dentro da Funai. Dessa forma, seria possível se trabalhar dentro de uma expectativa de mudança. Acreditamos, votamos nisso e esperamos que aconteça.

IbaseNet - Essa Comissão estaria ligada a algum Ministério?

Egon Heck - Ao Ministério da Justiça, em um primeiro momento. Pensamos, inclusive, na possibilidade, e essa é uma aspiração, de se criar uma Secretaria Especial dos Povos Indígenas. Achamos que uma saída mais sólida, mais eficaz se daria a partir daí. A realidade dos povos indígenas teria um espaço, uma visibilidade política maior, gerando assim possibilidades para que, de uma forma articulada e conjunta, seja construída uma política de defesa dos direitos indígenas.

IbaseNet - Mas essa Secretaria precisaria estar articulada com Ministérios para que houvesse uma possibilidade de mudança.

Egon Heck - É fundamental e o próprio governo tem sinalizado para a necessidade de haver transversalidade nos ministérios. Não é mais concebível que a Funai determine a área, o Incra faça assentamentos e o Ibama crie uma unidade de conservação. Essa política desarticulada tem sido característica até hoje. É preciso promover uma organização, uma organicidade. Por isso, insistimos na necessidade de formação de uma comissão de definição de política indigenista que estaria articulada à Secretaria dos Povos Indígenas. A comissão seria o passo transitório para a criação de um conselho mais permanente, que teria que ser criado por decreto lei, o que exige um tempo maior já que precisa ser aprovado e discutido pelo Congresso.

IbaseNet - A Funai continuaria sendo necessária?

Egon Heck - Continuaria sendo necessário estabelecer uma base operacional. Essa instância executiva ligada ao Ministério da Justiça, como hoje é a Funai, poderia continuar de forma renovada, depois de revista a sua estrutura. Ou poderia ser criada uma nova estrutura que substituísse a Funai. Acho que as duas hipóteses são plausíveis, mas é preciso ver o que seria melhor do ponto de vista operacional.

IbaseNet - O senhor não acha que quem deveria ocupar a cadeira da Funai seria um indígena capacitado para isso?

Egon Heck - Temos feito essa discussão. Acho que um movimento indígena consciente e forte poderá sem dúvida ter na direção de um órgão executor como a Funai uma liderança indígena. Por que não? Agora, é temerário na situação atual se pensar em um nome indígena, uma vez que se sabe que as possibilidades de êxito são mínimas. A maior probabilidade será repetir a história de insucesso que se tem visto nesses últimos tempos.

IbaseNet - Como tem visto o caminhar do governo Lula? Acha que será possível implentar as mudanças que o movimento indigenista vem defendendo?

Egon Heck - Vemos com preocupação os seis meses e meio do governo Lula porque não foram tomadas atitudes na direção de mudanças. Não houve efetivamente mudanças substanciais. Há praticamente continuidade. Isso gerou inclusive um clima de animosidade por parte dos anti indígenas que se reflete no grande número de violência e assassinatos. Esse ano já ocorreram 15 mortes. E cada dia que passa a situação se torna mais complexa pelo fato dos interesses que têm conflitado com os direitos dos povos indígenas estarem se consolidando em muitos espaços. Está havendo um trabalho para inviabilizar as conquistas indígenas na Constituição. Trabalham no Congresso para que haja modificações de direitos, trabalham em várias frentes tentando inviabilizar o avanço dos grupos de trabalho para demarcações, tentando criar empecilhos para a definição de terras indígenas.

IbaseNet - Há um retrocesso no que diz respeito à conquista das terras indígenas?

Egon Heck - Estão sendo criados maiores obstáculos na definição e na própria demarcação e garantia dessas terras. Apesar de ter havido iniciativas por parte da Funai, parece que foram 75 grupos de trabalho constituídos para trabalhar a questão, houve um avanço grande de instâncias que estão buscando dificultar cada vez mais esse processo.

IbaseNet - Com relação às mortes, há um aumento com relação ao ano passado, por exemplo?

Egon Heck - Ano passado não chegava a 10 o número de assassinatos. Essas mortes são fundamentalmente decorrentes da luta pela terra e por recursos naturais. Invasão de garimpeiros, de madeireiras levam a conflitos diretos com os povos indígenas ou, muitas vezes, esses invasores internalizam os conflitos, jogando uns indígenas contra os outros. Ou seja, favorecem fortemente alguns poucos para que possam continuar a exploração mineral, gerando oposição com os demais que não querem que essa exploração aconteça.

IbaseNet - De que forma essas mortes estão sendo tratadas pela justiça?

Egon Heck - Infelizmente, com muita morosidade. A gente praticamente vê processos, muitas vezes, até para a instauração de processos, demora. A Polícia Federal alega que há falta de recursos e de preparo técnico, de conhecimento sobre a questão indígena para uma ação ágil e eficaz. É importante ressaltar que, em alguns estados, há uma criminalização dos próprios índios. Há uma inversão em alguns casos. Tudo isso tem dificultado a punição dos mandantes dos crimes.

IbaseNet - O indígena está lutando pela terra, assim como o MST, por exemplo. Vê com bons olhos uma maior articulação entre movimentos sociais para presssionar o governo?

Egon Heck - Pensar um novo modelo de sociedade, de país só será possível na medida em que houver uma consciência cada vez maior, uma aliança e uma solidariedade principalmente com os movimentos mais próximos ligados à questão da terra. Juntos teremos contribuições e potencialidades sociais e políticas para ajudar na construção desse país que sonhamos e que estamos procurando construir. Apesar de ser um momento talvez de perplexidade, de apreensão é também um momento rico para o movimento indígena, de colocar a questão indígena como algo importante para o país. Apesar desses seis meses terem nos feito muitas vezes balançar as esperanças, acho que ela ainda existe, e vamos continuar procurando achar espaços, formas que a alimentem e joguem para a frente essa experiência

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