VOLTAR

Funai briga na Justiça para continuar procurando índios isolados

Diário de Cuiabá-MT
Autor: Carla Pimentel
19 de Abr de 2002

Madeireira conseguiu decisão para manter exploração da área onde viveria grupo ainda não contactado pelo branco
Funai e madeireiros estão brigando na justiça por uma área de 160 mil hectares, no município de Colniza. O motivo: aquele território, situado entre os rios Guariba e Aripuanã, abriga um grupo indígena ainda não contactado pelos brancos. O órgão aguarda, junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, decisão de recurso contra uma liminar que permitiu que empresas de extração de madeira continuem explorando a região, apesar de habitada por índios ainda isolados.
Os primeiros vestígios do grupo foram encontrados em 1999. Por ironia, foi um madeireiro que alertou sobre a existência dos índios, de etnia ainda ignorada. Com base no decreto 1775, a Funai determinou a restrição de uso da área - que proíbe o ingresso de pessoas sem prévia autorização. Mas a Portaria 447, que deu corpo à iniciativa, caiu por decisão judicial, através de ação cautelar que beneficiou os madeireiros. No final do ano passado, a 17ª Vara Federal concedeu liminar a um grupo de empresas liderado pela Sul Amazônia Madeiras e Agropecuária (Sulmap), suspendendo os efeitos da portaria. Em outras palavras: as empresas continuam com carta branca para explorar a área.
A Funai espera agora pelo resultado do recurso - o chamado agravo de instrumento - que tramita desde 2001. "Esse é um caso raro em que a justiça se opõe à restrição de uso", observou o indigenista Juscelino Melo, um dos primeiros a flagrar o rastro deixado pelos índios.
Foi há mais de dois anos que o funcionário de uma madeireira encontrou os vestígios deixados pelo grupo em uma área de difícil acesso nas imediações da serra Morena, banhada pelos rios Guariba e Aripuanã - e a menos de 18 quilômetros da divisa entre Mato Grosso e Amazonas. Seu trabalho era exatamente esse: chegar a lugares pouco explorados, em busca de madeira nobre que ainda pudesse ser extraída das matas. Foi numa dessas empreitadas que ele se deparou com duas malocas e vários utensílios - e voltou correndo, temendo algum ataque indígena.
A notícia chegou aos ouvidos da igreja de Colniza, que, por ser ligada ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), fez com que o assunto chegasse à administração da Funai em Cuiabá. Foi então organizado um grupo que decidiu checar o boato in loco - e teve êxito.
Foram três expedições, encerradas em outubro de 1999. Percorrendo três caminhos diferentes - um por terra e dois fluviais - a equipe deparou-se com vestígios do grupo não contactado por uma faixa entre 5 e 8 quilômetros, nas proximidades da serra Morena. Foi então formada uma frente etnoambiental, que fincou acampamento na região, na expectativa de conseguir novas pistas sobre o grupo.
Com a liminar concedida aos madeireiros, o trabalho caiu por terra. Segundo Juscelino Melo, as informações que vêm da região dão conta de que o acampamento dos indigenistas foi abandonado, em função de pressões locais. Ele acrescenta que funcionários da Funai vêm sendo intimidados para não prosseguir com a pesquisa, que permanece estancada enquanto a justiça não se pronuncia. O reconhecimento dos direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam está no artigo 231 da Constituição Federal. A Portaria 447, de 11 de maio de 2001, determina que "somente poderão ingressar, locomover-se e permanecer na área" quem tiver autorização - uma proibição que, de acordo com decisão do TRF, poderá ou não ser restaurada.
Mato Grosso tem pelo menos nove grupos não contactados
Mato Grosso abriga ainda pelo menos nove grupos de índios não contactados. No Brasil, são mais de 50 referências - sinais de sua existência em determinada região. No estado, eles permanecem embrenhados nas matas dos municípios de Cotriguaçu, Apiacás, Aripuanã, Tabaporã, Juara, Juína, Comodoro e Colniza.
O velho método de contato usado por anos a fio foi deixado para trás. Nada de se apresentar, levar presentes e novos moldes culturais para os grupos isolados. "Quando se faz isso, eles adoecem, se sedentarizam e mudam de hábitos", explicou o indigenista Juscelino Melo.
O método, agora, é outro. Cabe à Funai apenas observar de longe os movimentos dos indígenas, a fim de conhecer suas características e poder demarcar uma área adequada à sobrevivência do grupo. Esta é, aliás, a tentativa do órgão com os índios descobertos na serra Morena. Depois de estudar seus hábitos, o que era uma área de restrição se adequa e torna-se uma reserva indígena - em que o encontro entre brancos e índios, apesar de inevitável, é adiado ao máximo.
Não se sabe qual o parentesco do grupo isolado de Colniza com etnias das imediações. Mas tanto os índios cinta-larga quanto os arara - ambos habitantes daquela região do estado - reconheceram os artefatos recolhidos nos acampamentos como semelhantes aos que produzem. "Por enquanto, podemos dizer apenas que há grandes chances de serem um braço dos índios tupis", apontou Melo.
Procura começou ainda em 1999
Quando souberam que a região da serra Morena poderia abrigar um grupo indígena não contactado, funcionários da Funai organizaram a primeira expedição, em meados de 1999. O primeiro passo foi tentar extrair informações do funcionário da madeireira, o primeiro a avistar os vestígios. Mas a tentativa não vingou: "Ele queria R$ 20 mil para mostrar onde era a área", lembrou o indigenista Juscelino Melo.
A equipe partiu então para outras estratégias. Juntou pistas informadas por fazendeiros da região, até encontrar a mesma picada que, tempos antes, havia sido aberta pelo primeiro a avistar o achado. Seguindo o rastro do trabalhador da madeireira - que perderam em muitas ocasiões - a Funai conseguiu encontrar o acampamento indígena. Isso depois de oito dias de viagem, e 160 quilômetros de trecho.
Ao final do "picadão", os pesquisadores depararam-se com uma vigia de espera. Trata-se de uma espécie de camuflagem, usada por índios para observar a passagem de animais. À frente, encontraram dois abrigos de palha, que aparentemente acolheram um par de famílias. Mais tarde, nova dupla de malocas de palha foi descoberta, seguindo os mesmos padrões. Junto aos abrigos, uma fartura de artefatos: imensos cochos de palmeira trançada para fazer bebidas, cestos de palha, pedras de quebrar cocos, abanos, esteiras e assim por diante.
Segundo os cálculos de Juscelino Melo, as duas moradas deveriam abrigar oito pessoas. Ainda é cedo para saber se elas são os únicos indivíduos do grupo, ou uma parcela desgarrada de uma comunidade maior, que perambula pela região. Uma das características observadas pela Funai é que os índios produzem utensílios a cada novo acampamento - costume interpretado como a busca de mobilidade, em caso de fuga.
Seja qual for a hipótese, não há mais muito espaço para se locomoverem. "Por isso, é importante preservar a área que ainda existe", observou Melo. Os 160 mil hectares pleiteados pela Funai são ocupados por fazendas, madeireiras e poucos seringueiros, copaibeiros e coureiros, sobreviventes da decadência das três atividades.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.