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A fragilidade humana e a força da natureza

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
16 de Set de 2005

A fragilidade humana e a força da natureza

Washington Novaes

Há poucos dias, num encontro rápido e casual, o ex-ministro da Cultura Francisco Weffort manifestava assombro com a "fragilidade humana diante da força da natureza", evidenciada nos recentes acontecimentos de New Orleans, arrasada por um furacão. Tem razão. O país mais rico do mundo, embora soubesse das ameaças, praticamente nada fez que evitasse a morte de milhares de pessoas sob as águas enfurecidas que submergiram 80% da cidade após o rompimento, pelo furacão Katrina, de diques no Rio Mississippi e na orla marítima. E isso poucos dias depois de a Europa estar às voltas com inundações, incêndios e uma onda de calor - enquanto enchentes e tufões deixavam centenas de mortos e milhões de desabrigados na Ásia.
Talvez a psicanálise pudesse ajudar-nos a compreender por que a onipotência de seres humanos os leva a desprezar a noção de limites - mesmo quando a certeza científica os aconselhe a ter cuidado com o que fazem, ou a incerteza sugira que devam ter cautela. "O conceito de que podemos controlar o mundo foi o que tornou New Orleans vulnerável", escreveu Mark Fischetti, editor da revista Scientific American (Estado, 4/9), assegurando que a catástrofe poderia ter sido evitada. A vulnerabilidade de New Orleans era discutida há um século. E já em 1998 cientistas, engenheiros do Exército e planejadores urbanos conceberam um plano em larga escala que teria custado US$ 14 bilhões para executar, mas, segundo eles, livraria a cidade do rompimento dos diques e dos vagalhões já então previstos nos modelos de computador. Só que no Congresso norte-americano, durante a discussão, os recursos foram redirecionados para empresas de petróleo e criatórios de frutos do mar.
Mesmo esse plano, entretanto, previa recortar vários novos canais no Mississippi, abrir um novo canal de navegação para o mar, construir comportas no Lago Port Chartrain, que margeia a cidade. E isso num lugar que pode ser considerado, segundo Fischetti, uma "tigela", com 80% da área abaixo do nível do mar - e, que, portanto, em princípio não deveria ser ocupada, por se tratar de planícies de inundação natural. Melhor fazem a Alemanha e a Suíça, por exemplo, que depois das grandes inundações de 2003 decidiram "devolver os rios ao seu curso natural" - e estão aplicando a cada ano bilhões de euros para desretificá-los, descanalizá-los, evacuar a população das planícies de inundação natural.
É preciso que mudemos nossa postura, abandonemos a onipotência e a imprudência. A ciência continua advertindo para a gravidade do quadro planetário. Ainda no início deste ano, as discussões no âmbito do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), em Washington, confirmaram os diagnósticos e cenários preocupantes para este século. Já o Massachusetts Institute of Technology (MIT) ressalta que a velocidade dos ventos em furacões aumentou 50% em 50 anos, por causa do aquecimento das águas oceânicas.
Em 1992 o furacão Andrew provocou prejuízos de US$ 26 bilhões. De 1995 a 1999 foram 33 furacões no Atlântico. E, como a população costeira dos Estados Unidos aumentou em 33 milhões de pessoas entre 1980 e 2003 (e pode crescer mais 12 milhões até 2015), os prejuízos ali podem subir para US$ 150 bilhões anuais, segundo previu, poucos dias antes do Katrina, a Associação dos Seguradores Britânicos. Não lhe faltaram números para justificar a previsão: os quatro furacões de 2004 nos Estados Unidos causaram prejuízos de US$ 56 bilhões; desde 1990 aconteceram pelo menos 20 "desastres naturais" significativos por ano (a média era de três antes de 1990); a previsão de furacões este ano no país subiu para 21; em 2004 o Japão enfrentou dez tufões, quatro vezes mais que a média anterior; a Europa em 2003 sofreu 22 mil mortes na onda de calor. O Instituto Alemão de Pesquisas Econômicas prevê que até 2050 os prejuízos com "desastres naturais" poderão elevar-se a US$ 200 trilhões (uns seis anos do atual produto bruto mundial).
O Brasil não está fora dessas questões. Já tivemos um furacão, estamos enfrentando tufões e ciclones, secas extemporâneas, inundações graves, tal como previra em 2002 o presidente do IPCC. Agora, o conceituado Thomas Lovejoy, do Centro Heinz de Ciência, Economia e Ambiente, dos Estados Unidos, adverte (Folha de S.Paulo, 5/9) que a floresta amazônica está próxima de um ponto-limite, a partir do qual a cobertura verde não será mais capaz de gerar a chuva necessária. Pode secar, com conseqüências dramáticas. Também ele acha que a solução para a Amazônia está num pesado investimento em ciência que gere possibilidades de desenvolvimento sustentável na região.
Preocupante é que o País continue praticamente sem política clara para mudanças climáticas. Se houvesse, teríamos programas mais definidos para impedir que os desmatamento, queimadas e mudanças no uso do solo continuem a gerar três quartos das emissões nacionais de gases do efeito estufa. O próprio Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas e o Fórum de ONGs têm pedido essa política. Mas continuamos temerosos de assumir compromissos. Como se a natureza esperasse o tempo que desejamos, estivesse de acordo com nossa onipotência.
Tudo isso, e principalmente a catástrofe de New Orleans, faz lembrar a história de uma velha senhora goiana que foi pela primeira vez ao Rio de Janeiro durante a construção do Aterro do Flamengo. Ao passar por ali, assombrada com a obra, perguntou do que se tratava. E, ao saber que iam fazer o oceano recuar, dona Augusta, do alto de seus 80 anos, não se conteve: "E eles acham que o mar vai deixar por isso mesmo?"
Washington Novaes é jornalista.

OESP, 16/09/2005, Espaço Aberto, p. A2

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