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Fóssil raro é exportado ilegalmente

OESP, Vida, p. A15
17 de Jul de 2006

Fóssil raro é exportado ilegalmente
Ave pré-histórica procurada há anos por cientistas na Bacia do Araripe, no Nordeste, estaria em museu na Ásia

Cristina Amorim

Um dos tesouros científicos brasileiros mais procurados nos últimos tempos por brasileiros e estrangeiros, quem diria, já foi achado, retirado ilegalmente do Brasil e guardado no outro lado do planeta.

O fóssil quase completo de uma ave que vivia na região da Bacia Sedimentar do Araripe, entre Ceará, Pernambuco e Piauí, durante o período Cretáceo, há uns 100 milhões de anos, foi comprado por um museu de Kyoto, no Japão.

O aviso é do paleontólogo David Martill, da Universidade de Portsmouth (Grã-Bretanha). Ele e outros quatro cientistas disputam a permissão do museu para descrever a espécie.

Há anos os paleontólogos vasculham a região do Araripe em busca deste fóssil. Até hoje foram desenterradas somente impressões de penas em calcário, que poderiam ser tanto de aves quanto de dinossauros. Era uma questão de tempo até que a fonte daquelas penas aparecesse.

A bacia é um dos depósitos de fósseis mais importantes do mundo em quantidade e qualidade de preservação. Para os paleontólogos, é como uma fotografia do período Cretáceo entre 150 e 100 milhões de anos atrás.

Se confirmada a autenticidade do fóssil que está no Japão, "ele seria o representante mais antigo do grupo já descoberto no Gondwana", o supercontinente formado pela América do Sul e a África grudadas, afirma Martill.

A descrição pode ajudar os paleontólogos a determinar a história evolutiva das aves modernas. De quebra, trazer fama e dinheiro para quem o fizer.

A comercialização de fósseis é proibida no País. A ave teria seguido ilegalmente para a Alemanha e em seguida para o Japão. Ambos são destinos usuais de peças retiradas do Araripe, apesar de governos, colecionadores e museus estarem cientes da legislação brasileira.

O paleontólogo Herculano Alvarenga, do Museu de História Natural de Taubaté (SP), especialista em aves pré-históricas, solta um suspiro indignado. "Essa peça pertence ao Brasil, deveria ficar no Brasil e ser descrita por brasileiros. Temos condições de estudá-la, compreendê-la e publicar os resultados para o mundo. O que outros pesquisadores estão fazendo é pirataria", afirma.

Não é a primeira vez que fósseis do Araripe param em outros países e dificilmente será a última. A região tem cerca de 11 mil quilômetros quadrados e a delegacia da Polícia Federal de Juazeiro do Norte (CE), responsável por sua fiscalização, tem 22 pessoas para cuidar dos fósseis e outros crimes, de tráfico de drogas à exploração sexual e fraudes contra órgãos públicos.

O Departamento Nacional de Produção Mineral, outro órgão fiscalizador, tem em Crato, cidade vizinha a Juazeiro do Norte, apenas dois funcionários - um deles definitivamente afastado por problemas de saúde.

Além disso, a pobreza da população e a facilidade de se encontrar as chamadas "pedras de peixe", impulsionadas por um mercado negro crescente, formam um terreno fértil para a retirada indiscriminada.

Martill é um dos cientistas que defendem abertamente a venda dos fósseis. A pilhagem do material do Araripe tem contornos históricos e movimenta milhares de dólares - o inédito fóssil da ave, por exemplo, teria sido comprado por US$ 100 mil.

Peças com relevância científica lotam o acervo de museus no exterior e com freqüência são descritas por pesquisadores estrangeiros, sem que a origem legal seja comprovada.

Para o paleontólogo Ismar de Souza Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no futuro os paleontólogos brasileiros terão de se deslocar até o exterior para ter acesso a estas peças - nos moldes do que acontece com os historiadores gregos.

Segundo ele, o governo brasileiro deveria seguir o exemplo de Argentina e China, que trabalham para recuperar seus fósseis contrabandeados. "O Ministério de Relações Exteriores deveria pleitear o retorno deste material", afirma.

Alvarenga tem o mesmo discurso: "Necessitamos de um trabalho diplomático para recuperar essa peça antes que seja publicada sua descrição", diz. "Precisamos também identificar esses pesquisadores estrangeiros que ficam caçando esses fósseis na Chapada do Araripe. Eles são contrabandistas e precisam ser presos e deportados, sem direito de retornar ao Brasil."

Fóssil traficado levou à descrição dupla de espécie

Em 1996, David Martill entrou numa disputa com o paleontólogo Alexander Kellner, do Museu Nacional, no Rio. Ambos descreveram a mesma espécie de espinossaurídeo, um dinossauro carnívoro, provavelmente em cima do mesmo fóssil, quebrado e remendado propositalmente para render mais para o vendedor.

Martill teve acesso a um bom pedaço do material na Europa, retirado ilegalmente do Brasil. Só que o crânio estava com uma ponta falsa do focinho - determinante, neste caso, para se estabelecer a espécie com relativa tranqüilidade. Kellner, por sua vez, trabalhou com um focinho e, apesar de publicar seu artigo alguns meses depois, acertou na espécie. Batizou o seu de Angaturama limai; Martill, de Irritator challengeri - uma lembrança, diz ele, da sua reação quando soube que o fóssil foi adulterado.

Os dois pedaços nunca foram comparados para se saber se encaixam e são o mesmo indivíduo. Mas a história é tão alegórica que abre a explicação dos guias-mirins do Museu de Paleontologia de Santana do Cariri (CE).

OESP, 17/07/2006, Vida, p. A15

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