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Fortuna que ameaca os Kalungas

CB, Brasil, p.14
18 de Dez de 2005

Fortuna que ameaça os kalungas
Terra dos descendentes de escravos em Goiás é alvo de disputa por fazendeiros que buscam explorar a riqueza do subsolo. Sob a área de 253 mil hectares, há ouro e outros minerais. DNPM autorizou pesquisas
Uma área de 253 mil hectares, destinada pelo governo federal para os descendentes de escravos em Cavalcante (GO), a 300km de Brasília, está sob ameaça. Uma disputa em torno do subsolo da região, rica em minerais nobres, como o ouro, coloca sob risco a área destinada aos kalungas. Remanescentes de quilombos, a comunidade enfrenta a cobiça do homem branco, sempre em busca da riqueza. Duas leis estaduais e um decretopresidencial destinam a área a 4 mil descendentes de escravos. No entanto, há pelo menos dois proprietários de fazendas que conseguiram autorização do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para realizar pesquisas na região. Dezenas de fazendeiros têm que pagar impostos por terras que, de acordo com os cartórios, ainda têm proprietários particulares.
Proprietária de uma fazenda de 1 mil hectares dentro da área tombada, Auriberta Alves do Nascimento Campos Silva vive o drama de quem pode se afundar em dívidas ou se tornar milionária do dia para noite. Com base em decisões da Justiça que lhe asseguravam a posse das terras, de 1997 até 2004 ela investiu, em parceria com mineradoras, geólogos e engenheiros, cerca de R$ 1milhão em pesquisas. Acumulou uma dívida de R$ 250 mil, mas descobriu uma fortuna sob o solo: os técnicos estimam haver mais de uma tonelada de ouro, quantidade avaliada em R$ 45 milhões.
Este enredo confuso começa se desenrolar em 1991. Recém separada na época, Auriberta abandonou tudo em São Paulo para morar em Brasília com o novo marido, uma agente da Polícia Federal, falecido em 1995. Por orientação dele, com dinheiro do divórcio, adquiriu uma fazenda de mil hectares no interior de Goiás, localizada a 130km do município de Cavalcanti. Meses depois da compra da propriedade, descobriu que uma lei estadual tinha transformado toda a área em sítio histórico. Entrou na Justiça pedindo uma indenização. Duas decisões do Tribunal de Justiça de Goiás ignoraram a existência das leis goianas e disseram que as terras eram dela.
Quando fui lá pela primeira vez, já tinha comprado a propriedade. Achei que o meu marido era louco. Eu reclamava da falta de estrada para chegar no lugar e ele um dizia que isso não ia ser necessário. Tudo porque um dia nós íamos chegar lá de helicóptero.Achei tudo muito estranho, só via rochas. Não dava para plantar nem um pé de alface”, lembra. Quatro meses antes de morrer, o marido disse a ela que suspeitava que as terras eram, literalmente, uma mina de ouro.
Da revelação à certeza de que debaixo dos pés se escondia um tesouro foram seis anos de pesquisas, todas realizadas com autorização do DNPM, autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Durante esse período diz ter resistido a ofertas de mineradoras estrangeiras para vender as terras e lidou com técnicos que ela descreve como inescrupulosos. ”Eles faziam os trabalhos e se recusavam a se dizer o que tinham encontrado”, explica.
Descoberta

A certeza de que as terras pertencem aos kalungas surgiu neste ano, quando foi cobrar do governo de Goiás a licença ambiental necessária para construir o garimpo. Primeiro os desembargadores disseram que a terra era minha, que se não gostasse dela o problema era meu e que não seria indenizada. Depois o DNPM me liberou para fazer pesquisas e só agora aparece um órgão dizendo que não posso levar o trabalho adiante”, reclama, indignada, a funcionária pública aposentada.
A concessão de alvará de pesquisa nas terras dos kalungas não se limita a Auriberta. Há pelo menos mais um caso de um proprietário de terras na região que recebeu autorização para contratar técnicos e equipamentos com o objetivo de detectar a presença de minério em sua fazenda. Pode haver uma falta de diálogo entre os órgãos? Pode. Mas estamos trabalhando para melhorar a nossa estrutura e corrigir os erros do passado”, explica Miguel Antônio Nery, diretor-geral do DNPM, que não quis comentar o caso específico de Auriberta.
Nery disse não ter condições de avaliar se a concessão de alvarás para pesquisa em áreas de quilombolas, em terras tombadas, constitui uma ilegalidade. Mas promete investigar. E recomenda aos proprietários que se sentirem lesados a recorrer à Justiça pedindo indenização. Auriberta concorda com Nery e pretende entrar na Justiça.
Para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o pedido de indenização é desnecessário. Não há nenhuma ilegalidade de nenhum dos lados”, explica o coordenador nacional de quilombos do Incra, Claúdio Braga. Ele diz ser normal que órgãos federais demorem a tomar conhecimento de que uma área foi transformada em sítio histórico. E afirma que leva mesmo algum tempo para os proprietários serem notificados e ressarcidos. Enquanto isso, nos cartórios da região, eles vão continuar sendo considerados donos e a pagar impostos”, explica. Braga relata que existem pelo menos 30 casos de fazendeiros nessa mesma situação.
Quanto às pesquisas que identificaram a existência de minério em algumas fazendas, Braga afirma que, no caso de uma desapropriação, os donos das terras não serão indenizados pelo que há no subsolo. Eles perdem as terras, recebem as indenizações, mas continuam sendo donos das lavras”, explica, referindo-se ao minério. Se conseguirem depois licença para extrair o ouro, terão que pagar aos Calungas e aos Estado brasileiro”, completa.

Fuga de Minas Gerais
O povo Kalunga é remanescente de tribos da região do Congo, Sudão,Angola e outras localidades próximas à costa oeste da África.Os kalungas eram escravos que trabalhavam nas minas e garimpos de Minas Gerais, no século 18. A comunidade surgiu de uma revolta dos escravos que trabalham na mineração.Para fugir da escravidão, escaparam para as serras de Goiás e construíram suas casas nos vãos dos rios, dificultando o acesso daqueles que os perseguiam. Por quase 300 anos, a existência da comunidade era ignorada e os kalungas vieram em isolamento geográfico e cultural.Atualmente, estima-se que 4 mil pessoas vivam na área localizada perto de Cavalcante (GO).
A data em que o grupo foi descoberto é incerta. Estima-se que o primeiro contato teria ocorrido ainda na década de 1980.Quinze anos depois, o governo de Goiás demarcou cerca de 200 mil hectares para a comunidade. Em 2000, o governo federal emitiu Título de Reconhecimento de Domínio sobre a área de 253,2 mil hectares.
CB, 18/12/2005, p. 14

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