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Fome pelo Velho Chico

JB, Outras Opinioes, p.A11
Autor: BINGEMER, Maria Clara
03 de Out de 2005

Fome pelo Velho Chico
Maria Clara Bingemer Teóloga
O governo deu, no último dia 26 de setembro, o penúltimo passo para tornar real um de seus projetos mais polêmicos. A Agência Nacional de Águas (Ana) concedeu a outorga que permite o uso das águas do rio São Francisco para projeto de transposição. Agora, só falta o Ibama conceder a licença de instalação, para que o governo federal possa dar início à primeira fase da obra: a construção de canais e das duas primeiras barragens.
Enquanto isso, em uma pequena capela próxima do rio e da cidade pernambucana de Cabrobó, região na qual o governo pretende construir uma das tomadas de água para a transposição, um homem deixou de alimentar-se. Numa tentativa derradeira de impedir a execução do projeto de transposição do São Francisco, frei Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra, interior da Bahia, iniciou ao meio-dia do dia 26 de setembro uma greve de fome. Este gesto extremo pretende sensibilizar o governo federal a rever sua decisão de executar a transposição. No presente momento, a posição inflexível de realizar a qualquer custo esta obra, que todas as instâncias comprometidas com a defesa da terra e da vida qualificam como desastrosa, impede um verdadeiro debate. E esse debate deveria ser sobre as ações necessárias para garantir qualidade de vida e segurança hídrica ao povo do nordeste.
A transposição é um projeto que pretende levar as águas do rio por meio de canais e dutos para 12 milhões de nordestinos que sofrem com a seca no semi-árido. No entanto, ainda há dúvidas se o rio tem vazão para sustentar o projeto, orçado em R$ 4,5 bilhões e que divide opiniões até dentro do governo. O projeto enfrenta resistência dentro do Ministério do Meio Ambiente, responsável pela liberação da licença. O ministro da Integração, Ciro Gomes, a senadora Heloísa Helena, o governador de Sergipe, João Alves Filho, e o deputado federal Marcondes Gadelha vão debater o projeto na sede do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea).
O ministro Ciro Gomes argumenta que a obra não resolverá o problema da seca, ''mas dará segurança de abastecimento para parte da população do semi-árido''. O governador João Alves sustenta que a obra beneficiaria apenas os criadores de camarão e a agricultura irrigada, prejudicando as populações ribeirinhas.
Líderes populares afirmam que em todo o processo a população do São Francisco foi sistematicamente ignorada e a situação degradante do rio minimizada. O governo nunca colocou possibilidade de alternativas ao projeto. A situação agravou-se mais ainda quando se começou a falar em construir mais duas barragens logo abaixo de Juazeiro. Levantava-se a possibilidade de erguer duas usinas atômicas em Belém do São Francisco. Aproximava-se a instalação de um verdadeiro ''leilão de águas''. À boca pequena, dizia-se que o mercado da água é mais lucrativo que o mercado de energia.
Quando a razão esgota suas possibilidades, é necessário que gestos de outra natureza e profundidade entrem em ação. Quando as palavras, os protestos, os argumentos já não são ouvidos, só os gestos falam. As pessoas mais próximas a Dom Luís declaram ser ele um homem extremamente responsável. Tudo em sua decisão foi muito pensado e amadurecido, ponderado na reflexão, na oração e na partilha fraterna com o povo a quem serve e ama.
Em lúcida e comovente declaração que acompanha carta por ele escrita ao presidente Lula, o pastor expõe sua decisão e motivações. Declara que permanecerá em greve de fome até a morte, sem suspendê-la, a não ser que ocorra a reversão da decisão sobre a transposição. Diz ainda que, caso venha a falecer, gostaria que seus restos mortais descansassem junto ao Bom Jesus dos Navegantes, ''meu eterno irmão e amigo, a quem, com muito amor, doei toda minha vida, em Barra, minha querida diocese.''
Na aurora do Cristianismo, Paulo de Tarso falava da loucura da cruz que é sabedoria de Deus. É essa loucura que Dom Luís deseja que fale através do oferecimento de sua vida em favor da vida. E para ele, claramente, a vida passa ''pela necessidade urgente de revitalização do Velho Chico e de ações que garantam o verdadeiro desenvolvimento para as populações pobres do Nordeste: uma política de convivência com o semi-árido para todos, próximos e distantes do rio''.
D. Luís não recuará. Irá até o fim na decisão que Deus o inspirou. E qualquer pessoa que conheça o imaginário religioso da população que vive no semi-árido sabe o que representa uma obra nascida e construída sobre a morte de um bispo. Se já teria início sob o signo da divisão, poderá ter agora o estigma da maldição.
Maria Clara Bingemer (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape), teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, escreve às segundas nesta página

JB, 03/10/2005, p. A11 (Outras Opiniões)

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