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A floresta que virou soja

Época, Amazônia, p. 52-56
26 de Abr de 2004

A Floresta que virou soja
Os agricultores prometem plantar apenas em áreas já desmatadas, mas os ambientalistas temem que os grãos aumentem o ritmo da devastação na Amazônia

KARINA NINNI (TEXTO), RAIMUNDO PACCÓ (FOTO)

No rastro dos tratores, estão se concretizando na Amazônia o sonho dourado dos agricultores brasileiros e o pesadelo dos ambientalistas. Depois de dominar o cerrado nas últimas décadas, os campos de soja encontraram na floresta sua mais nova e promissora fronteira de expansão. Com o financiamento de grandes empresas como a Cargill e a Bunge Alimentos, o lugar onde o plantio mais cresce é o Pará. A soja, que goza de um ótimo preço para exportação, pode ser uma esperança para aproveitar as terras de pastagens pouco produtivas que foram deixadas para trás pela exploração predatória da madeira. A grande promessa da soja é ocupar apenas a área que já foi desmatada. Um estudo publicado em janeiro pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (Usda) mostra que a Amazônia brasileira tem a maior fronteira do planeta para a expansão agrícola. Para o Usda, o Brasil pode expandir a área de cultivo em mais de 40 milhões de hectares sem derrubar uma única árvore. Metade dessas terras disponíveis estaria no Pará, segundo a Embrapa. Se fossem cultivados com soja, estes 20 milhões de hectares, em geral planos e mecanizáveis, dobrariam a superfície cultivada com o grão no país.
A soja revigora municípios que sofreram o esgotamento dos recursos naturais. Mas pesquisadores e ecologistas temem que a soja também acelere o ritmo de devastação da Amazônia, que cresceu 2% no ano passado. Nos últimos 12 meses, a quantidade de mata derrubada foi a segunda maior da história. Estimulados pela valorização das terras para soja, grileiros e pecuaristas invadem terras públicas para derrubar mais porções da floresta. Desperdiçam um dos ecossistemas mais ricos do planeta, que até poderia gerar mais empregos com exploração sustentável de madeira.
O Pará, com saídas mais próximas dos mercados compradores da Europa e da Ásia e terras a preços acessíveis, atrai para a Amazônia uma nova leva de migrantes do sul e centro-oeste do país. Eles têm tradição de agricultura mecanizada e dinheiro para investir. Na safra de 2003 o Estado produziu 29.200 toneladas de soja em cerca de 11.600 hectares. Para 2004. espera-se uma área plantada três vezes maior. O que alimenta esse avanço é o preço internacional do grão, em alta histórica. Neste ano, calcula-se que o complexo da soja (grãos, farelo e óleo) será responsável por até 14 % do total das exportações brasileiras. "A soja pode ser o carro-chefe do desenvolvimento do Pará", acredita Emeleocípio de Andrada, pesquisador da Embrapa.
O que mais impressiona é o crescimento da área cultivada no município de Santarém, às margens do Rio Amazonas. Há uma década, poucos acreditavam que fosse possível plantar tão no coração da Amazônia, por causa da umidade. Mas os sojicultores apostam numa área de 18 mil hectares até o fim deste ano, duas vezes mais que em 2003. Segundo a Embrapa, graças à insolação, a produtividade ali é a maior do Estado. A soja, junto com arroz, milho e feijão, já irriga a economia local. A safra de grãos do ano passado representou 72%, da arrecadação municipal, de R$ 109 milhões, indica uma projeção do Banco da Amazônia (Basa). Estima-se que R$ 6 de cada R$ 10 gerados pela agricultura circulem no próprio município. Nos últimos três anos, surgiram três novas concessionárias de tratores, quatro postos de gasolina e vários estabelecimentos pequenos de comércio. De 1998 para cá, cinco co companhias aéreas passaram, a incluir Santarém em suas escalas: O PIB do município aumentou 28% de 2002 para 2003.
Tradicional produtor de arroz, Santarém tem uma grande vantagem sobre os outros pólos de grãos: pode proporcionar duas safras ao ano, pois as chuvas duram mais tempo. Lá a soja está sendo introduzida na segunda safra, em rotação com a cultura de arroz. No ano passado, o Basa financiou R$ 19,9 milhões para plantação de grãos na região. Além disso, as multinacionais da soja também apóiam os produtores. O gaúcho Pio Stefanelo, que chegou a Santarém em 1998 e hoje é proprietário da única sementeira da região, é financiado pela Cargill. "Eles me adiantam os insumos, que são o mais caro, e eu pago na safra", explica. "A soja acaba viabilizando outras atividades, como a produção de semente de girassol e sorgo", diz. Pio e o irmão, Sérgio, são proprietários de terras em Santarém e no município vizinho de Belterra. Neste ano, pretendem plantar cerca de 900 hectares com soja.
A soja não tem sido uma opção tão boa para os pequenos agricultores. A família de Josefa Barreto de Souza, que tem 400 hectares em Belterra, desistiu. Sergipanos, residentes na região há 25 anos, plantaram 10 hectares de soja em 2003 tomando emprestada a plantadeira de um vizinho. Tiraram 33 sacas por hectare, quando a média é de 48. Apertaram-se para pagar os insumos. "Só um dos inseticidas usados custa R$ 600 o galão", queixa-se Josefa. Foram mais felizes com o arroz, que antecipou o plantio de soja, e agora deve ser a escolha da família no próximo plantio. "Como dinheiro da última safra, compramos uma caminhonete", diz Josefa, que vendeu toda a produção de arroz para a Mato Grosso Cereais, a agroindústria mais antiga na região.
Apesar de não encher o bolso dos pequenos, a soja já inflacionou o mercado de terras da região. Em 1998, o hectare custava cerca de R$ 40. Em 2000, estava por volta de R$ 140. No ano passado, já havia terras sendo negociadas a R$ 1 mil ou R$ 2 mil o hectare, dependendo da localização do lote. Essa especulação ocorre em uma região onde a maior parte das terras ainda é pública. Segundo um levantamento feito pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), 54% das terras do Pará são áreas devolutas ou estão em situação irregular. Em áreas de fronteira, como Santarém, essa proporção é maior. Os órgãos responsáveis regularizam os lotes em pequenas porções. O Incra ali não pode expedir título para pedaços superiores a 100 hectares e ninguém pode requerer posse da terra acima de 2.500 hectares. Mas na prática o mercado é irregular mesmo. Um sojicultor paranaense, que não quis se identificar, diz ter acumulado 6 mil hectares. "Adquiri tudo em três anos com os órgãos competentes e também de pequenos produtores", garante.
O mercado ilegal é produto da indústria de grilagem de terras, típica da Amazônia. Só no ano passado, o Ministério Público Federal em Santarém registrou 73 denúncias. "Até dois anos atrás, recebíamos uma ou outra", compara o procurador Nilo Marcelo Camargo. "Ninguém é contra o desenvolvimento ou o cultivo da soja, contanto que feitos dentro da lei. Mas as plantações em Santarém predominam em áreas griladas", esclarece. Segundo ele, a ocupação desordenada é incentivada por quem deveria discipliná-la. "Existe um comprometimento muito grande dos órgãos públicos com esse modelo de desenvolvimento, por isso as coisas estão nesse estado", desabafa.
O caso mais aberrante de grilagem até agora na região envolveu a imobiliária Rice (arroz, em inglês).
Os três sócios da empresa foram flagrados pelo Ministério Público vendendo terras públicas.Alguns dos lotes estavam, inclusive, dentro da Floresta Nacional do Tapajós, uma unidade de conservação. Denunciados, ficaram presos por dois meses e aguardam em liberdade o julgamento. Em agosto do ano passado, os pequenos agricultores da comunidade de Aramanaí, em Belterra, receberam a visita de um corretor de imóveis de Santarém, um homem que se dizia dono das terras e um grupo interessado em comprá-las. O negócio está parado no Ministério Público. "Há famílias de Estados do Sul que vendem o que têm e se mudam para cá. Quando chegam, descobrem que foram vítimas de estelionato", avisa o procurador. O golpe mais comum dos grileiros é entrar com processos para requerer porções de terra no Incra e vender os números dos protocolos, que não têm nenhum valor legal.
A grilagem também foi o início da ocupação de Redenção e Paragominas. Nas décadas de 70 e 90,-respectivamente, eram os maiores pólos madeireiros do país e, agora, desmatados, apostam na soja. O capixaba José Carminati, que mora em Paragominas desde 1980, já vendeu madeira e criou boi.
Hoje planta milho, arroz e soja. Fecha contratos futuros para o fornecimento da Bunge Alimentos, que vem atuando na região. "Cerca de 40%dos agricultores aqui têm o meu perfil, já trabalharam com tudo", afirma. A trajetória de Carminati e seus colegas é emblemática. Eles representam o fracasso dos ciclos econômicos insustentáveis que dominaram a região. Da exploração predatória de madeira, partiram para a criação extensiva de gado nos pastos plantados sobre as cinzas da floresta queimada. Com a terra empobrecida, têm agora de investir em correção do solo para plantar grãos.
A chegada da soja é inevitável, Além de oferecer terras interessantes, a Amazônia é hoje o caminho natural para o escoamento dos grãos, Mais do que pólo produtor, Santarém seria o porto em que embarcaria a soja vinda de Mato Grosso, o maior produtor nacional. Por conta disso, a Cargill inaugurou ali um terminal graneleiro no ano passado. O Ministério Público está cobrando o Relatório de Impacto Ambiental da obra. Mas o projeto realmente polêmico é a pavimentação da BR 163, a Cuiabá-Santarém, por onde viriam os caminhões com a soja. Hoje, a estrada de terra é praticamente intransitável. Os sojicultores mato-grossenses, organizados em um consórcio, pretendem concorrer ao direito de asfaltar a rodovia, com dinheiro privado e cobrar pedágio depois. O edital de licitação da empreitada saiu no início deste ano. Mas os ecologistas temem que a estrada conduza as madeireiras e os grileiros para a região central da Amazônia, até então quase intocada. Um grupo de trabalho envolvendo 13 ministérios deverá apresentar, em maio, uma proposta de compensação ambiental, como a criação ao longo da estrada de um corredor de áreas de conservação e de exploração sustentável de madeira.
Embora atraente hoje, a soja não é uma solução mágica para a Amazônia, principalmente por causa do excesso de chuvas. "Estamos assistindo a um dos maiores experimentos agrícolas da Terra", avisa o pesquisador Paulo Barreto, do Imazon.
Estudos mostram que a agricultura não é competitiva onde a precipitação supera os 2.200 milímetros por ano, como em grande parte do Estado do Amazonas, do Acre, do Amapá e no norte do Pará. Redenção e Paragominas ficam na área seca. Já Santarém fica em uma região onde chove alto, próximo desse limite. "Ali é bem irregular. Em alguns anos chove quase 3 mil milímetros", diz Barreto.
Hoje, a principal atividade econômica da Amazônia é a madeira. É responsável por 15 % do PIB da região e por 350 mil empregos. Análises do Imazon revelam que, se for explorada de forma correta, a floresta brasileira pode gerar o equivalente a três vezes a demanda internacional por madeira tropical. As grandes empresas, que extraem de forma sustentável, com certificação ambiental, empregam cinco trabalhadores por hectare, bem mais do que a soja mecanizada. A demanda internacional pelo produto é maior que a oferta. Mas, apesar de o negócio ser bem-sucedido, a maior dificuldade das empresas é comprar terra legalizada, porque, em geral, os grileiros chegam na frente.

Época, 26/04/2004, Amazônia, p. 52-56

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