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A ferro e fogo

FSP, Opinião, p. 9
Autor: LEITE, Marcelo
07 de Mai de 2006

A ferro e fogo

Marcelo Leite
Colunista da Folha

Este é o título de um dos melhores livros já escritos sobre o Brasil, de autoria de Warren Dean. Seu subtítulo é: "A história e a devastação da mata atlântica brasileira". Foi lançado por aqui há dez anos, dois após a morte do autor. Ainda está em catálogo por salgados R$ 62,00, mas vale cada centavo.
É uma daquelas obras que não envelhecem. Mesmo quem tem por hábito nada reler (a vida é breve e os livros, muitos) sairá da experiência recompensado. A análise aguda da destruição da mata atlântica diz mais sobre o Brasil do que uma floresta inteira de colunas de opinião, que amanhã só servirão para embrulhar peixe.
Assim como a jabuticaba, sua excêntrica fruteira, mata atlântica só existe no Brasil. Ou existia, pois dela resta somente um vigésimo da cobertura original. Da Bahia ao Rio de janeiro, foi derrubada primeiro pelo pau-brasil. Depois, do Nordeste ao Sul, para dar lugar à cana-de-açúcar e seus escravos. "Mato" e "bugres" eram os obstáculos ao avanço da civilização.
Em nenhum outro lugar esse embate foi tão selvagem quanto no Estado de São Paulo. Seus heróis tradicionais podem ter ampliado as fronteiras do Brasil, mas os bandeirantes não passavam de mestiços de índios que se especializaram em caçar e aprisionar índios puros. "A conservação dos recursos naturais iria mostrar-se irrelevante em uma sociedade na qual a conservação da vida humana era irrelevante", assinala Dean.
As fortunas construídas com cana, gado e café dilapidavam em uma ou duas gerações o capital natural de fertilidade acumulado pela floresta milenar. Depois vieram as estradas de ferro, que no início do século 20 consumiam 100 km' de mata por ano em lenha para gerar vapor e madeira para os dormentes, segundo estimativa de "A Ferro e Fogo". As mesmas ferrovias que inaugurariam uma espécie de ecoturismo às avessas:
"As excursões por via férrea revelavam para a classe média urbana a extensão do dano irreversível que estava ocorrendo no meio rural. O jornalista Euclides da Cunha, viajando do Rio de Janeiro para São Paulo em 1901, escreveu os ensaios `Fazedores de desertos' e'Entre as ruínas', nos quais descrevia os montes intermináveis de lenha estocados ao longo das faixas de servidão e de encostas erodidns e áridas, onde as voçorocas e a rocha viva ex
posta testemunhavam o abandono de plantações de café havia uma geração."
Não se trata, porém, só de um estudo de caso. Como em todo clássico, Dean projeta seu objeto para um plano universal: "O avanço da espécie humana funda-se na destruição de florestas que ela está mal equipada para habitar. A preservação de florestas deve, portanto, basear-se em algo além do argumento do auto-interesse cultural, ambiental ou econômico; talvez em uma concepção de interesse que apenas se poderia definir por um auto-conhecimento mais perspicaz e uma compreensão mais profunda e filosófica do mundo natural".
É esse o desafio lançado há uma década por Dean, e que o Brasil e o mundo continuam a ignorar. Por isso permanece atual.

Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros paradidáticos "Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br

FSP, 07/05/2006, Opinião, p. 9

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