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Feiras de sementes ajudam a preservar agricultura indígena

Globo Rural revistagloborural.globo.com.br
Autor: Raphael Salomão
02 de Nov de 2017

O ano era 1997. Indígenas da etnia Krahô, com apoio de especialistas da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), organizaram um encontro para compartilhar práticas agrícolas e conhecimentos passados de geração em geração. A partir do desejo dos próprios índios, de perpetuar suas tradições, foi realizada a primeira Feira de Sementes Tradicionais.

Pioneira no Brasil, a feira de sementes krahô é considerada por pesquisadores um marco na recuperação e preservação da agricultura tradicional praticada nas aldeias. O resgate desse modo de produção começou a ser feito na primeira metade da década de 1990, tornando parceiras a cultura indígena e a ciência relacionada à conservação da biodiversiade usada na agricultura e alimentação (agrobiodiversidade) no Brasil.

Para os Krahô, o milho, além de ser um alimento, integra tradições e a própria mitologia da etnia relacionada ao surgimento da agricultura. Diz a lenda que uma "mulher-estrela" desceu do céu e, no pátio da aldeia, entregou-lhes as sementes. A principal era o cereal, daí sua importância como símbolo de força e saúde. Mas esse cultivo foi se perdendo no tempo.

O indigenista Fernando Schiavini teve seu primeiro contato com a etnia em 1974 e, como agente da Funai, passou a trabalhar diretamente com essa população em 1982. Ele conhece bem o processo de mudança de modo de vida ocorrido com esses indígenas desde que passaram a viver em um território demarcado no início dos anos 40, na região nordeste do Tocantins, no norte do país.

"Isso fez com que as necessidades alimentares tivessem que ser cada vez mais buscadas na agricultura", explica Schiavini, hoje aposentado. Os krahô foram levados, inclusive por meio de programas governamentais, a plantar lavouras de arroz, recebendo sementes e insumos. "Essa política destroçou o sistema produtivo tradicional e fez com que os krahô perdessem praticamente todas as sementes tradicionais", diz o indigenista, ressaltando a situação de insegurança alimentar pela ausência dos antigos roçados.

Eram tradições que os Krahô queriam ter de volta nos pátios das aldeias. Em 1993, eles foram incentivados a formar uma associação, a Kapéy (grande pátio), e o cultivo do milho voltou a ser discutido. "Um ancião se manifestou dizendo que gostaria que a associação trouxesse as sementes, que dariam a saúde a eles, como no passado", conta Schiavini. É nesse ponto que a história e os anseios dos indígenas se unem aos cientistas da pesquisa agropecuária brasileira, contando com uma certa dose de acaso.

A participação da ciência é consequência de um trabalho do final da década de 70. Técnicos do então Centro Nacional de Recursos Genéticos da Embrapa (Cenargen) fizeram coletas de sementes em aldeias indígenas pelo Brasil. Na época, a hoje chamada Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, estava no início das operações de captação, pesquisa e conservação do material genético, iniciado com vegetais e que, anos mais tarde, agregou animais e microrganismos.

O material ficou guardado nas câmaras geladas do banco genético de sementes da Embrapa. Até que houve o "acaso", na década de 90. Relata Fernando Schiavini: "Uma comitiva de Krahôs que eu acompanhava em Brasília encontrou-se casualmente com um funcionário do Cenargen. Ele informou sobre a existência de um "banco de sementes". Visitamos o Cenargen na mesma ocasião, travando os primeiros contatos. Posteriormente, em 1994, uma comitiva devidamente agendada retirou pequenas amostras."

De posse dessas pequenas quantidades de milho, os Krahô puderam retomar o cultivo da semente. Parte do material reproduzido foi devolvido para o banco genético da Embrapa para conservação a longo prazo e recuperação se necessário. E começou a ser discutido um convênio entre pesquisadores e indígenas, que levou cerca de cinco anos para ser construído.

"Para os Krahôs, o retorno das sementes foi, sobretudo, o retorno da esperança. atualmente, conta-se 11 anos que eles não solicitam e nem aceitam sementes do exterior de suas terras. Também voltaram se organizar para o trabalho da forma tradicional, retornando aos roçados familiares", relata Fernando Schiavini.

Ainda tem arroz nas roças Krahô, diz o indigenista. Mas não é mais a cultura dominante. A mandioca voltou a ter predominância, plantada junto com outras diversas culturas. Ele menciona frutas, batata-doce, inhame e feijão de corda. "Sem os conhecimentos milenares dos Krahôs e outras etnias, nada seria possível", observa.

"Eles vivem em uma situação de segurança alimentar estabelecida. Têm autonomia em relação à produção e controle sobre seu patrimônio genético", diz o também indigenista Eduardo Biagioni, chefe da gestão ambiental da Fundação Nacional do Índio, em Palmas, capital tocantinense.

A ideia de trocar cultivares e compartilhar conhecimentos sobre práticas agrícolas indígenas, manejo e gestão territorial, surgiu no período em que o convênio dos Krahô com a Embrapa ainda estava em discussão. Depois da primeira colheita do milho resgatado do banco genético, mais lideranças manifestaram o desejo de ver e plantar. Dessa vontade foi articulada a realização da primeira feira de sementes tradicionais.

"Resgataram o milho e disseram, 'não vamos perder mais'. Vamos fazer um encontro aqui dentro de agricultores para trocar as sementes", lembra a pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia Terezinha Dias, que responde pela articulação da empresa com os indígenas.

De início, a maior quantidade e semente era de milho. Posteriormente, houve diversificação de culturas e etnias. Terezinha é testemunha do crescimento desses eventos. Segundo ela, a Nona Feira Krahô, em 2013, teve a participação de 18 povos diferentes, além de uma comunidade quilombola. O público geral chegou a 2 mil pessoas.

Baseados no método dos Krahô, outros povos passaram a organizar também suas próprias feiras (veja linha do tempo abaixo). Entre eles, os Xerente (Tocantins), Paresi (Mato Grosso), Caiapó (Pará) e Xacriabá (Minas Gerais). Assim, há vinte anos, feiras de sementes têm sido importantes para promover a agricultura tradicional e a cultura diversificada dos 305 povos indígenas que vivem em quase 13% do território nacional e para incentivar a conservação de sementes in situ, no seu local típico de cultivo.

Terezinha Dias acredita que a maior lição desse contato dos pesquisadores com os indígenas é o que chama de "diálogo de saberes". A 10ª Feira de Sementes Tradicionais Krahô deve ser mais um capítulo desse diálogo. A ser realizada entre 20 e 24 de novembro, servirá para a troca de sementes tipicamente cultivadas e manifestações culturais, além de ser um espaço de discussão sobre temas importantes para a população indígena.

"A situação política deve ser assunto bastante discutido", diz o indigenista Eduardo Biagioni. "Eles estão preocupados com as mudanças na política indigenista e podem até mesmo emitir algum documento e manifestação sobre isso", acrescenta, citando também assistência técnica, geração de renda e acesso a crédito rural como temas de discussão. Funai e Embrapa dão suporte ao evento com logística e estrutura.

Se, para os índios, a feira é importante para conservar sementes, técnicas e aspectos culturais, para os pesquisadores, é uma forma de gerar e atualizar conhecimento científico sobre a agricultura dos povos tradicionais. "Passamos a escrever artigos olhando a feira como um método de conservação das sementes. É algo importante para a segurança alimentar não só dos indígenas, mas nacional", explica Terezinha.

Festival Origem

A produção sustentável de alimentos é o tema do Festival Origem, que acontecerá entre os dias 1o e 3 de dezembro em São Paulo. O festival é organizado pelas marcas Globo Rural, Época e Casa e Jardim. Durante o evento, alimentos com origens sustentáveis serão apresentados em palestras, oficinas de culinária, exposição de produtores e praça de alimentação.

http://revistagloborural.globo.com/Noticias/Festival-Origem/noticia/201…

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