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A fé na cura

O Globo, Especial - Eleições 2006, p. 12
23 de Set de 2006

A fé na cura
Chico Otavio

O pajé guarani João da Silva, Veramirim na língua de sua tribo, conhece os limites de sua magia. A reza e as ervas não são seus os únicos instrumentos de cura. Ele não hesita em mandar o paciente para o posto médico da aldeia Sapucaí, onde vivem 376 índios em Angra dos Reis.

Veramirim jamais desconfiou dos poderes de seu oficio. Aos 94 anos, procura aliar a medicina tradicional que herdou dos antepassados com a medicina moderna por saber que elas não são excludentes.

E esta cena não é uma exceção. O Brasil que conta com assistência médica de qualidade com equipamentos de última geração, como o tomógrafo do Instituto do Coração (Incor) paulista, capaz de mostrar imagens tridimensionais do coração, é o mesmo que procura pajés, médiuns, mães-de-santo em busca de algum alívio para a dor ou a restauração da saúde.

- Todos que adoecem na aldeia são levados para a casa de reza. Também dou ervas. Mas nem sempre isso resolve.

Dependendo do caso, o parente vai para o posto ou para o hospital - diz Veramirim.

A antropóloga Patrícia Birman, da Uerj, critica o "argumento cientificista" que exclui a possibilidade de se inventar o próprio mundo através das crenças e da cosmologia. Num país em que a mesma população que exige os serviços de saúde de qualidade não abre mão do auxílio das tradições religiosas, ela desafia o argumento de que a Humanidade caminha para um tempo em que a ciência será a única explicação disponível:
- Não é bem isso que se vê como resultado. A ciência não resume os diferentes projetos da Humanidade. Ela faz parte, é um dos projetos, mas não da conta de todos. As pessoas querem ter bom serviço de saúde, ter acesso a todas as tecnologias de ponta, mas isso não exclui do seus projetos de vida o recurso da mãe-de-santo e do médium.

O médico-cirurgião Paulo Cesar Fructuoso convive bem como os dois mundos. Vice-presidente do Lar de Frei Luiz, um dos maiores centros espíritas do país, em Jacarepaguá, ele evitar falar em cura, mas acredita que o tratamento espiritual faça o sistema imunológico da pessoa funcionar melhor, como se o princípio ativo dos remédios dos médicos fosse potencializado ou absorvido mais rapidamente e mais integralmente.

- Não acredito em milagres. Porém, existem leis físicas e químicas, universais, que ainda não foram atingidas pela ciência terrena. Não deixo de fazer nenhum procedimento consagrado pela medicina em beneficio dos meus pacientes. Mas sempre que posso, e sempre que ele concorda, não hesito em associar ou potencializar o tratamento médico com os tratamentos alternativos sérios. No meu caso, especial, ligados ao espiritismo cristão.

Ele não gosta de comparar um com o outro, mas diz que, a longo de 30 anos de carreira como cirurgião, atendendo principalmente pacientes com câncer, atingiu resultados por vezes inesperados: - Eles podem estar relacionados à potencialização da fé dos pacientes. O sistema imunológico recebe um acréscimo e se toma mais operante.

O índio Veramirim ainda acredita que as doenças são trazidas pelo vento. Para espantá-las, ele conta com a ajuda de toda a aldeia, que é convocada para a casa de reza, um espaço sagrado fundamental na vida dos índios, onde se canta e dança para Nhanderu - Deus, na concepção dos guarani - na presença da pessoa doente. O pajé usa ainda uma lista variada de ervas para todo tipo de doença, como jaborandi e saracura, que ele já não encontra disponíveis na mata como no passado.

- Cada dia, preciso ir mais longe para achá-las.

Outros riscos espreitam a sua tradição. No dia da visita do GLOBO à sua aldeia, havia dois missionários tentando catequizar a comunidade. Os mesmos problemas - extinção da flora e intolerância religiosa - são enfrentados pela mãe-de-santo Palmira Ferreira Navarro, do tradicional terreiro Ilê Orno Oya Legi, fundado há três décadas em Mesquita, na Baixada Fluminense.

Como o pajé, ela acredita no convívio entre a fé e a medicina. Mãe Palmira combina duas tradições na missão de enfrentar os males que afetam sua clientela: o profundo conhecimento sobre ervas, aprendido desde criança com a sua avó, e os ebós preparatórios para doenças, obrigações do candomblé para determinado tipo de problema.

A mãe-de-santo exibe, orgulhosa, uma mesa forrada com toalha branca, de renda, e coberta com folhas para todos os tipos de doenças - Santa Maria, cana-do-brejo, quebra-pedra, sabugueiro, romã, babosa, toldo, tapete de Oxalá, alumã e capim-limão. Esta mesa, há anos, já foi mais farta e variada. Hoje, as ervas estão desaparecendo na natureza..

- O corpo, no candomblé, é a morada de Deus. O ser humano hoje não observa a natureza. E pensar que, no passado, ele aprendeu com os animais que comiam ervas para curar seus males. Hoje, ele perdeu o contato com a terra-mãe - lamenta mãe Palmira.
Nos projetos religiosos, diz a antropóloga Patrícia Birman, há formas de pensar e agir mais amplos do que a ciência ou que estão dialogando e usando a tecnologia que a ciência disponibiliza.

- Não se trata de opor ciência e religião, mas acabar de vez com a idéia de que as pessoas que propõem métodos de curas ignoram os outros recursos oferecidos pelo mundo moderno contemporâneo. A grande maioria da população busca diferentes recursos para os seus males.
Com o cuidado de não tratar a tradição espiritual como uma oposição à medicina formal, Patrícia não crê que as práticas de curas pela fé possam desaparecer, mesmo com o avanço da medicina ou a universalização da saúde no Brasil, com uma rede capaz de não deixar um único paciente sem atendimento.

- Até nas sociedades mais desenvolvidas existe um imaginário. A própria ciência promete imaginário tecnológico e ficcional. E também muito religioso, porque oferece a eternidade, uma utopia religiosa.

A utopia da reprodução pela clonagem - diz ela.

A antropóloga concorda que, no Brasil, existe uma tradição forte no relacionamento entre ciência e religião.

- O diálogo está sempre presente entre as duas, apesar do ideário que postula o fim da religião com o advento da ciência. Esta relação é elaborada pelo espiritismo, por exemplo, que discute todo o tempo o que seria a base científica de um projeto de humanidade - afirma.

O Globo, 23/09/2006, Especial - Eleições 2006, p. 12

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