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Fantasma de concreto, transposição não rende ainda uma gota d'água

O Globo, País, p. 12
28 de Abr de 2013

Fantasma de concreto, transposição não rende ainda uma gota d'água
Obra idealizada no Império, que vai beneficiar quatro estados do Nordeste, avança lentamente

Letícia Lins
Enviada especial
leticia.lins@oglobo.com.br

FLORESTA E CUSTÓDIA (PE) - Alvo de muita polêmica, idealizada nos tempos do Império (o primeiro projeto data de 1847), a transposição do Rio São Francisco, em implantação desde 2007, lembra hoje uma quilométrica passarela de retalhos na qual faltam costura e pedaços de tecido. Aguardada por quatro estados do Nordeste que amargam a maior seca dos últimos 40 anos, aquela que seria a rendição de 12 milhões de sertanejos não passa de um conjunto de canais desconectados, dutos enferrujados com ferros retorcidos e estação elevatória que parece um fantasma de concreto. Às margens da BR-316, no município de Floresta, a 439 quilômetros de Recife, duas colunas gigantescas servem de suporte para nada.
A obra ainda não conseguiu levar uma gota de água a lugar algum, o que vem despertando revolta da população e apreensão nos estados que seriam beneficiados. Com um custo inicialmente estimado em R$ 4,5 bilhões, a transposição agora está orçada em R$ 8,2 bilhões. A previsão de entrar em funcionamento em 2010 não pôde ser concretizada, e o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho, promete entregá-la em 2015. O empreendimento tem só 43% concluídos, o mesmo índice observado em 2012.
Na última semana, O GLOBO percorreu três de seus canteiros de obras, onde foram vistos apenas quatro trabalhadores. Em Custódia, a 340 quilômetros de Recife, havia um amontoado de britas e rochas dinamitadas. Em Floresta, onde funcionará um dos pontos de captação, há gigantescas estruturas sem utilidade. Há canais incompletos ou interrompidos, cujas placas, sem água, começam a apresentar rachaduras devido ao sol. Os canteiros de obras estão abandonados. Só dois caminhões foram vistos operando.
Obra já teve 9 mil operários
O projeto chegou a ter 57 contratos, cerca de 90 empresas operando e 9 mil operários em ação. Um bom termômetro da paralisação é a comerciante Eliane Maria da Silva, de 39 anos, ex-trabalhadora rural que montou um restaurante e vendia 400 refeições diárias a operários em Floresta.
- Foram dez meses de muita luta, mas entrava dinheiro. Agora, tem dia que só aparecem três clientes - lamenta Eliane, que entregou o cartão do Bolsa Família quando viu o negócio prosperar e tem vergonha de se cadastrar de novo.
O Ministério da Integração Nacional diz que, para cada real investido na transposição, dois são colocados em outras obras hídricas no Nordeste. Mas Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará começam a rever seus planos porque têm adutoras erguidas nos eixos da transposição que nunca funcionaram: o Eixo Norte do projeto de transposição deverá captar água em Pernambuco e levá-la por um canal de 400 quilômetros até Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. O Eixo Leste, com 222 quilômetros, deverá abastecer Pernambuco e parte da Paraíba.
De olho na água da transposição, os estados começaram a implantar adutoras com ajuda da União. Mas enfrentam problemas graves, como o Rio Grande do Norte, que está com a adutora do Alto Oeste praticamente concluída, mas correndo o risco de ficar sem função. A obra consumiu R$ 35 milhões. Já deveria estar captando água no Eixo Norte, que desaguaria em um outro açude, o Pau dos Ferros. Sem a transposição, o reservatório está à beira do colapso. Semana passada, só acumulava 16% de sua capacidade. No estado, 144 municípios estão em estado de emergência devido à seca.
Em Pernambuco, foi licitada a construção da adutora do agreste, que deveria captar água no Eixo Leste e levá-la para uma das regiões mais castigadas pela seca. Com investimento previsto de R$ 2,3 bilhões, a obra deverá ter 1.200 quilômetros de extensão e beneficiar cerca de 60 municípios
- As licitações estão sendo realizadas, e as estações de tratamento já existem. Será uma obra grande, que deverá ficar pronta em um ano e meio, antes da conclusão da transposição - reclama o governador Eduardo Campos (PSB).
Para que a adutora não vire um elefante branco, o governo estadual estuda perfurar 26 poços em outra bacia para captar água, diz o secretário de Recursos Hídricos de Pernambuco, José Almir Cirilo:
- O maior problema da transposição é no coração do sistema. A desistência de empreiteiras atingiu duas estações elevatórias.
- Os canais da transposição não possuem emendas e ninguém pode usá-los. A obra se transformou em uma bagaceira, e, do jeito que vem sendo executada, não serve para nada - resume o secretário de governo de uma das cidades prejudicadas em Pernambuco. Ele prefere o anonimato.
Enquanto isso, uma lâmina de meio centímetro de água no canal próximo à casa de Eliane, servia só para matar a sede de pássaros e cabritos.

Diarreia em oito de cada dez internados
Cidades sofrem com má qualidade da água e desabastecimento

ÁGUAS BELAS (PE) e SANHARÓ (PE) - No último dia 19, a água era disputada quase a tapa no meio da rua em Águas Belas, a 314 quilômetros de Recife. Filas quilométricas se formaram para encher baldes, panelas e tambores de plástico: mais de 500 pessoas aguardavam a vez de poder se abastecer com a água, distribuída gratuitamente pela Companhia de Saneamento de Pernambuco (Compesa).
Segundo moradores, há mais de 20 dias as pipas da estatal não apareciam. O prefeito Genivaldo Menezes Delgado (PT) disse que a água fornecida oficialmente só atende a 40% das necessidades da área urbana.
O prefeito disse que a má qualidade da água já se reflete na saúde da população:
- De cada dez pessoas internadas no Hospital João Secundino, o principal daqui, oito estão com diarreia - afirmou.
Delgado disse que a situação imposta aos 41 mil habitantes do município provoca duplo sentimento:
- A sensação é de revolta e impotência. A gente vê o governo gastando milhões em Arena da Copa, enquanto o povo adoece de fome e sede. É humilhante a disputa pela água com baldes. Estamos à espera da transposição.
Com a seca, os relatos dramáticos se sucedem, como o ouvido em Sanharó, a 201 quilômetros de Recife. Aos 67 anos, Gil Avelino contava que perdeu 35 cabeças de gado e está inadimplente no Banco do Nordeste do Brasil. "Quebrado", como faz questão de ressaltar, atribui ao "aperreio" dos últimos 12 meses a cirurgia que precisou fazer no coração.
- Se não fossem os programas sociais, já estaria havendo saques na cidade. Há 8 mil pessoas no Bolsa Família, 1.690 no Bolsa Estiagem e 2.118 no Garantia Safra - resumiu o prefeito de Águas Belas.

Ministério da Integração diz que água será entregue à população em 2015
Fernando Bezerra nega que projeto esteja inacabado

FLORESTA (PE) - A água correrá nos canais da transposição do São Francisco a partir de 2014, e em 2015 ela será entregue à população, afirmou o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho, negando que o projeto esteja inacabado. Segundo Bezerra, as obras estão em execução, com 53,8% do Eixo Leste e 33,7% do Eixo Norte realizados.

Segundo o ministro, há 4,6 mil homens trabalhando; até julho de 2013, serão 6 mil , com mais de 3 mil equipamentos sendo usados, frutos de contratos que foram recentemente assinados e ordens de serviço emitidas em 2012.

O ministro disse que houve mudanças na implantação: os 16 lotes de obras foram substituídos por metas, seis ao todo, agora chamadas de metas de conclusão para etapas úteis. Assim é mais fácil o gerenciamento, diz.

- O processo estabelecido para a implantação do projeto, a partir de 2007, previu a divisão em 16 lotes de obras civis, 14 de supervisão, seis de projeto executivo, 19 de fornecimento e montagem de equipamentos; uma licitação para o gerenciamento dos empreendimentos e outra para o acompanhamento da execução do componente ambiental.

Ou seja, a pasta passou a administrar 57 contratos, envolvendo mais de 90 empresas. Em nota, disse que "implicações técnicas, associadas à forma fragmentada de contratação da execução de serviços, tornaram a missão do gerenciamento mais complexa".

O ministro disse que, com a nova forma de licitação e contratação, com seis trechos de obras, será mais fácil gerir o projeto.

A mais importante obra hídrica do governo no país começou a ser implantada só com o projeto básico, que entrou em conflito com o executivo, o que gerou transtornos. Com os novos serviços não previstos na primeira etapa, as prestadoras exigiram aditivos. E não foram poucos: 298 solicitações só em 2011.

Segundo o ministro, aquele ano foi dedicado quase exclusivamente à negociação com as empresas e inciativas para evitar a paralisação completa da obra. Das 298 solicitações, 153 foram resolvidas. Em 2012, houve novas exigências, 157, das quais 147 respondidas.

Houve empreiteiras que chegaram a cobrar aditivos acima do limite legal de 25%. Sem acordo, algumas abandonaram os canteiros de obras, sem o consentimento da pasta. Foram advertidas conforme cláusulas contratuais. O governo rescindiu o contrato com um consórcio (Canter/Engesa) porque as empresas não apresentaram garantias contratuais, diz Bezerra.

Ele assegurou, porém, que outros contratos que estiveram suspensos já foram retomados. E negou a suspeita de que o novo orçamento da obra (R$ 8,2 bilhões) inclua sobrepreço. Disse que entre os fatores relevantes para a revisão de custos há novas condicionantes ambientais exigidas pelo Ibama, que resultaram em acréscimo de R$ 1 bilhão.

Aos que criticam a morosidade da obra, Bezerra citou outros projetos de transposição no mundo que levaram entre dez e 40 anos para serem concluídos, como o Especial Chavimochic, no Peru (implantado entre 1986 e 1996), e o Tejo-Segura, na Espanha (que levou 40 anos, indo de 1933 a 1973)

O Globo, 28/04/2013, País, p. 12

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