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"Falta conversa e entendimento", diz pós-doutor da UFGD sobre estudo da demarcação

Midiamax - http://www.midiamax.com/view.php?mat_id=523027
Autor: Fernanda Brigatti
16 de Ago de 2009

O MPF (Ministério Público Federal) realizou na semana que passou um seminário sobre os estudos para demarcações de territórios indígenas. Polêmico, o assunto gera, em Mato Grosso do Sul, um vendaval de dúvidas e informações desencontradas.

O evento promovido pelo MPF tinha justamente o intuito de esclarecer algumas dessas dúvidas sobre a questão. Um dos palestrantes foi o professor da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), Levi Marques Pereira, que tratou da questão territorial.

Levi é pós-doutor em Antropologia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e atualmente é professor adjunto da UFGD. Ao Midiamax, ele fala um pouco sobre o que deve ser focado pela Funai (Fundação Nacional do Índio) e relata a ocupação território no Mato Grosso do Sul.

Midiamax - O governo Federal, através da Funai, se prepara para iniciar estudos para a demarcação de terras indígenas. Dentro deste contexto da ocupação dos territórios no Brasil e em Mato Grosso do Sul, gostaria que o senhor explicasse o que define uma terra como ancestral?

Levi: O que está em questão não é o conceito de ancestralidade, mas de tradicionalidade. A definição de tal conceito observa as diretrizes estabelecidas no Art. no 231 da Constituição Federal, no Decreto no 1775 de 08 de janeiro de 1996 e na Portaria MJ n.o 14 de 09 de janeiro de 1996. Do ponto de vista antropológico, o reconhecimento de determinada área como terra de ocupação tradicional indígena requer a caracterização precisa de sua ocupação por determinada comunidade segundo seus usos, costumes e tradições. Resulta daí que a identificação e delimitação de uma terra como de ocupação tradicional indígena exige a aplicação de detalhados procedimentos científicos desenvolvidos pela ciência antropológica. O manejo adequado de tais procedimentos exige sólida formação acadêmica em antropologia e conhecimento etnográfico do grupo étnico no qual se realiza o estudo.

Midiamax - Se partimos do princípio de que no início daquilo que se registra como história do Brasil (1500) todos os territórios eram indígenas, o que podemos entender como terra indígena, hoje? Para estudiosos - geógrafos, antropólogos - existe um "limite" temporal para avaliar uma região como tradicional?

Levi: A legislação indigenista brasileira estabelece que a regularização fundiária das terras de ocupação tradicional indígena diz respeito ao reconhecimento de direitos territoriais de comunidades vivas, que dividem conosco o tempo atual, são nossas contemporâneas. Se nos remetermos a 1500, com certeza iremos nos certificar de que as populações indígenas ocupavam naquela época espaços muito mais vastos do que os demandados hoje. Acontece que muitas das populações indígenas que existiam em 1500 foram extintas ao longo dos últimos cinco séculos de história. É impossível demarcar uma terra indígena sem a existência de pessoas vivas que possam compor uma comunidade étnica atual, pelo simples fato de que só pessoas vivas podem ocupar determinado espaço segundo seus usos, costumes e tradições. Assim, o reconhecimento do direito territorial indígena exige a identificação precisa da existência de uma comunidade étnica, com vínculos históricos e culturais com a área demandada. Para atender tal exigência a composição do Grupo Técnico necessariamente incorpora um profissional de antropologia, cuja formação técnica fornece instrumentos para a descrição e compreensão das instituições que compõem o sistema social indígena, com sua organização social, formas de assentamento, manejo do espaço e produções culturais específicas.

Midiamax - Como se deu a ocupação indígena em Mato Grosso do Sul? Como começou a convivência com a ocupação branca?

Levi: A ocupação indígena em MS é objeto de estudo de arqueólogos e de etnohistoriadores, fugindo a minha competência como antropólogo. A leitura de tais estudos informa que populações indígenas aqui viviam muito tempo antes da chegada dos europeus ao continente americano.

No caso específico do Sul de MS, região onde vive as populações Kaiowá e Guarani e onde se concentrarão os estudos dos seis GTs constituídos pela FUNAI, pode-se dizer que a maior parte das comunidades passou a ter "convivência" mais próxima e freqüente "com a população branca" a partir da implantação da extração da erva mate pela Cia. Mate Laranjeira. Isto ocorreu a partir da penúltima década do século XIX. Entretanto, muitas comunidades Kaiowá e Guarani lograram permanecer em suas terras de ocupação tradicional, espaços dos quais só se deslocaram com o fim da concessão de arrendamento das terras por parte da Cia. Mate Laranjeira e a titulação das terras em nome de particulares. Muitas comunidades Kaiowá e Guarani permaneceram em suas terras de ocupação tradicional por mais de meio século, convivendo com a atividade econômica de extração da erva mate na região. Muitos índios também participaram como trabalhadores no empreendimento ervateiro. A partir da década de 1930 muitas destas comunidades foram deslocadas das terras que até então ocupavam. Isto ocorreu por conta da titulação das terras em nome de particulares e a intensificação da especulação imobiliária, considerando que a revenda das terras muitas vezes implicava na retirada da população indígena. O deslocamento de comunidades indígenas dos locais que tradicionalmente ocupavam tornou-se um procedimento corriqueiro com o avanço da ocupação agropastoril na região sul do MS, prolongando-se até pelo menos a década de 1980. A atuação do Serviço de Proteção ao Índio -SPI, o órgão indigenista oficial, depois substituído pela FUNAI, muito contribuiu para isto. O SPI demarcou oito pequenas reservas indígenas no sul do MS que na prática passaram a funcionar como espaço de recolhimento dos índios deslocados das terras que tradicionalmente ocupavam. Daí o vertiginoso crescimento demográfico das reservas, superando em muito as possibilidades do crescimento vegetativo da população indígena, especialmente nos períodos de maior pressão sobre as terras por eles ocupadas.

Midiamax - Quais os fatores que nos trouxeram ao desenho territorial que temos hoje no Estado?

Levi: O "desenho territorial" do sul de MS num primeiro momento resultou da presença da Cia. Mate Laranjeira, primeira frente de ocupação econômica de grande impacto com a qual os Kaiowá e Guarani que viviam na região passaram a dividir o espaço territorial. A partir de 1915 a legislação de terras permitiu o requerimento de até dois lotes de 3600 hectares em nome de particulares, favorecendo a chegada gradual de outros ocupantes à região. No final da década de 1930 ocorre o declínio da exploração da erva mate e a interrupção da renovação dos arrendamentos das terras por parte da Cia. Mate Laranjeiras. O estado de Mato Grosso passa a considerar as terras liberadas dos arrendamentos como devolutas e disponíveis a venda para particulares interessado. Isto dá inicio a uma corrida imobiliária em busca da compra de terras. As vendas de terras se prolongam até a década de 1950. Acontece que as terras até então ocupadas pelos indígenas não foram reconhecidas naquele período, pois também foram incluídas nas terras tidas como devolutas. Predominou o entendimento de que os índios deveriam ser deslocados para as oito reservas demarcadas pelo SPI. O não reconhecimento e garantia das terras de ocupação tradicional indígena naquele período e a conseqüente regularização destas terras em nome de particulares está na origem nas disputas territoriais atuais. Após a titulação das terras em nome de particulares elas foram sendo gradativamente ocupadas por atividades agropastoris. No caso de existir comunidade indígena na propriedade titulada, muitas vezes ela foi incorporada como mão-de-obra na abertura da fazenda e obrigada a se deslocar para uma das reservas tão logo o trabalho prestado se tornou dispensável. Em alguns casos, famílias indígenas se mantiveram no local de origem da comunidade por décadas, mantendo vivos os vínculos com o território de ocupação tradicional, mesmo os indígenas assumindo externamente a condição "peão de fazenda".

Midiamax - O senhor dá aulas em Dourados, tem uma familiaridade com o assunto da ocupação das terras. O que dá pra enxergar nesses estudos? Como o senhor acha que será esse processo?

Levi: Falta conversa e entendimento. Creio que para haver entendimento é preciso estabelecer algumas premissas que sirvam como ponto de partida compartilhado entre as partes que expressam interesses opostos. Só então é possível expor as razões particulares e construir soluções que apontem para um consenso.

No meu entendimento, e aqui falo como cidadão sul-mato-grossense que tem todo o interesse na superação dos conflitos, algumas questões poderiam servir como base para essas premissas:

1- O reconhecimento dos direitos territoriais indígenas por parte da classe política e dos proprietários rurais de MS. Deve-se ainda agregar uma questão humanitária e reconhecer que a vida dos Kaiowá e Guarani nas atuais reservas a eles destinadas se tornou desumana, comprometendo os processos de reprodução física e cultural. Por sua vez, as lideranças indígenas, conscientes de seus direitos, dão demonstrações claras de que não vão se submeter mais a essa condição e exigem do Estado uma solução para o problema do reconhecimento e regularização de suas terras e ocupação tradicional. Tais direitos são assegurados pela legislação e não há mais como protelar sua aplicação;

2- A economia de MS é fundamentalmente baseada na produção agrícola, na criação de gado e na agroindústria. Interessa a todos que aqui vivem - inclusive aos índios-, que a economia do estado seja cada vez mais pujante. Isto implica que a economia do estado não pode ser inviabilizada pelas demarcações;

3- O incremento da economia de MS exige a expansão dos mercados para produtos como carne, soja, milho, álcool, açúcar, etc. A tendência dos novos mercados, em especial o externo, é serem cada vez mais exigentes quanto à origem dos produtos, com grande desvantagem para produtos que agreguem passivos ambientais, étnicos e sociais. Nesse sentido, pode ser muito desfavorável para a economia de MS associar a imagem do estado aos maus-tratos às comunidades indígenas;

4- Há ainda a questão das possíveis indenizações e compensações. Como não sou operador do direito, não sou apto a discuti-las.

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