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'Fala de Salles pode ser sinal verde para desmatadores', diz ex-diretor do Inpe

O Globo, sociedade, p. 30
Autor: GALVÃO, Ricardo
20 de Nov de 2019

'Fala de Salles pode ser sinal verde para desmatadores', diz ex-diretor do Inpe
De volta à vida acadêmica após desgaste público com o ministro do Meio Ambiente e o presidente Bolsonaro, Ricardo Galvão diz que é preciso aproveitar a biodiversidade da floresta sem derrubá-la

Elisa Martins

De volta à vida acadêmica após um desgaste público com o Ministério do Meio Ambiente e o governo Bolsonaro , há três meses, o físico Ricardo Galvão diz que o passado está superado.

Diretor exonerado do Instituto de Pesquisas Espaciais ( Inpe ), Galvão hoje desenvolve projetos no laboratório de Física de Plasmas (Tokamak) da Universidade de São Paulo (USP), que ajudou a criar. Mas encara como obrigação continuar falando sobre a Amazônia . Em entrevista ao GLOBO, ele diz não ter se surpreendido com os números divulgados na segunda-feira pelo instituto , que mostraram que 9.762 km² de floresta foram devastados entre agosto de 2018 e julho deste ano.

Os números do próximo ano, diz, serão ainda maiores. Nesse ritmo, em dez anos o desmatamento da floresta pode se tornar irreversível. "O ministro Salles falar que é necessário um desenvolvimento sustentável pode ser sinal verde para os desmatadores, se ele não apresentar um plano efetivo", alerta Galvão.

Para o pesquisador, o desenvolvimento sustentável da Amazônia passa por projetos que explorem a biodiversidade da floresta sem derrubá-la, e com os incentivos fiscais corretos - onde não cabem mineradoras em terras indígenas. "É um momento de preocupação até do ponto de vista legal. A lei 12.187 (instituída pela Política Nacional sobre Mudança do Clima) obriga o governo brasileiro a reduzir o desmatamento em 2020 a menos de 3.900 km². O governo não vai cumprir isso", diz Galvão.

O Inpe divulgou ontem que 9.762 km² da Amazônia foram devastados entre agosto de 2018 e julho deste ano. É um aumento de 29,5% em relação ao ano anterior. Como ex-diretor do instituto, os novos dados o surpreenderam?

Não. Antes mesmo de saírem esses dados, o desmatamento apontado pelos alertas do sistema Deter (também do Inpe) já indicava um aumento grande. De janeiro a junho, foi quase o dobro do mesmo período do ano passado. Temos uma série histórica de 13 anos que mostra que os dados do sistema Prodes (que mostra o total anual de desmate) costumam ser acima do apontado pelo Deter (que emite alertas em tempo real). Então, já esperávamos um desmatamento acima de 9.000 km².

O período analisado pelo Prodes não engloba os meses de agosto e setembro, quando as queimadas foram ainda piores. O número do próximo ano pode ser ainda pior?

Pode. O procedimento é sempre o mesmo. A área é desmatada no final do período de chuvas, até maio ou pouco antes. E aí as árvores derrubadas ficam secando até que são queimadas no período de seca. As queimadas horrorosas que vimos foram feitas nas áreas desmatadas. Agora está começando o período da chuva, e as queimadas diminuem. Mas o que vai acontecer no ano que vem, certamente, é que teremos uma área desmatada ainda maior, o que é bastante preocupante se não houver ação drástica de fiscalização do governo.

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, atribuiu o aumento do desmatamento a atividades ilegais na Amazônia, como extração de madeira, garimpo e ocupação ilegal do solo. E disse que a solução passaria por buscar alternativas econômicas de maneira sustentável. O senhor concorda?

Fico satisfeito de ele falar sobre isso agora. Desde o começo do ano, quando eles atacaram a questão do aquecimento global, colocando em dúvida o efeito antrópico sobre o aquecimento global e a necessidade de preservação da Amazônia, não falavam em desenvolvimento sustentável. Mas há várias propostas e trabalhos científicos já feitos nesse sentido. O governo deveria ter trazido um plano pronto. Agora, parece uma desculpa por não ter agido como deveria desde o começo.

De forma prática, o que deve constar em um plano de desenvolvimento sustentável da Amazônia?

O desenvolvimento sustentável é feito explorando a biodiversidade da Amazônia. Um exemplo é o açaí. É um grande item de exportação e recurso explorado sem derrubar as palmeiras. Nada é retirado da floresta. Se alguém for no exterior comprar produtos que vêm do açaí, verá que vinte deles são produzidos na Califórnia. Eles importam a fruta e desenvolvem lá. Se o governo tivesse estímulos, como teve para a Zona Franca de Manaus há 50 anos, para indústrias explorarem a biodiversidade de forma sustentável, isso estaria sendo feito na Amazônia. A própria Agropalma, empresa que exporta o óleo de palma, o azeite do dendê, que tem valor grande no comércio exterior, só produz óleo de palma em áreas já degradadas ou de pastagens. E faz isso utilizando a agricultura familiar.

Há um mundo enorme de possibilidades para explorar a biodiversidade da Amazônia. Esse governo, e outros anteriores, também poderiam ter olhado para a Zona Franca de Manaus. Ela é responsável por quase 90% da renda do estado do Amazonas. Só que ela é baseada em uma indústria de 50 anos atrás. Por que não se distribuem zonas francas na Amazônia para empresas que explorem a biodiversidade da Amazônia, com incentivos fiscais? São atitudes claras e assertivas que o governo poderia tomar para retirar produtos da floresta e processá-los, industrializá-los e vendê-los sem derrubar a floresta. Basta ter vontade política e utilizar o que já temos desenvolvido pela ciência. Mas é necessário que haja os incentivos fiscais corretos. E não com uma indústria como o governo fala agora de mineradoras, que vão entrar em territórios indígenas, o que é um absurdo total.

Como o aumento do desmatamento tem afetado terras indígenas?

Em março, demos um alerta, com sistemas como o Deter, de mineração ilegal em terras indígenas. Renovamos o alerta em abril. Em agosto, o presidente Bolsonaro disse que as ONGs teriam relação com as queimadas. Só que aquilo foi ao longo da rodovia 163, que cruza o Parque Nacional do Jamanxim. Quando essa rodovia chega no cruzamento com o rio Tapajós, é tudo área de mineração ilegal, praticamente. E o Inpe já tinha dado vários alertas de desmatamento e sabíamos que ia haver queimadas lá, porque só de pedidos de licença de mineração neste ano são 7.500. E o governo sabe disso. O presidente Bolsonaro inclusive deu entrevistas apoiando mineradoras, mas o governo escapa de dar desculpas pela sua falta de ação.

Ambientalistas culpam o governo Bolsonaro pelo aumento no desmatamento neste ano. Qual é a participação do governo nesses números?

É difícil quantificar. Mas a mensagem é clara. Basta por exemplo o ministro Salles falar que é necessário um desenvolvimento sustentável e isso pode ser um sinal verde para os desmatadores se ele não apresentar um plano efetivo. Para não dar um exemplo só do Brasil, o discurso do (então) presidente Evo Morales sobre a ocupação da Amazônia boliviana no ano passado fez com que neste ano o desmatamento da Amazônia boliviana fosse 50% acima do registrado no ano passado. Discursos de governo "permissivos" são sinal verde para a atividade ilegal.

Se seguirmos esse ritmo de desmatamento, quando ele se tornaria irreversível?

Nesse ritmo, em cerca de dez anos podemos atingir um limiar de não retorno. Podemos chegar ao limiar de que a transformação da Amazônia em uma savana ao longo do tempo seria irreversível. É muito preocupante.

Que efeitos isso pode ter para o Brasil e outros países?

O primeiro efeito, que já sentimos, é que na principal região desmatada da Amazônia, que começa no Maranhão, desce pelo Pará e vai até o norte do Mato Grosso, o período de seca já dura de uma a duas semanas a mais do que no resto da Amazônia. Outro efeito grande é no regime pluviométrico em todo o Brasil e na América do Sul, afetando fortemente nossa agricultura. Até o governo agora entende que os chamados "rios voadores" de umidade da Amazônia para Sul e Sudeste são essenciais para os agricultores brasileiros. Só uma árvore na Amazônia, com uma copa de 10 a 20 metros, bombeia cerca de 600 a mil litros de água por dia para a atmosfera. Só uma árvore. A Amazônia é responsável por quase 20% da umidade na atmosfera. Outro problema que vai nos afetar é a diminuição da biodiversidade, que é irreversível. Não sabemos praticamente nada sobre a biodiversidade da Amazônia ainda. E finalmente está o problema do efeito global. A Amazônia é a principal ferramenta para sequestro de carbono da atmosfera e evitar o aquecimento global através da emissão de CO2.

Acha que com esse resultado pode ser mais difícil retomar projetos estrangeiros de ajuda à região, como o Fundo Amazônia?

O Fundo Amazônia veio em uma época em que a taxa de desmatamento foi muito alta. O importante é a credibilidade que os países beneficiados têm sobre como os fundos são utilizados. Em 2014, o Inpe melhorou muito a resolução do sistema Deter para alertas de desmatamento A maior parte dos recursos veio do Fundo Amazônia, em um projeto que o Inpe submeteu ao fundo. Agora, o Inpe tem um projeto da ordem de R$ 70 milhões que permite monitorar seis biomas brasileiros. Isso também com recurso do Fundo Amazônia, em um projeto muito bem elaborado pelo Inpe. O que importa é a credibilidade sobre o uso do recurso. Claro que não é o aumento do desmatamento, mas a visibilidade que o governo Bolsonaro dá em relação ao Fundo Amazônia.

O que esse ano de desmatamento na Amazônia e óleo nas praias diz sobre uma condição de emergência ambiental? E como analisar esse período em relação a anteriores?

Certamente é um momento de emergência. Mas não é desse governo apenas. Já no governo Lula houve discussões fortes entre Marina Silva e Dilma Rousseff, que levaram até à renúncia da Marina. E vimos o efeito disso em 2012, quando Dilma arrefeceu as ações de fiscalização na Amazônia. É um momento de preocupação até do ponto de vista legal. A lei 12.187 (instituída pela Política Nacional sobre Mudança do Clima) obriga o governo brasileiro a reduzir o desmatamento em 2020 a menos de 3.900 quilômetros quadrados. O governo não vai cumprir isso.

O ministro Salles disse que não descartava a utilização das Forças Armadas para coibir o desmatamento, como ocorreu nas queimadas. Qual é a melhor forma de fazer fiscalização?

A fiscalização tem que ser fortemente executada por fiscais do Ibama, com agências estaduais, em uma boa articulação federal com os estados. Não é possível os fiscais irem sozinhos fazerem a fiscalização nas zonas desmatadas, porque são recebidos na bala. A ação do Exército pode ser esporadicamente interessante, mas não efetiva, porque não são policiais. É preciso uma articulação muito boa entre Ibama, agências estaduais de fiscalização e as polícias militares estaduais.

Na apresentação dos dados no Inpe, o ministro Marcos Pontes (Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações), também presente, afirmou que a presença do ministro Salles no instituto era demonstração de que os embates do passado estavam superados. Para o senhor, o passado está superado?

Espero que sim. O ministro Pontes já falou que eu deveria ter agido diferente, mas não concordo, porque o ministério (do Meio Ambiente) foi avisado, enviei ofícios, e as ações não foram tomadas. Mas, vendo do lado positivo, tudo isso despertou uma reação da população, inclusive a nível mundial. Destampou uma panela e abriu o assunto de forma intensa. Do ponto de vista pessoal, está superado. Não quero mais acusar o governo. Foi uma impropriedade muito grande do presidente Bolsonaro ter falado daquele jeito. Dizer que um cientista mente sobre seus dados é uma ofensa. O ministro Salles poderia ter se retratado em nome do governo sobre o Inpe (na apresentação dos dados de desmatamento, na segunda-feira). Mas o fato de terem mostrado os dados sem coibir me deixou satisfeito. E não há como esconder que a atenção mundial está sobre a Amazônia.

O Globo, 20/11/2019, sociedade, p. 30

https://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/meio-ambiente/fala-de-salles…

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