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Expedição da saúde faz mutirão de cirurgias em aldeia da Amazônia

FSP, Cotidiano, p. B4
15 de Fev de 2017

Expedição da saúde faz mutirão de cirurgias em aldeia da Amazônia

TOMÁS CHIAVERINI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA (AM)

A enfermeira higieniza a pele do paciente enquanto o cirurgião examina as tesouras e bisturis na bandeja ao lado. Todos vestem azul-claro e há um clima descontraído, embalado pelo Leonard Cohen que emana do iPod. A cena parece transcorrer num centro cirúrgico comum, mas nada está mais longe da verdade.
O paciente, prestes a sofrer uma operação de hérnia, é um pajé baniwa que, no dia seguinte, faria questão de benzer o cirurgião. Apenas duas camadas da lona de uma barraca separam o interior, esterilizado e climatizado, dos 40oC que o sol amazônico impõe lá fora.
O centro cirúrgico móvel foi armado na aldeia Assunção do Içana, a cinco horas de barco da cidade mais próxima, São Gabriel da Cachoeira (AM). Foi levado até ali pelos Expedicionários da Saúde -ONG que, entre 18 e 26 de novembro, realizou 312 cirurgias, 1.881 consultas médicas e odontológicas e 3.450 exames e procedimentos
A ação ocorreu na região conhecida como Cabeça do Cachorro, onde um único cirurgião é responsável por uma área maior que a do Estado de São Paulo e só atende casos de emergência.
Segundo a secretária de Saúde de São Gabriel da Cachoeira, Yessica Guerrero, em abril a prefeitura fez concurso para contratar dez médicos especialistas, mas, com poucos candidatos, só foi possível preencher uma vaga.
"Aqui não tem infraestrutura, então os médicos não querem vir", diz o ministro da Saúde, Ricardo Barros, que conversou com a Folha durante visita ao acampamento.
Segundo ele, diante das queixas, o governo criou um grupo de trabalho para discutir a saúde indígena e até maio haverá quatro reuniões para definir propostas.
Desde 2013, o programa Mais Médicos manteve em São Gabriel da Cachoeira sete cubanos especialistas em saúde da família. O ministro diz que ele continuará na região.
No geral vista como avanço, a medida recebe críticas de pacientes locais, principalmente pela dificuldade de comunicação. Muitos indígenas não dominam o português -menos ainda o espanhol. Além disso, os profissionais do programa prestam apenas atendimento clínico.
Assim, diante das longas distâncias para chegar a cidades maiores e da dificuldade para marcar consultas e exames, a alternativa para os indígenas no caso de cirurgias tem sido o voluntariado.
Ao longo de 13 anos, a ONG Expedicionários da Saúde realizou mais de 6.000 operações em diversos locais da Amazônia. Em cada jornada o planejamento leva meses, com prospecção de locais e triagem de pacientes, em parceria com a Secretaria Especial de Saúde Indígena, ligada ao Ministério da Saúde.
A expedição de novembro teve 82 funcionários da secretaria, 64 voluntários da ONG e 300 homens do Exército, que ajudaram no transporte de carga e pacientes.
HOSPITAL MÓVEL
O complexo hospitalar móvel funciona em várias barracas. Há tendas para exames e central de esterilização. Indígenas chegam e partem em barcos de todos os tamanhos.
Os que aguardam operações e os que se recuperam são acomodados em redes e monitorados regularmente.
As cirurgias começam ao raiar do dia e avançam noite adentro. No acampamento dos médicos, comida simples, banho frio, pernoite em barracas ou redes. Mesmo assim, há filas de voluntários.
"Criamos uma experiência antropológica de solidariedade e compartilhamento", diz o cirurgião ortopedista Ricardo Affonso Ferreira, co-fundador da ONG. "Imagino que todo médico, no momento em que escolheu a profissão, queria fazer alguma coisa assim."
As cirurgias mais comuns são catarata e hérnia, duas enfermidades que, segundo o cirurgião do aparelho digestivo Fábio Atui, causam grande transtorno em populações rurais. "Um indígena que sofre de hérnia não tem como trabalhar na roça, não tem como alimentar a família", diz.
Atui está com os expedicionários desde 2006 e coleciona histórias. A última foi o reencontro com o menino Bertoni, às margens do rio Içana. O primeiro contato dos dois havia sido dez anos antes, no parto do garoto.
A índia baniwa Lucinda da Silva, grávida de nove meses, procurou os expedicionários que trabalhavam numa aldeia próxima. Estava com a bolsa rompida e, se não fosse atendida, perderia o bebê e provavelmente morreria.
Como a ginecologista da ONG estava em outra comunidade, Atui teve de fazer a cesárea. O menino, contudo, ainda não estava a salvo.
No dia seguinte à cirurgia, a mãe acordou com uma cobra deslizando na rede, em direção à criança. Não teve dúvida: deu um salto com a barriga costurada e aplicou um safanão na serpente.
* O repórter teve passagens aéreas e diárias custeadas pela Pfizer, empresa apoiadora dos Expedicionários da Saúde

FSP, 15/02/2017, Cotidiano, p. B4

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1858869-expedicao-da-sau…

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