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Exemplo vergonhoso

CB, Brasil, p.12
07 de Jun de 2005

Exemplo vergonhoso
Uma das maiores produtoras de alumínio do mundo, a Alcan está no banco dos réus perante a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, por causa da construção da barragem de Candonga, em Minas Gerais
Erika Klingl
Da Equipe do Correio
O Brasil está mais uma vez na lista de países que convivem com o desrespeito aos direitos humanos. Desta vez, o que está em jogo é o tratamento dispensado por uma das maiores produtoras de alumínio do mundo à população atingida pela construção da usina hidrelétrica Candonga, em Minas Gerais. Um relatório, narrando a retirada dos moradores, o reassentamento e o apoio financeiro a pequenos produtores rurais, garimpeiros e pescadores, está na Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). A denúncia, feita por um grupo de 70 organizações não-governamentais (ONGs), coloca no banco dos réus a empresa canadense Alcan. O processo servirá para um ambicioso projeto da ONU: criar parâmetros para a atuação das multinacionais em países de Terceiro Mundo e nações em desenvolvimento.
Durante a missão para a elaboração do relatório, a equipe da ONG Justiça Global entrevistou autoridades locais, como promotores, juízes, policiais e outros servidores públicos do estado de Minas Gerais, em especial do Conselho de Política Ambiental (COPAM) e da Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM). Também foram entrevistados integrantes de várias famílias das cidades atingidas: São Sebastião do Soberbo e Santana do Deserto.
O texto apresentado à ONU acusa a empresa canadense de sérias omissões e problemas como o uso de ameaças e até de violência nas negociações com as famílias para a liberação da área inundada. Além disso, as ONGs denunciam a existência de uma grande discrepância entre o número de garimpeiros e meeiros reconhecidos e as sérias falhas na execução de medidas para desenvolvimento e reativação econômica das famílias deslocadas compulsoriamente das áreas urbana e rural de São Sebastião do Soberbo. É notório o descumprimento de acordos no que se refere a indenizações e transferências de títulos de propriedade das casas de Nova Soberbo”, cita o documento, referindo-se à cidade construída para receber a população desalojada com a construção da barragem.
A população
São Sebastião do Soberbo, em 2000, tinha 5.380 habitantes, que viviam, principalmente, da agricultura, mineração e criação de pequenos animais. A área urbana da antiga cidade foi completamente inundada em julho de 2004, quando o reservatório começou a encher, deixando para trás séculos de história. Meu avô, descendente direto dos escravos, chegou aqui pela primeira vez, há mais de 200 anos”, declarou Maria das Graças Reis, 56 anos, em 5 de junho de 2004, em Nova Soberbo, à Justiça Global.
O relatório cita, entre outras coisas, o clima tenso com que foram realizadas as negociações. Ameaças, mentiras e desinformação fizeram parte da vida diária dos residentes. Muitas famílias relataram que tiveram de assinar os acordos porque ouviram dizer que suas propriedades tinham se tornado um bem de interesse público e que se não assinassem naquele momento, eles teriam que recorrer à justiça para discutir seus direitos e que receberiam muito menos ou coisa alguma”, relata o documento.
Além disso, a cidade de Nova Soberbo, construída com 120 casas para receber os atingidos pela barragem de Candonga, não era adequada à forma de vida à qual essas pessoas estavam acostumadas. Todas as casas foram construídas de acordo com padrões muito semelhantes. São todas cercadas, separadas por altos muros, com as frentes cobertas com gramas. O estilo é muito incomum para os moradores”, afirma o relatório. Para piorar, os moradores reclamam de uma pequena área para quintal, como solo infértil e em declive. A Justiça Global presenciou moradores obrigados a criar animais dentro de casa.
O relatório aponta outro problema. De acordo com o relatório, a água que antes vinha do rio Doce, agora é amarelada e com altas concentrações de ferro e manganês considerados inadequados para consumo humano. Para tentar minimizar o problema, altas quantidades de cloro foram adicionadas”, cita o documento. Os moradores também se surpreenderam com o impressionante aumento do valor das contas de energia elétrica. As novas contas que eles recebem desde que se mudaram representam um valor três a quatro vezes maior que o das antigas. Segundo informações dos moradores, enquanto na velha Soberbo eles estavam cadastrados como zona rural, em Nova Soberbo foram cadastrados como zona urbana. Muitos estão sem condições de pagar as despesas da nova casa.

As acusações que chegaram à ONU
Pressão psicológica
Algumas famílias relataram que tiveram de assinar os acordos após serem informadas que suas propriedades tinham se tornado um bem de interesse público e que, se não assinassem naquele momento, teriam que recorrer à Justiça para discutir seus direitos e que receberiam muito menos ou coisa alguma
Discrepâncias
Há diferenças gritantes entre a quantidade de famílias atingidas e o número de indenizados – principalmente na contagem dos garimpeiros e dos meeiros, aqueles que não são proprietários das terras mas trabalham nela em troca de metade do que foi produzido
Acordos descumpridos
Muitos moradores deixaram suas casas, submetendo-se a uma série de cláusulas no acordo, esperando receber as chaves das novas casas e os títulos de propriedade. As chaves foram dadas, mas os títulos de propriedade nunca chegaram
Negociações individuais
Os moradores relataram ter recebido papéis cheios de números e cálculos. Sem qualquer tipo de assessoria técnica na avaliação das propriedades, não podiam negociar.
Despejo violento
No dia 3 de maio de 2004, as famílias que se recusaram a deixar suas casas foram retiradas em uma operação policial com a participação de mais de 190 agentes das polícias Civil, Militar, Federal, além de seguranças privados
O polêmico novo vilarejo
A empresa construiu as novas casas sem consultar os envolvidos, o que fez com que o lugar não se adequasse às demandas de sobrevivência da população, como terreno fértil para plantar e local para a criação de animais
Água contaminada
Houve deterioração da qualidade das águas do rio Doce, incluindo PH (índice de acidez) mais alto, alto teor de ferro e manganês e o aumento das concentrações de plantas e parasitas responsáveis por problemas de saúde na população local.

Empresas negam ter pressionado comunidades locais
As empresas Novelis, subsidiária da Alcan, e Vale do Rio Doce entregaram um relatório à Secretaria Especial de Direitos Humanos, defendendo-se das denúncias apresentadas à ONU. O documento afirma, por exemplo, que as negociações com os moradores de São Sebastião do Soberbo e dos distritos que se localizam nas proximidades de Candonga foram amplas .
De fevereiro de 2000 a maio de 2001, aconteceram mais de 80 reuniões com a comunidade para discutir os tipos de casa, a igreja, a praça e a estrutura da nova cidade a ser construída. Muitas dessas discussões foram objeto de registros encaminhados ao órgão ambiental”, cita o documento apresentado pelas empresas.
Além disso, o relatório entregue há duas semanas garante que os critérios gerais que embasaram o processo de negociação junto aos produtores locais, proprietários ou não afetados, contemplaram a participação social, o ressarcimento integral de patrimônio, a existência de áreas viáveis nos municípios de Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado, e acompanhamento e apoio social e profissional das famílias.
A negociação de compra das áreas e casas pelo consórcio foi feita caso a caso, opção feita pelos próprios moradores durante as negociações que definiam o verdadeiro impacto social: a mudança da vila para outro local e a alteração das condições de vida das pessoas”, diz a defesa.
As empresas negam que tenha havido pressão e violência com as famílias. Mas admite que a polícia atuou na remoção de 20 famílias que se recusavam sair mesmo com a imissão de posse. (EK)

Métodos de intimidação
Além da usina hidrelétrica de Candonga, em Minas Gerais, que gera energia exclusivamente para as indústrias Alcan e para a Vale do Rio Doce, estão na ONU denúncias da Nigéria, das Filipinas e da Índia. Cada denúncia trata de uma multinacional específica, mostrando que o desrespeito de grandes empresas internacionais aos direitos humanos pode não ser uma exceção.
No mês passado, o padre Antônio Claret e o líder comunitário Joaquim Bernardo, representando o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Candonga, participaram de reunião da comissão de Direitos Humanos da ONU. É necessário que as normas da ONU sejam instrumento de responsabilização das empresas e governos nas esferas dos direitos humanos”, disse o padre.
Joaquim denunciou a perseguição e a ameaça a diversos defensores de direitos humanos no Brasil, entre eles, vários do MAB. Só na região do Alto Rio Doce, em Minas, mais de 40 lideranças foram processadas pelas empresas construtoras de barragens como forma de intimidação”, conta. Desde o dia 17 de fevereiro deste ano, Joaquim tem recebido telefonemas anônimos com ameaças de morte. O caso também foi relatado às Nações Unidas.
Campanha
Se defender na ONU é apenas um dos problemas da Alcan, que foi dividida em outras empresas. A Novelis ficou com a difícil tarefa de se defender nesse caso. De acordo com Sandra Carvalho, da Justiça Global, o departamento de Direitos Humanos do curso de Direito da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, está começando uma campanha no Canadá contra a empresa por conta da construção de Candonga.
A chefia de departamento de uma das mais renomadas instituições de ensino superior do mundo chegou a enviar uma carta com pedido de informações ao ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos no Brasil, Nilmário Miranda. A Novelis, em parceira com a Vale do Rio Doce, preparou a defesa, mas Nilmário ainda não enviou o texto para Boston. (EK)

CB, 07/06/2005, p. 12

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