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EXCELENTÍSSIMO SENHOR

Jean Pierre Leroy
Autor: Jean Pierre Leroy
29 de Set de 2003

EXCELENTÍSSIMO SENHOR

MINISTRO DA JUSTIÇA

MÁRCIO THOMAZ BASTOZ

O Relator Nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente, Jean-Pierre Leroy, nomeado pela Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, com apoio do Programa de Voluntários das Nações Unidas (UNV), da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), vem, respeitosamente, manifestar sua preocupação e solicitar providências acerca dos fatos que vêm atingindo o Povo Indígena Cinta Larga, nos Estados de Rondônia e Mato Grosso, conforme o exposto abaixo e, no documento anexo, em maiores detalhes.

Milhares de garimpeiros ameaçam re-invadir as Terras Indígenas Cinta Larga, Roosevelt e Parque Aripuanã. Desde 23/09/03, encontram-se concentrados no Município de Espigão D´Oeste e entorno, divididos em vários subgrupos armados de 200 a 500 homens, espalhados em vários pontos das estradas de acesso. Neste momento, existem garimpeiros acampados na ex-base da Polícia Federal, na estrada 108, e que está servindo de apoio à re-invasão.

Os garimpeiros estão usando a mídia local e pela TV ameaçam as lideranças. Já foi divulgado que eles teriam tratores de esteira para fazer valetas nas estradas de acesso e assim parar os carros dos índios para seqüestrarem e prenderem lideranças até que os Cinta Larga "liberem" o garimpo. As ameaças de morte contra líderes indígenas e funcionários da FUNAI, o assédio financeiro, adiantamentos e promessas de intermediários de mineradoras de investimentos em atividades assistenciais de obrigação do Estado são alguns fatos que, lamentavelmente, estão se tornando comuns na vida dos Cinta Larga.

Os índios estão resistindo e estão dispostos a lutarem pela garantia de suas terras. A população Cinta Larga é de 1300 habitantes, em 34 aldeias. Ocupam uma área de 2,7 milhões de hectares, que neste momento está sendo defendida unicamente pela resistência dos índios e guerreiros Cinta Larga e alguns poucos funcionários da FUNAI que estariam fazendo a vigilância em barreiras precárias, contra toda a pressão do entorno. Temem a violência iminente e o conflito armado que pode acontecer. "Estamos preocupados, na luta; não abrimos mão de entrar dentro", informou a esta Relatoria o Vice-Presidente da Associação Pamaré, Japão Cinta Larga, no último dia 27/09/03.

Os garimpeiros haviam sido retirados em janeiro de 2003, com ação coordenada pela Equipe Tarefa da FUNAI, com participação dos índios nas operações e barreiras de fiscalização junto à FUNAI, Polícia Federal e Polícia Florestal de Rondônia. Depois de oito meses aguardando recursos e providências do Plano Emergencial Pró Cinta Larga, que ainda não foi implementado, a situação volta a se agravar.

O Governador de Rondônia atendeu aos interesses dos mineradores e garimpeiros e está defendendo publicamente a mineração e o garimpo em Terras Indígenas. Em 03/09/03, ordenou a retirada de policiais florestais que apoiavam a vigilância dos limites das áreas.

Estranhamente, também a Polícia Federal, em divergência com a FUNAI, anunciou em 05/09/03 que estaria se "desmobilizando" e retirando as equipes, as barreiras, posto e a operação da região.

Considerar que não há obstáculos à atividade é um claro desrespeito à Constituição Federal e a direitos fundamentais desse povo indígena. Essa exploração não conta com autorização do Congresso Nacional, as comunidades atingidas não foram ouvidas e muito menos têm assegurada participação nos resultados da lavra (art. 231, §3o). É evidente que a mineração ilegal e o garimpo clandestino comprometem a organização social, os costumes e as tradições desse povo indígena (art. 231, caput).

Além disso, as atuais ameaças à vida e à liberdade, à integridade física e segurança pessoal e do grupo são violações que colocam em risco direitos humanos econômicos, sociais e culturais dos Cinta Larga. Além da Constituição Federal, vários Tratados Internacionais ratificados pelo Estado Brasileiro estão sendo violados, como, por exemplo, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção Americana de Direitos Humanos e seu "Protocolo de San Salvador", em matéria de DESC.

Nesse sentido, solicitamos que Vossa Excelência intervenha para que o Governo Federal adote as medidas legais competentes e adequadas para evitar o agravamento da situação e a violação à dignidade do Povo Cinta Larga. Dentre elas, recomendamos:

- a mobilização imediata da Polícia Federal, para que esta volte a ocupar as bases e os postos de bloqueio e fiscalização, mantendo os garimpeiros fora da área do Povo Cinta Larga;

- aplicação e liberação pelo Ministério da Justiça da totalidade dos recursos aprovados para custeio e investimentos previstos no Plano Emergencial Cinta Larga;

- requerimento do Ministério da Justiça aos governos dos estados de Mato Grosso e Rondônia solicitando esclarecimentos em relação ao fomento à exploração ilegal de recursos naturais e invasões em Terras Indígenas;

- a adoção das recomendações contidas no Anexo a este ofício, em que o contexto histórico e político é narrado em maiores detalhes.

Certos do compromisso desse Governo Federal com os direitos humanos, com a legalidade e a ética no exercício do Poder Público, aguardamos a realização das providências urgentes e necessárias à garantia da dignidade humana, manifestando nossas mais elevadas considerações de estima e apreço.

Atenciosamente,

JEAN-PIERRE LEROY

RELATOR NACIONAL PARA O DIREITO HUMANO AO MEIO AMBIENTE

C/C:

Presidência da República

Casa Civil

Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica

Controladoria Geral da União

Secretaria Especial de Direitos Humanos
Secretaria Especial para Políticas de Promoção da Igualdade Racial

Ministério de Minas e Energia

Ministério do Meio Ambiente

Ministério da Integração Nacional

Departamento de Polícia Federal

Fundação Nacional do Índio - FUNAI

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA
Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM
Câmara dos Deputados

Senado Federal

Ministério Público Federal - 6ª Câmara de Coordenação e Revisão

Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão

A N E X O

Contextualização e Recomendações

Os 1.300 sobreviventes Cinta Larga continuam resistindo e enfrentado imensas dificuldades para garantir e resguardar a posse de suas Terras Indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e assegurar suas tradições e o respeito à cultura de um povo ameaçado há muitas décadas e reduzidos demograficamente, em menos 30 anos, a menos de 20% de sua população original.

Hoje, a maior pressão que sofrem tem origem na exploração ilegal de recursos naturais, madeiras e minérios em suas terras, em especial de diamantes, através de investidas de intermediários de empresas de mineração e representantes do governo de Rondônia.

Desde janeiro de 2003, a atividade predatória de garimpagem e saque de recursos naturais havia sido contida com a ação indigenista coordenada pela Equipe Tarefa da FUNAI através da retirada de milhares de garimpeiros com o apoio e a participação efetiva dos índios Cinta Larga nas operações e barreiras de fiscalização junto a FUNAI, Polícia Florestal de RO, Policia Federal, bem como a elaboração e apresentação de um nova versão do Plano Emergencial Pró Cinta Larga, que desde 2002 e novamente em 2003 apesar de aprovado pelo Ministério da Justiça não foi implementado.

O fato é que os índios Cinta Larga conseguiram permanecer oito meses (entre janeiro/2003 e agosto/2003) no controle absoluto de suas terras, sem nenhum tipo de exploração mineral clandestina, aguardando firmemente as ações e recursos previstos e aprovados pelo Ministério da Justiça no escopo do Plano Emergencial Pró Cinta Larga e a aprovação de medidas técnicas legais que assegurem a exploração piloto e sustentável pelos próprios índios mediante a elaboração de um programa de recuperação de áreas degradadas.

Ocorre que, com a não liberação de recursos aprovados do Plano Pró Cinta Larga e não implementação das ações emergenciais, as pressões sobre a população Cinta Larga, visando à exploração ilegal de recursos naturais em território indígena, se intensificaram através das recentes ameaças de morte contra lideranças indígenas, funcionários da Funai, assédio financeiro, adiantamentos e promessas de intermediários de mineradoras de investimentos em atividades assistenciais de obrigação do estado( educação, saúde, produção alimentar, etc). Na falta de implementação do Plano Pró Cinta Larga, de providências efetivas e apoio técnico do governo, os índios, constrangidos, ficam vulneráveis a aceitarem acordos lesivos e novamente se submeterem aos interesses de empresários da mineração e contrabandistas. Isso faz com que recomece, com grande força, a pressão do entorno: de atravessadores, compradores e traficantes que atuam expressivamente no mercado ilegal de diamantes.

Causa-nos espanto e preocupação a notícia publicada na imprensa de que o Governador de Rondônia estaria defendendo publicamente e estimulando a mineração e garimpagem em Terras Indígenas, tendo ordenado desde 03/09/03 a retirada de policiais florestais que apoiavam a vigilância dos limites das áreas. Considerar que não há obstáculos à atividade é um claro desrespeito à Constituição Federal (art. 231), uma vez que essa exploração não conta com autorização do Congresso Nacional, as comunidades atingidas não foram ouvidas, conforme o mandamento constitucional, e muito menos têm assegurada participação nos resultados da lavra.

Reduzir a vigilância neste momento, vem a significar a conivência com o assalto e o estímulo ao saque indiscriminado de Terras Indígenas Cinta Larga.

A decisão do Governador de Rondônia atende aos interesses dos mineradores e garimpeiros, agravando a situação de risco dos Cinta Larga, ao facilitar a exploração clandestina.

É evidente que a mineração ilegal e garimpagem clandestina comprometem a organização social, os costumes e as tradições desse povo indígena, e com isso os direitos fundamentais dessas comunidades voltam a ser ameaçados.

Deve-se ressaltar que os diamantes de origem ilegal são e, continuam sendo, comercializados de forma ilícita, não gerando impostos, nem prevendo a recuperação de áreas ambientais degradadas e sequer garantem a aplicação eficiente de recursos em Programas de Etno Desenvolvimento que beneficie a população de 1300 habitantes das 34 aldeias Cinta Larga e que reverta os críticos indicadores de desenvolvimento e qualidade de vida.

Até o presente, a exploração ilegal de minérios em TI's Cinta Larga e entorno vem contribuindo efetivamente com a corrupção, a lavagem de dinheiro, tráfico de armas e drogas naquela região de fronteira. Além disso, o fato de o Brasil ainda não ter se habilitado ao Certificado de Kimberley impede a exportação oficial de diamantes, exatamente por não haver segurança de sua origem legal.

Estamos diante de sofisticado esquema de exploração de minérios em prejuízo direto de minorias e grupos indígenas com estratégias e interações semelhantes ao que ocorre em paises africanos, objeto principal do processo de Certificação Kimberley para controle de origem, rastreio e exploração sustentável de diamantes.

Ao se omitir de intervir neste caso Cinta Larga, o Estado Brasileiro facilita a instalação de esquema criminoso e condenado internacionalmente que favorece preferencialmente o crime organizado, o trafico e a lavagem de dinheiro na região noroeste do Brasil tão próximo à fronteira com a Bolívia .

Estranhamente, a Polícia Federal, em divergência com a FUNAI, anunciou em 05/09/03 que estaria "desmobilizando" e retirando as equipes, as barreiras, posto e a operação da região.

Em 23/09/03, concentrados no município de Espigão D'Oeste e entorno milhares de garimpeiros ameaçam re-invadir as TI's Cinta Larga, Roosevelt e Parque Aripuanã.

Se confirmado, estaremos diante da anunciada re-invasão garimpeira mediante a conivência do Estado Brasileiro, através da retirada das equipes e barreiras policiais de fiscalização das 04 TI's Cinta Larga.

Neste momento os 2,7 milhões de hectares de superfície das TI's Cinta Larga se valem da resistência dos índios e guerreiros Cinta Larga e alguns poucos funcionários da FUNAI que estariam fazendo a vigilância em barreiras precárias.

O risco de conflito e violências é extremamente elevado se o Ministério da Justiça não agilizar providências do Plano Emergencial e garantir a integridade e segurança dos índios e funcionários da FUNAI no local com a adoção das ações de suporte e investimentos previstos no Plano Emergencial combinado com ações de inteligência e investigações federais de combate ao crime organizado.

Nesse sentido, requeremos que sejam adotadas as seguintes medidas legais, adequadas para evitar o agravamento da situação e a violação à dignidade do Povo Cinta Larga:

1. Aplicação e liberação pelo Ministério da Justiça da totalidade dos recursos aprovados para custeio e investimentos previstos no Plano Emergencial Cinta Larga;

2. Implementação das ações de proteção e apoio a população Cinta Larga , segurança alimentar, incremento a produção de alimentos e diagnóstico e perícias técnicas dos danos ambientais , sociais e materiais causados pela exploração ilegal de recursos naturais que subsidiem os planos de aplicação e o Programa de Etnodesenvolvimento Cinta Larga;

3. Articulação interinstitucional de políticas publicas (Funasa, MEC, Ibama, Ministério do Meio Ambiente, Ministério das Minas e Energia) sob a coordenação do Ministério da Justiça para a priorização de ações de assistência à saúde, educação, assistência técnica, inventário e manejo de recursos naturais para capacitar os índios e suas Associações em atividades legais e ambientalmente sustentáveis;

4. Articulação entre os serviços de inteligência da Policia Federal, da ABIN, do grupo de Combate ao Crime Organizado, do Ministério Publico Federal e equipes de fiscalização da Funai no sentido de assegurar a integridade de vida aos representantes Cinta Larga e a apuração dos crimes contra a integridade dos índios, suas terras e patrimônio ambiental;

5. Requerimento do Ministério da Justiça requisitando esclarecimentos dos governos dos estados de Mato Grosso e Rondônia em relação ao fomento à exploração ilegal de recursos naturais e invasões em TI's.

6. Cancelamento administrativo pelo DNPM dos 479 requerimentos de pesquisa, lavra e exploração mineral incidentes total e parcialmente nos limites das 04 TI's Cinta Larga, assegurando o domínio do subsolo da União e não permitir a especulação cartorial do subsolo das Terras Indígenas e a exploração dos Cinta Larga à pressão de grupos econômicos predatórios .

7. Determinação por parte do Ministério da Justiça para a Policia Federal apurar, localizar, identificar, avaliar e apresentar inventário pericial de todos os lotes de mais de 4.000 diamantes apreendidos desde 1999 pelas Policias Federal, Civil e Militar através da relação e análise comparativa de inquéritos policiais, totalização dos autos de infração/apreensão e flagrantes lavrados na região visando a quantificação e qualificação do total apreendido para a certificação de origem do Processo Kimberley , bem como a devida investigação de desvios e irregularidades porventura ocorridas.

8. Termo de ajuste, leilão e doação pelo DNPM dos valores referentes a total de pedras de diamantes e outros apreendidas em investigações policias e devidamente certificadas no processo Kimberley em favor do Fundo Cinta Larga e Programa de EtnoDesenvolvimento Cinta Larga que deverá desenvolver ações integradas, de curto, médio e longo prazo através de planos de aplicação em atividades de desenvolvimento econômico, cultural, social e ambiental em favor dos Cinta Larga.

9. Termo de ajuste, leilão e doação pelo Ibama dos valores referentes aos mais de 50.000 m3 de madeiras apreendidas em Juina, Vilhena, Aripuanã, Espigão D'Oeste, Pimenta Bueno, Cacoal e outros com origem em TI's Cinta Larga e devidamente certificadas no processo CITES em favor do Fundo Cinta Larga e programa de EtnoDesenvolvimento. Cinta Larga.

10. Colaboração do Ministério da Justiça e demais órgãos públicos para a apresentação e fornecimento de todos os dados, providências e informações acima requeridas pelo Relator Nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente, Jean-Pierre Leroy, para subsidiar o monitoramento dos direitos humanos do Povo Cinta Larga, no contexto do Projeto Relatores Nacionais em Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (DhESC Brasil), apoiado pelo Programa de Voluntários das Nações Unidas (UNV), pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) e pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC); e apreciação da denúncia de violação dos direitos humanos e risco de genocídio contra o povo indígena Cinta Larga apresentada em março de 2003 no Comitê Internacional de Direitos Humanos e Indígenas/OEA.

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