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Eu tenho aulas em guarani

OESP, Geral, p.A1 e A16
14 de Dez de 2003

Eu tenho aulas em guarani
Na reserva indígena de Caarapó, 816 alunos estudam em sua língua nas salas de aula

José Maria Mayrink
Enviado especial

CAARAPÓ - Guaranis e caiovás da Reserva Indígena Tey Cuê, em Caarapó, na região de Dourados, a 280 quilômetros de Campo Grande, fazem do artesanato, da agricultura, da dança, da música e até do futebol extensão das salas de aula, onde os alunos aprendem a ler e a escrever em guarani, estudando com professores índios da aldeia. São 80 crianças e adolescentes do Projeto Poty Reñoi (flores desabrochando), lançado em 2001 pelo Programa Kaiowá/Guarani, da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), em parceria com a prefeitura de Caarapó e com o governo de Mato Grosso do Sul, para combater a evasão escolar entre os 816 alunos da escola municipal da reserva.
O projeto estuda a história, pesquisa a cultura e resgata as tradições dos caiovás e guaranis, cuja população soma cerca de 30 mil índios nessa região de Mato Grosso do Sul, na fronteira do Paraguai, que eles cruzam de mudança definitiva ou para visitar os parentes. Nas terras de Caarapó vivem mais de 600 famílias das duas etnias, com quase 4 mil homens, mulheres e crianças numa área de 3.594 hectares. Moram em precárias choupanas de madeira e sapé, cercados de pequenas roças de milho, mandioca, feijão e arroz - a base de sua dieta. Caça e pesca, só para diversão, porque a mata acabou e os peixes ainda são poucos nos quatro açudes alimentados por oito nascentes.
"A evasão escolar era um desafio, pois os meninos abandonavam o estudo para trabalhar", disse o caiová Eliel Benites, na manhã de quarta-feira, ao lado do guarani Otoniel Ricardo. Professores da escola regular da reserva, eles são dois dos coordenadores do Projeto Poty Reñoi. "Como tem muita pobreza na aldeia, os meninos de 12 anos vão ganhar dinheiro nas usinas, onde se identificam com documentos de rapazes mais velhos", informaram os coordenadores. Cerca de 400 índios deixam a aldeia, na safra, para cortar cana nas fazendas. Ganham um bom dinheiro, mas voltam com o vício da bebida e das drogas. Outra causa de evasão escolar era a incidência de gravidez precoce, porque as meninas-mães interrompiam o curso para cuidar dos bebês.
A situação melhorou dois anos atrás, quando atividades extracurriculares passaram a ocupar o tempo dos alunos. Os meninos e meninas do Poty Reñoi recebem do Idaterra, instituto do governo estadual responsável pelo desenvolvimento agrário, uma bolsa de R$ 50,00 para participar do projeto.
Além de ajudar a renda da família, eles descobriram no aprendizado prático um prazer que a escola não oferecia antes. De segunda a sexta-feira, os alunos revezam cursos paralelos de informática, artesanato, dança e educação física com os horários das aulas. O interesse aumentou ainda mais a partir do momento em que as crianças começaram a estudar em guarani.
Língua - "Agora, quase todas já conseguem ler e escrever depois de um ano de estudo", disse a professora Anari Felipe Nantes, freira e técnica da Secretaria Municipal da Educação, que há seis anos trabalha na aldeia. Antes da adoção do guarani para a alfabetização, era grande o índice de repetência. Depois de alfabetizados, os índios estudam português a partir do segundo ano, mas continuam tendo aulas em guarani até o fim do curso. Manuais da escola regular e do projeto são em guarani. Até os cadernos de informática usam a língua indígena para explicar o que significam, por exemplo, expressões inglesas como enter e word.
A professora Teresinha Aparecida da Silva Batista, ex-secretária de Educação de Caarapó, atribui à filosofia do Poty Reñoi a conquista do terceiro lugar no Prêmio Itaú-Unicef - Educação & Participação de 2003. "Além de se enquadrar bem no espírito do tema deste ano, Muitos lugares para aprender, o projeto tem sido um sucesso para os índios e um exemplo para a rede municipal", disse a professora. Mas não foi fácil. "No começo, pais tiraram os filhos das salas de professores índios." O caiová Sílvio Paulo, chefe da Fundação Nacional do Índio (Funai) na reserva, suou para convencer os mais velhos a aceitar a novidade. Hoje, todos têm orgulho de sua cultura e dos 30 professores índios.
Melhorias - A coordenação do projeto vai discutir com a comunidade a utilização dos R$ 50 mil do prêmio. "Gostaríamos de destinar uns R$ 10 mil para a construção de um espaço para nossas atividade", anuncia Otoniel Ricardo, insistindo numa idéia que parece ser consenso na aldeia. Até o dia 16, os coordenadores apresentarão seu planejamento ao Itaú-Unicef. "O que é bom para os índios, a comunidade aprova", adianta o capitão da aldeia, João Goulart, um caiová de 42 anos que recebeu esse nome em homenagem ao ex-presidente.
Caiovás e guaranis se dão muito bem em Caarapó. Embora de etnias diferentes, falam a mesma língua e se cruzam pelo casamento. "Sou filho de mãe guarani e de pai caiová", disse Eliel Benites. Como muitos outros índios da reserva, ele tem um sobrenome herdado dos parentes paraguaios. Aliás, português e espanhol se confundem no vocabulário da aldeia. "Já acertei uma paloma (pomba)", disse o pequeno Ademar Almeida, de 12 anos, traduzindo uma informação sobre arco e flecha.
Na sala das professoras Braulina e Joselena, duas irmãs caiovás de sobrenome Isnard, os alunos aprendiam num livro em guarani como se faz um arco. Em cima da lousa verde, um cartaz mostra a matéria-prima: "Mato antigamente", diz a legenda, identificando um conjunto de árvores frondosas que, ali na reserva, só existem mesmo no papel. Um dos meninos que desenham arco e flecha, Assuamir Flores, veste uma camisa do Grêmio, mas deixa claro que é corintiano. Braulina tem dificuldade em traduzir para o português o que está ensinando em sua língua. "Aprendi a escrever com as crianças", revelou a professora, mostrando que o ensino é mesmo interativo, como falou a técnica Anari.
A mocinha que estuda computador com um bebê de 3 meses no colo é Francileide Paim, de 16 anos, um dos casos de gravidez precoce. Em vez de abandonar as aulas, como ocorria antes do projeto, ela carregou Cheimili para a escola, onde todos a ajudam a cuidar do nenê. "Nós somos de um pensamento diferente.
Não ensinamos nosso filho a competir. Ensinamos a repartir e a lutar", diz um texto sobre A Economia da Partilha, que ela copia na tela.
Realidade - Tudo o que os índios aprendem no projeto tem a ver com a realidade da aldeia. "Os meninos pesquisam o que havia na mata, coletam sementes e plantam árvores e legumes para recuperar a agricultura de subsistência de seus antepassados", informa o agrônomo Guaracy Boschilia Junior, filho do prefeito e secretário municipal de Desenvolvimento Econômico.
A prefeitura de Caarapó participa do projeto com professores e material didático na educação e com pessoal e assistência técnica na área agroecológica. Com o reflorestamento de 270 hectares, alguns animais, como antas, cotias e queixadas, começaram a voltar.
Para o coordenador do Programa Kaiowá/Guarani, Antônio Brand, um dos méritos do projeto premiado pelo Itaú-Unicef é o resgate da história e da cultura da aldeia. "O Poty Reñoi pesquisa os costumes e a tradição dos índios mais velhos, com assessoria do pessoal de nossa universidade, que oferece subsídios sobre a organização atual da sociedade indígena", informa Brand, um professor de História da UCDB que estuda os caiovás-guaranis há 25 anos.
Como os índios mais velhos são tímidos e analfabetos, haja paciência para esse mergulho no passado.
"Aprendi a confeccionar cocares, cintos e ponchitos com a caiová Leonilda", diz o instrutor Rogério Vilhalva Mota, de 24 anos, folheando as páginas da monografia que escreveu para a conclusão do curso de magistério. Sem menosprezar os trançados e desenhos do passado para a fabricação de adornos e instrumentos musicais, ele aprendeu novas técnicas no Centro de Desenvolvimento Artesanal, da prefeitura, que fabrica tapetes de lã, coloridos com tinta de urucum, moreira, jatobá e outras árvores nativas.

OESP, 14/12/2003, p. A1 e A16

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