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Eu odeio a Amazônia. E você?

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Autor: ANGELO, Claudio
19 de Fev de 2021

Eu odeio a Amazônia. E você?

Claudio Angelo
19 de Fevereiro de 2021 às 15:44

Pesquisa Ibope publicada em fevereiro pelo Instituto Tecnologia e Sociedade mostrou que 84% dos brasileiros afirmam que as queimadas na Amazônia prejudicam a imagem do país e 74% acham que elas são desnecessárias para a economia. Aliás, 77% dos entrevistados dizem querer proteger o ambiente mesmo que isso signifique menos crescimento econômico.

Se você desconfia desses números, num país que elegeu com 58 milhões de votos um Presidente da República que prometeu na campanha acabar com a proteção ambiental e expulsar índios de suas terras, você tem toda razão. Mas a culpa não é da metodologia do Ibope: há quase 20 anos os brasileiros ludibriam sistematicamente as pesquisas de opinião que tentam aferir suas preocupações com a floresta e o aquecimento da Terra. Pew Center e Datafolha, por exemplo, já foram vitimados várias vezes por essa dissonância cognitiva. Ela nos coloca entre os povos declaradamente mais ambientalistas do mundo e, ao mesmo tempo, nos faz assistir inertes às maiores taxas de desmatamento do planeta e apoiar políticos e empresários que causam o problema.

Nosso ambientalismo é "macumba para turista", sentenciou em 1992 o jornalista Ricardo Arnt num livro que merece ser relido em tempos de Bolsonaro: Um artifício orgânico - transição na Amazônia e ambientalismo (Rocco). Escrita em parceria com o antropólogo Steve Schwartzman, que apresentou Chico Mendes ao movimento ecologista internacional, a obra é dividida em duas partes: na segunda, a dupla busca perfilar os principais atores públicos das políticas de proteção da floresta na época de seu nascimento, o final dos anos 1980. Na primeira, Arnt faz uma exploração histórica e filosófica da relação do Brasil com seu maior bioma.

O jornalista gaúcho (disclaimer: foi meu chefe no fim do século passado; não, não lhe devo dinheiro, que me lembre) repara que, historicamente, o único país do mundo com nome de árvore nunca deixou de louvar suas matas. Do verde da bandeira aos bosques que "têm mais vida" do hino, a exuberância da natureza sempre foi uma marca do orgulho nacional. "É disputada por partidos políticos e por escolas de samba. Nutre sistemas tão díspares quanto a doutrina das Forças Armadas e a ideologia do Partido Comunista." Isso decorre, avalia, do enorme impacto que o pensamento naturalista europeu teve sobre a formação da elite brasileira.

A filosofia naturalista, que inspirou a Revolução Francesa, o humanismo e o socialismo, enxerga a possibilidade de um homem no "estado de natureza" e instiga reflexões sobre o bem, o mal e a cultura. Ela foi, por sua vez, tremendamente influenciada pela descoberta da América, que provou aos europeus, no encontro com os índios, que o tal homem em estado de natureza de fato existe - o "bom selvagem" de Rousseau.

Mas o Brasil, argumenta Arnt, forneceu apenas a cenografia para o desenvolvimento do naturalismo, gestado no Velho Mundo, que ademais era profundamente racista; queria vestir o bom selvagem e manda-lo trabalhar. Uma vez desembarcado aqui vindo da Europa, esse pensamento necessariamente entrou em conflito com a realidade bruta da colônia, baseada na depauperação da natureza - julgada infinita - e no genocídio. "A forma fundadora, que deu letra e identidade ao Brasil, foi o monopólio colonial da extração do pau-brasil nas matas da costa, um projeto de exploração predatória da natureza, que, em alguns decênios, esgotado o melhor da floresta, deixou de interessar", escreve. E arremata: "O Brasil porta o ecocídio no nome".

No século 20, o naturalismo derivou para o ambientalismo e atualizou sua mitologia: temos agora a floresta, ex-éden, convertida erroneamente em "pulmão do mundo", e o "bom selvagem" dando lugar ao indígena sábio que vive "em harmonia com a natureza". O vício de origem, no entanto, permanece. Por vir de fora e ao mesmo tempo encontrar um cenário tão familiar no Brasil, o ambientalismo se torna o "artifício orgânico" que dá nome ao livro.

"A natureza deu aos brasileiros sua representação mais duradoura, mas eles não a elaboram, replicam-na a contragosto. Celebra-se na retórica um naturalismo depreciado na prática, percebido como inferior à forma civilizada e que insinua um desdém oculto, racista, à sociedade que habita a natureza." O brasileiro é o sujeito que tem açaí no quintal, mas bebe coca-cola. É o sujeito que bate no peito para urrar "a Amazônia é nossa e ninguém tasca!" mas que na real odeia a floresta, acha que índio é cafona (e ai dele se resolver empunhar um celular ou calçar um tênis: será automaticamente "aculturado" no imaginário racista do brasileiro e perderá, juntamente com sua inocência, seu direito à terra) e que progresso mesmo é soja em Santarém. É, numa analogia precisa, mas pouco científica de um amigo antropólogo, o paulista do interior, descendente de bandeirantes, que vive numa cidade sem árvores, porque árvore é mato e mato é coisa de índio.

Entender as raízes desse ambientalismo de fachada é choque de humildade necessário para gente como eu, envolvida no exercício exasperante de conquistar corações e mentes de brasileiros tentando argumentar logicamente as vantagens da proteção da Amazônia e do cerrado. Comunicar ao brasileiro a emergência climática e o papel do desmatamento tropical nela - e, quem sabe, ajudá-lo a fazer escolhas eleitorais contra o ecocídio e o suicídio coletivo - requer entender que a floresta lhe é um corpo estranho, apesar da proximidade. Arrasamos a Mata Atlântica, a casa da maioria da população do país, antes de conseguir elaborá-la; a Amazônia é nossa segunda e última chance. Quem quer salvá-la precisa ter consciência de que está lutando contra cinco séculos de ódio disfarçados de simpatia em cada um de nós, inclusive nos amazônidas. A tarefa é mais dura do as pesquisas de opinião dão a entender e requer muito mais do que bom senso e dados técnicos.

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Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

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