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Estudo questiona "império" das amazonas

FSP, Ciência, p. A15
Autor: ANGELO, Claudio
05 de Set de 2005

Estudo questiona "império" das amazonas
Escavações indicam que civilização Santarém, origem da lenda das guerreiras, convivia com culturas simples

Cláudio Ângelo
Editor de Ciência

Mal começou a ganhar corpo entre os pesquisadores, a tese de que algumas sociedades pré-históricas da Amazônia montaram verdadeiros impérios em grandes territórios já leva bordunadas. A mais recente partiu de uma arqueóloga paulista, cujos estudos indicam que a poderosa cultura tapajônica, que originou a lenda das amazonas, convivia em seu quintal com sociedades que a falta de correção política chamaria de "primitivas" -agricultures que levavam uma vida muito parecida com a dos índios atuais.
Escavações realizadas ao longo dos últimos três anos pela paulista Denise Cavalcante Gomes em Parauá, uma comunidade extrativista na beira do rio Tapajós (120 quilômetros ao sul de Santarém, no Pará), indicam que uma sociedade indígena se desenvolveu ali à margem do chamado cacicado tapajônico, sediado em Santarém.
Apesar de terem coexistido com os tapajós do século 8 ao século 14, os povos de Parauá aparentemente fizeram contato mínimo com aqueles. E, em vez de seguirem a receita da complexidade social que teria marcado a sociedade tapajó -centralização política, alta densidade populacional, divisão de trabalho e produção de elaboradas cerâmicas cerimoniais-, os índios de Parauá adotaram uma política de "não-alinhamento", mantendo um estilo de vida simples, mas independente.
Os resultados das escavações, apresentados por Gomes na semana passada em sua tese de doutorado no MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia) da USP, engrossam o caldo das pesquisas que vêm virando de cabeça para baixo os modelos de ocupação da Amazônia na pré-história.
Eles indicam que Santarém, a mais emblemática e desconhecida das civilizações amazônicas, pode não ter sido assim tão poderosa. "Que raio de cacicado é esse que permite sociedades autônomas a cem quilômetros de seu centro?" -questiona a cientista.
Complexidade
O surgimento da complexidade social na Amazônia pré-cabralina é um dos assuntos mais quentes -e espinhosos- da arqueologia brasileira. Se por um lado é inegável que culturas elaboradas se desenvolveram na região entre os séculos 4o e 16, como atestam as cerâmicas de Santarém e da ilha de Marajó, dois grandes modelos competem para explicá-las.
O primeiro foi proposto a partir da década de 1950 pela arqueóloga norte-americana Betty Meggers, da Smithsonian Institution. Meggers vê a Amazônia como um "paraíso ilusório", um ambiente pobre e incapaz de suportar agricultura intensiva e grandes populações sedentárias. Portanto, as sociedades complexas teriam sido efêmeras, um resultado de migrações fracassadas dos Andes.
A partir da década de 1980, uma outra americana, Anna Roosevelt, do Field Museum de Chicago, começou a escavar na ilha de Marajó e na Venezuela e propôs o modelo oposto: a floresta tropical teve, sim, populações grandes e densas. Mais do que isso: a cerâmica foi uma inovação amazônica, provavelmente "exportada" mais tarde para os Andes. Roosevelt interpretou o registro arqueológico de sociedades como a marajoara e a tapajônica como verdadeiras cidades, dentro de estruturas políticas chamadas cacicados ou chefaturas -um intermediário entre a tribo e o Estado.
Nem um, nem outro
Gomes resolveu testar os dois modelos escavando os sítios de Zenóbio, Lago do Jacaré e Terra Preta, perto de Parauá, num trabalho financiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Se Roosevelt estivesse certa, a influência dos tapajós teria aparecido na cultura material dos habitantes da região. Isso não aconteceu: em vez do rococó da cerâmica de Santarém, o que Parauá mostra são peças simples, com no máximo incisões nas bordas. Somente um fragmento de cerâmica tapajônica foi achado no local.
"Se o contato existe, ele não é arqueologicamente visível", afirmou a arqueóloga à Folha.
As datações obtidas nos três sítios vão de 3.800 anos atrás até 910 anos atrás, o que é consistente com a idéia de Roosevelt de ocupações de longo prazo. No entanto, a seqüência cronológica é cheia de interrupções. Gomes acredita que os sítios tenham sido abandonados e reocupados diversas vezes - o que não casa com populações sedentárias.
"Eu li a tese de Gomes e ela chega às mesmas conclusões que eu usando tipos diferentes de evidência", diz Meggers, que aos 86 anos continua estudando o assunto -e brigando com a nova geração de arqueólogos.
A pesquisadora paulista não se apressa tanto em concluir isso. Para Gomes, as vastas extensões de terra preta (tipo de solo característico de ocupações humanas), o tamanho e a quantidade de sítios e evidências do uso de peixe depõem contra a idéia de Meggers de pobreza ambiental da floresta.
"A coisa não era nem o paraíso ilusório nem a festa da complexidade", afirma Gomes. Para ela, o que os estudos na periferia de Santarém indicam é que os modelos baseados em estruturas hierárquicas para explicar as sociedades amazônicas precisam ser aposentados. "O trabalho aponta para uma diversidade de organizações e, em última instância, questiona a noção de cacicado."

Saiba mais
Cultura tapajó ainda desafia os arqueólogos

Da Redação

Famosa por seus vasos cerâmicos realistas e cheios de apliques em forma de bicho e gente e pelos muiraquitãs (adornos em forma de sapo), a cultura Santarém, dos índios tapajós, acabou dando nome à Amazônia.
Foi de encontros nada amistosos com os tapajós no século 16 que cronistas espanhóis como o frade Gaspar de Carvajal criaram a lenda das amazonas, transportando à floresta as mulheres guerreiras da mitologia grega (provavelmente as mulheres de Santarém também lutavam em guerras) e batizando o grande rio.
O tamanho de Santarém e o poderio de seus caciques também eram notáveis. "Bota de si 60 mil arcos quando manda dar guerra", relatou em 1662 sobre a aldeia dos tapajós o ouvidor português Maurício Heriarte.
Alguns arqueólogos calculam em 200 mil pessoas a população de Santarém na pré-história. A cidade, no entanto, nunca foi escavada de forma sistemática. Continua sendo um mistério para os arqueólogos. (CA)

FSP, 05/09/2005, Ciência, p. A15

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