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Estratégia da natureza para dar verde ao sertão

O Globo, Ciência e Vida, p. 24
21 de Jun de 2004

Estratégia da natureza para dar verde ao sertão

Letícia Lins

Se o escritor Euclides da Cunha disse que o sertanejo é antes de tudo um forte, o mesmo conceito pode ser aplicado à fauna e à flora da caatinga. Animais e plantas da região desenvolvem surpreendentes mecanismos de resistência às secas, que vão de curtos ciclos de vida à dormência de sementes.
Há plantas que transformam folhas em espinhos para conservar mais água. Outros criam raízes capazes de acumular água e amido, garantindo alimento em tempos de escassez. Alguns peixes depositam ovos em fundos de lagoas quase secas. Os ovos adormecem e só eclodem na época das primeiras chuvas. A explosão de vida observada a cada inverno rotineiramente pelo homem da caatinga constitui material inesgotável para os cientistas.
Malva cumpre ciclo de vida na época da chuvas
Nas secas, parece estranho que algumas árvores permaneçam verdes em meio à vegetação marrom. Entre elas destacam-se o juazeiro, o bom-nome, o icó, o feijão-bravo e a quixaba. Para a cientista Dilosa Carvalho de Alencar, da Universidade Federal de Pernambuco, o fenômeno se deve a adaptações desses vegetais ao ambiente agreste que os cerca
- O juazeiro desenvolve um sistema de raízes que lhe permite buscar água em lugares mais profundos. Já o bom-nome, na fase em que ainda é uma muda, tem o sistema radicular com tamanho três vezes maior do que o de sua parte aérea - diz a professora, uma das co-autoras do livro "Ecologia e conservação da caatinga". - Outras criam tuberosidades na raiz desde que nascem até a idade adulta, caso do umbuzeiro. Ele chega a perder as folhas, mas essa estratégia garante que elas se regenerem logo
Dilosa destaca, também, algumas herbáceas - como as malvas - que aproveitam os períodos de chuva para desenvolverem seus curtos ciclos de vida
- Assim como certos peixes só nascem nas chuvas, há plantas que também só aparecem no inverno e que em apenas três meses completam todo o ciclo de vida: germinam, crescem, floram, frutificam e viram sementes de novo - conta
Dilosa lembra ainda o sistema de armazenamento de água das bromélias. E destaca que as cactáceas são as plantas mais desenvolvidas para o ambiente aparentemente inóspito do semi-árido
- As folhas se transformam em espinhos e o caule termina fazendo a fotossíntese, parte da qual ocorre à noite em algumas espécies. A raiz é superficial, absorve logo a água até mesmo acumulada sobre as rochas o que evita o superaquecimento da planta - explica.

Chuvas provocam explosão de cores na caatinga
RECIFE. O sertão não virou mar, mas está todo verde. As intensas chuvas deste ano fizeram da caatinga cenário para a corrida dos animais e a intensa atividade das plantas contra o tempo para tirar o maior proveito da esporádica presença da água.
O fenômeno faz o bioma mergulhar numa explosão de cores que transforma por completo a paisagem, normalmente seca. Há flores que desabrocham sobre as pedras e até nas falhas do asfalto das rodovias que cortam a região.
Com 800 quilômetros quadrados, o bioma é único no mundo e um dos mais ameaçados do país. Foi o último do Brasil a ser incluído no programa de Reservas da Biosfera e a partir do próximo mês vai contar com um completo Banco de Dados a ser lançado pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco.
O material estará disponível no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), na secretaria e em universidades. No ano passado, cientistas de todo o país lançaram o livro "Ecologia e conservação da caatinga", que teve apenas mil exemplares, mas agora será relançado em maior escala.
O trabalho editado pelos cientistas Marcelo Tabarelli, Inara Leal e José Maria Cardoso da Silva mostra a riqueza que existe por trás da paisagem aparentemente tão inóspita e normalmente associada à miséria provocada pela seca. O livro faz o registro das espécies de 932 vegetais, 510 aves, 240 peixes, 143 mamíferos, 97 répteis, 45 anfíbios e uma infinidade de insetos. Apesar de toda essa riqueza, só agora a caatinga começa a ser explorada com mais intensidade pelos cientistas.

Os animais apresentam suas armas
RECIFE. Conhecido popularmente como bigodinho, o pássaro Sporophila lineola faz uma longa viagem durante os períodos de seca. Da caatinga, ele chega até a Venezuela. Voar para longe, no entanto, não é a única estratégia de sobrevivência dos animais do sertão
A bióloga Inara Leal observou entre 61 espécies de formigas comuns à região uma grande capacidade de buscar alimentos em áreas distantes. E elas preferem o período noturno para os percursos maiores, evitando o ressecamento de seu corpo que fatalmente ocorreria sob o sol causticante.
Introduzidas no semi-árido desde o início da colonização, as cabras também se adaptaram muito bem à caatinga. E como os animais nativos, descobriram estratégias de sobrevivência. Quando as plantas desaparecem, elas se alimentam de sementes, brotos e até cascas de árvore. Ou buscam alimentos em lugares com até dois metros de altura. Para Inara, a presença dos caprinos vem modificando a vegetação da caatinga.

O Globo, 21/06/2004, Ciência e Vida, p. 24

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