VOLTAR

Estrangeiros na rotina dos ribeirinhos

O Globo, Razão Social, p. 12-13
02 de Nov de 2010

Estrangeiros na rotina dos ribeirinhos
Projeto de ecoturismo gera renda e dá valor à preservação em Alter do Chão

Camila Nobrega
camila.nobrega@oglobo.com.br
Enviada especial ao Pará

O rosto está iluminado por velas espalhadas em árvores e na mesa de palha. Com autoridade e desembaraço, "dona" Maria Odila Godinho toma a palavra pela comunidade de Anã e convida os visitantes a saborearem uma "piracaia", tradicional churrasco de peixe da região amazônica. Com uma das mãos, corta um pedaço da carne branca de um tucunaré enquanto, na outra, ela segura um punhado de farinha amarela. E vai explicando aos turistas atentos o jeito de se comer "piracaia": "Ponham um pedaço do peixe na boca e logo depois joguem farinha". Para quem preferir o modo tradicional, aponta uma pilha de pratos. Mas não contém o sorriso ao ver que parte dos visitantes prefere imitá-la. Assim começa o jantar de despedida da visita à comunidade, parte de um projeto de Ecoturismo de Base Comunitária da ONG Saúde & Alegria, em parceria com o Ministério do Turismo.
Estamos na vila de Alter do Chão, próxima à cidade de Santarém, no Pará.
O jantar tem jeito de luau, a paisagem é parecida com a de uma praia em maré baixa e a areia é branca. Mas a cena se passa no meio da Amazônia, quase fronteira do Pará com o Amazonas.
Alter do Chão tem belas praias de rio, formadas por bancos de areia espalhados num clarão aberto na floresta pelo rio Tapajós. Há alguns anos está incluída em roteiros de turismo, e vê crescer o número de pessoas que vão ali aproveitar as águas tranquilas. O que não havia antes, porém, era alguém que dissesse que o peixe comido com a mão é mais gostoso, ou que um banho de rio sob a luz do luar é hábito dos moradores.
É aí que entra Maria Odila, e com ela centenas de pessoas de comunidades da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns que fazem parte do projeto da ONG Saúde & Alegria financiado pelo Ministério do Turismo. Quando voltou à comunidade, há dez anos, após passar 28 em São Paulo, Odila queria retomar a vida tranquila, longe do marido que havia tentado matá-la e, por consequência, dos filhos que não vê desde então. Mas, ao chegar à comunidade de Anã, à margem do rio Arapiuns, ela viu que seria difícil garantir sua subsistência: não tinha peixe, nem outras fontes de renda. Viveu também uma época em que a passagem dos turistas por ali significava reclamação dos moradores, que se sentiam invadidos. Hoje, ela é um dos principais personagens do projeto de ecoturismo na comunidade, e garante que a relação dos moradores com os turistas mudou muito: - Já recebíamos visitantes, trazidos por passeios de barco. Mas eles só passavam, sem deixar nada para a comunidade. Muitos não falavam com ninguém, só tiravam fotos. Foi quando nós paramos para pensar que algo estava errado, já que tínhamos muita coisa boa para mostrar sobre a vida na comunidade - disse ela, carregando na voz um tom que se equilibra entre a força do sotaque do Norte e a tranquilidade de um portavoz da sabedoria local.

Um ano depois do início do projeto, o visitante já é recebido por membros da comunidade na beira do rio, ao descer do barco. Os guias logo se apresentam e daí em diante começa um passeio pela história de Anã. Descobre-se ali, por exemplo, que o nome vem de Moanã, um ser encantado protetor da floresta. E que o rio, apesar de lindo, tem ph ácido demais e não garante peixes o ano todo para as famílias que lá vivem. Em seguida, a bordo de uma canoa, Maria Odila guia a visita à criação de peixes do grupo Musa - Mulheres Sonhadoras em Ação -, que garante alimentação de parte da comunidade e gera renda com os excedentes vendidos em feiras de Santarém.
Como os peixes são criados com ração natural, têm outro sabor e preço diferenciado.
Embora as mulheres sejam maioria no programa, não só ali, como também nas outras comunidades, homens também têm vez, e muitos trabalham como guias ou desenvolvendo projetos de geração de renda. Alexandre Godinho é um deles, e, no roteiro turístico de Anã, é o responsável pela apresentação da criação de abelhas sem ferrão, além de trabalhar na organização da piracaia e de apresentações culturais para os turistas. Segundo ele, há grupos de tocadores de violão, carimbó e de teatro da própria comunidade que estão recuperando o valor por causa do turismo: - É muito bacana contar às pessoas sobre nossa comunidade e ver que elas se interessam.
Para iniciar esse projeto, nós nos organizamos e estamos aprendendo a trabalhar como uma comunidade de verdade. Hoje tenho outras opções na vida. Achava que só poderia fazer farinha, como meu pai e meu avô.
Alexandre já fez um curso técnico de turismo e se prepara para cursar uma faculdade de Geografia em Santarém, aos 28 anos. Quer levar um modelo de desenvolvimento sustentável para a comunidade e pensar em formas de lidar com questões ainda problemáticas, como o lixo. Hoje, os moradores queimam plásticos e apenas enterram o lixo orgânico em buracos, o que traz muitos problemas ambientais.
Passeando pelas ruelas da comunidade, é mais provável que o visitante veja uma casa com som ligado em um techno, ou até hip hop, em vez de um som local. Não faz muito tempo que um gerador foi instalado ali, e as pilhas dos rádios foram aposentadas. Mas o resgate da cultura local ganhou um reforço com o turismo. Como as árvores de pé, o modelo de vida ali passou a ser valorizado pelos cerca de 500 habitantes. E, ao perceber que a preservação tem um grande valor, não só ambiental como também econômico, eles estão buscando cada vez mais alternativas sustentáveis dentro da comunidade.
Os passeios são combinados previamente com as agências de turismo e cada pessoa paga uma taxa de R$ 5 pela visitação. Além disso, são cobrados R$ 20 de cada visitante que participar da piracaia, à beira do rio. Os preços só podem mudar quando o visitante fechar pacote completo com as agências de turismo da região. Mas, por enquanto, todas as visitas são monitoradas pelo Saúde & Alegria, e operadas pelo projeto Bagagem, uma ONG especializada em turismo comunitário. O programa não permite que sejam cobradas taxas abusivas, já que o objetivo é reverter os ganhos para as comunidades.

Com o ecoturismo em Anã, por exemplo, cada comunitário recebe cerca de R$ 150 por mês, o que hoje é um complemento a outras fontes de renda, como o cultivo da mandioca e de frutas, como o cupuaçu, além da pesca.

O único jeito de chegar às comunidades é de barco. Em Urucureá, a duas horas de Anã, o Saúde & Alegria atua há mais de dez anos. A ONG chegou ali para fazer atendimentos médicos e orientar os moradores sobre doenças e higiene, mas o projeto foi crescendo e hoje são vários os braços que dão frutos. Em relação ao turismo, a principal fonte de geração de renda ali é o artesanato, mantido por 29 mulheres da comunidade. Elas investiram na qualidade dos produtos e hoje têm até certificação do Conselho Brasileiro de Manejo Florestal (FSC) para as peças produzidas com palmeira de tucumã de área de manejo florestal. Já até exportam.
Segundo Rosângela Tapajós, artesã que gerencia as vendas, a renda deu às mulheres mais valor na comunidade. O artesanato em Urucureá existe há muitas gerações, mas, nos últimos dez anos, elas se organizaram e aprenderam o valor de produzir sem agredir a floresta. Outras gerações chegaram a trabalhar com anelina, mas o grupo de artesãs que trabalha com o Saúde & Alegria resgatou as tinturas artesanais, que têm valor agregado maior, especialmente na exportação: - O genipapo dá a cor preta e a mangaratava o amarelo. Assim vai. Temos encomenda de vários lugares do mundo, e os passeios turísticos fazem uma parada aqui. As mulheres do grupo são a principal renda dentro de suas casas e hoje tem marido fazendo almoço para elas e cuidando das crianças. Somos todas guerreiras.

E são mesmo. Especialmente porque a renda com o artesanato pode ter crescido e feito com que muitas delas saíssem da miséria, mas não foi suficiente para acabar com necessidades básicas da comunidade. Em pequenas casas de palha, famílias ainda lutam para alimentar os filhos, já que no solo da Amazônia nem tudo vinga.
Mandioca é a base da alimentação, mas nem sempre há peixe para acompanhar. E não são poucas no próprio grupo as mães solteiras, abandonadas pelos maridos e responsáveis pela criação dos filhos. Os principais gastos são comida e material escolar, mas elas garantem que, quando as exportações aumentam, sobra até para comprar perfume e uma roupa.
Segundo Ândrea Colares, bióloga que trabalha no Saúde e Alegria, o projeto tem valorizado os costumes locais: - Há casos em que o turista fica até na casa dos próprios moradores. É uma imersão na cultura de cada comunidade, que vai muito além de um simples passeio a uma praia de rio bonita. Por outro lado, é uma forma de a própria comunidade reconhecer o valor de atividades não predatórias. Implantamos com eles projetos de agroecologia e permacultura, por exemplo, e hoje eles sabem os benefícios de manter esses projetos.

A cidade de Santarém, a mais próxima com estrutura aeroportuária, já sofreu bastante com o turismo que chegou antes do planejamento.
Por lá, as feiras deixam marcas de sujeira nos rios, e esgotos ficam à mostra. Aos poucos, a cidade está fazendo mudanças e revertendo a situação, mas ainda há muitos problemas.
Já na Ilha do Amor, principal praia de Alter do Chão, turistas abandonam lixo na areia e até no rio. Quem cata são os próprios barraqueiros, que montaram um projeto para manter a praia limpa. Fica a esperança de que o ecoturismo de base comunitária seja um meio de preservar a floresta e a cultura local.

Saude & Alegria e Projeto Bagagem
www.saudeealegria.org.br/turismo e www.projetobagagem.org
A repórter viajou a convite da Caravana Brasil

O Globo, 02/11/2010, Razão Social, p. 12-13

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.