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Estradas da devastação

Agencia Estado
Autor: Liana John
15 de Jun de 2001

Ao cumprimentar o novo presidente do Peru, Alejandro Toledo, após o segundo turno eleitoral de 3 de junho, o presidente Fernando Henrique Cardoso mencionou a disposição de cooperar "de forma intensa e solidária, em particular nos projetos de desenvolvimento e integração da infra-estrutura física sul-americana". Toledo agradeceu e também enfatizou a importância da integração física, especificando dois projetos de estradas na Amazônia: do sul do Acre ao sul do Peru, abrindo uma via para o Pacífico para escoar a soja brasileira, e do norte do Peru ao Estado do Amazonas, para trazer fertilizantes fosfatados.
As observações passaram meio desapercebidas, em meio à crise energética brasileira, assunto preferido por dez entre dez vítimas do racionamento. Mas não deixaram de acordar velhos fantasmas, que assombram a preservação da floresta amazônica, onde a devastação anda no rastro das estradas.
A via para o Pacífico é um antigo sonho dos madeireiros e produtores rurais. Abriria novas perspectivas de exportação para os mercados asiáticos, conferindo competitividade aos produtos brasileiros. Mas é um pesadelo para os ambientalistas. Estradas na Amazônia atraem novos moradores, que se assentam às suas margens de forma caótica, derrubando a floresta e ampliando a fronteira agrícola. Na época de queimadas, as imagens de satélite costumam mostrar as principais rodovias como linhas de focos de fogo. Estradas atraem também madeireiros e/ou garimpeiros, que movimentam o capital necessário para sustentar a implantação de novas cidades, novos serviços e novas necessidades. E todo o conjunto significa perda de biodiversidade e desperdício de recursos naturais.
Não precisava ser assim. Com planejamento, zoneamento econômico-ecológico e ordenamento territorial, anteriores à abertura das estradas, os impactos poderiam ser menores, poderiam existir medidas de mitigação e compensação ambiental. Estudos técnicos poderiam definir o melhor traçado, evitando áreas ecologicamente frágeis ou biologicamente importantes.
No entanto, planejamento é uma palavra desconhecida na história da Amazônia. Na verdade, boa parte da estrada entre o Acre e o Peru já existe e está sendo asfaltada aos pedaços por madeireiros e autoridades locais, à revelia do governo federal, que há dez anos decidiu suspender este projeto, justamente por seu alto risco ambiental. O traçado é político, é o que melhor atende aos interesses locais imediatos, e passa longe de qualquer discussão racional. A troca de cumprimentos entre os dois presidentes é só uma pincelada de legalidade sobre um fato consumado, hoje fora de controle.
Já a via entre o norte do Peru e o Brasil é novidade. A intenção é abrir uma estrada nas várzeas do rio Amazonas ou utilizar o próprio rio? A ocupação humana naquela porção de Brasil é esparsa e se fez toda por via fluvial. A floresta é densa e passa metade do ano alagada. O acesso hoje é só por barco e avião. Os impactos de uma estrada ali não seriam só ambientais, mas também econômicos, pois seria preciso domar uma natureza bastante hostil, que já derrotou iniciativas anteriores, como a Transamazônica.
O projeto soa tão delirante quanto a via marítima, que se pretende abrir no Círculo Polar Ártico, entre o Mar de Barent (próximo da Finlândia) e o Estreito de Bering (entre a Rússia e o Alasca), chamada Rota do Mar do Norte. São 5.600 quilômetros, que encurtariam o caminho dos navios entre a Escandinávia e o Leste da Rússia. A rota facilitaria o transporte de minérios, petróleo e gás da Sibéria, promovendo a devastação de uma região hoje protegida pelo isolamento.
De acordo com um estudo financiado pelo Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (Pnuma) - o Globio - cujos primeiros resultados foram anunciados nesta semana, os impactos de uma via como esta são imensos. Os animais do Ártico são particularmente suscetíveis às alterações de habitat e fragmentação das áreas, que utilizam para reprodução e alimentação. Alterações nos seus padrões de migração podem causar erosão e afetar os padrões hidrológicos e de congelamento do permafrost e da tundra, como já acontece em estradas no Alasca e norte da Europa. O caso do permafrost é especialmente sério. Permafrost é um solo expandido por gelo, que abriga uma reserva imensa de carbono. Seu descongelamento significa liberar carbono e acelerar ainda mais o efeito estufa, além de expor regiões inteiras a incêndios incontroláveis.
Como na Amazônia, porém, os impactos ambientais da Rota do Mar do Norte são indiretos e, provavelmente, só serão levados em conta quando for tarde demais para preveni-los. E caro demais para consertá-los.

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