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Estrada onde os caminhos são perigosas armadilhas

A Crítica, Cidades, p. A1,C1,C3-4
23 de Nov de 2003

Estrada onde os caminhos são perigosas armadilhas

Coragem, paciência e sorte. Estes são os requisitos para quem se arrisca a viajar pela BR 319, estrada que liga o Amazonas a Rondônia. Abandonada há mais de uma década, a rodovia guarda armadilhas em todo seu percurso. Buracos, atoleiros, bueiros abertos, pontes destruídas, trilhas que levam a abismos. A repórter Gisele Vaz e o fotografo Antônio Lima,, da equipe de A CRITICA, toparam o desafio e viajaram pela estrada, onde muita gente já passou por maus momentos. Foram 43 horas de via em de Porto Velho até Manaus. O relato desta aventura cheia de perigos e das histórias ouvidas dos moradores que residem ao longo da rodovia é a principal reportagem do caderno de Cidades. p. A1

Descaminhos da BR-319
Estrada guarda armadilhas a cada quilômetro

Textos: Gisele Vaz

Para viajar pela BR 319, estrada que liga o Amazonas a Rondônia, é preciso coragem, paciência e é recomendável que o motorista já tenha participado alguma vez de uma competição de rally. Um pouco de sorte também ajuda. As recomendações têm uma explicação. Trafegar pela rodovia é uma aventura arriscada, hoje encarada por poucos.
Abandonada há mais de uma década, a estrada chega a desaparecer em alguns trechos, obrigando os motoristas a escolherem uma entre as várias trilhas que se abrem na mata. 0 problema é que boa parte delas acaba em abismos. Mas este não é o único perigo da viagem. Uma série de armadilhas tornam mais assustador o caminho - buracos e atoleiros sem fim, pontes quebradas, bueiros abertos. São muitas as histórias contadas pelos moradores que vivem ao longo da rodovia, que volta e meia têm que socorrer os aventureiros que se arriscam pela estrada.
0 pescador Julito Fernandes Ambrósio, 50, único morador do quilômetro 170, conta que no final do ano 2000 dois vendedores passaram maus bocados na estrada. Julito lembra que os homens seguiam de Manaus para Porto Velho (RO) e ao chegarem no quilômetro 180 não puderam mais ir em frente porque uma ponte havia caído. Os dois tentaram voltar, mas também não conseguiram fazer o trajeto inverso por conta um bueiro havia se rompido. Resultado: ficaram dois meses na estrada, esperando o período de chuva passar para improvisarem uma ponte para saírem.
"Os dois passaram o Natal e o Ano Novo na estrada, em baixo de fortes chuvas. Eu é que mandava cigarro, cachaça e alimentos para eles, sempre que passava algum vizinho que ia para o lado de lá", completou Julito.
Outra história é contada pelo agricultor João Queiroz, 47, morador do Km 150. "Estava em casa, por volta das 14h, quando chegou um homem pedindo ajuda. Ele tinha abandonado o carro, um modelo Saveiro, em um atoleiro a 30 quilômetros da minha casa. Recordo o estado em que chegou, cansado e com fome. Deixei que dormisse e no dia seguinte fomos até o local", recorda.
João relembra que no caminho encontrou com uma equipe da Embratel, que deu uma carona aos dois e ajudou a desatolar o carro, com o auxilio de uni cabo de aço. Depois disso, o motorista preferiu desistir da viagem. "Ele ia para Manaus, já estava Km 180, mas decidiu voltar para Porto Velho e embarcar o carro em uma balsa', concluiu.
Aventuras
Também chama atenção na estrada o número de carcaças de veículos que aparecem ao longo do caminho, prova macabra da alta freqüência de acidentes. Pela localização da maioria das sucatas, dá para concluir que muitas viagens acabaram em ribanceiras, leitos de rios e dentro de bueiros. Há dois meses, o ônibus que transportava os moradores do trecho que vai de Humaitá até o Piquiá, no quilômetro 176, caiu no rio porque á ponte quebrou.

Trilha de incontáveis desafios
Encarar a tarefa de seguir pela BR-319 exige determinação e desprendimento para atravessar duras provações pelo caminho
A viagem trilhada pela equipe de A CRITICA pela rodovia 319 começou na cidade de Porto Velho, em Rondônia (a 840 quilômetros de Manaus). Para sair da capital e pegar a estrada é necessário primeiro atravessar de balsa o Rio Madeira. 0 percurso até Humaitá, no Amazonas, é de 200 quilômetros. Até chegar a cidade é preciso muito cuidado, pois a estrada tem trechos sem asfalto, o que obriga o motorista a reduzir a velocidade e a fazer alguns malabarismos para fugir dos buracos.
Se começa a chover, o caminho vira um tormento, como previsto pelas pessoas ouvidas pela reportagem em Porto Velho. E foi isso que a equipe de A CRITICA enfrentou na viagem de três horas, feita inicialmente debaixo de chuva, numa Ranger com tração nas quatro rodas. Houve momentos em que ficou difícil acreditar que a viagem fosse ter fim. 0 maior receio era de que o carro não resistisse ao impacto provocado pelos inúmeros buracos que apareciam pela frente.
Por sorte, o temporal cessou em meia hora e um sol radiante se abriu no caminho. Mesmo assim, não foi possível ultrapassar os 60 quilômetros de velocidade, já que o asfalto começou a desaparecer em meio a tantos buracos.
Ao chegar em Humaitá, a equipe parou no posto da Polícia Rodoviária Federal para obter mais informações sobre a estrada. 0 policial que atendeu não foi nada otimista. "Duvido muito que vocês consigam chegar a Manaus. A estrada está intransitável. Os únicos que se arriscam são os funcionários da Embratel (Empresa Brasileira de Telecomunicações), que sempre viajam em comboio", relatou o policial federal, acrescentando que não aconselhava viagens à noite. Como estava anoitecendo, o melhor foi pernoitar na cidade e deixar para continuar a viagem no dia seguinte.
As 5h da manhã do outro dia, a viagem recomeçou. Durante o percurso feito durante a primeira hora, podemos observar uma paisagem mesclada por campos verdejantes de plantações de arroz ou soja e áreas desmatadas e ocupadas por pastos de gado.
Depois disso, este cenário desaparece e dá lugar a um caminho esburacado dentro da mata fechada. A partir daí, decidir que caminho seguir transformou-se quase em adivinhação, já que a cada instante surgiam duas ou três trilhas na mata, que na maioria das vezes não leva a lugar algum. Desta forma, a equipe foi obrigada a parar diversas vezes antes de escolher o caminho por onde seguir, perdendo muito tempo.

Criatividade para fugir dos obstáculos
Depois de gastar seis horas para percorrer 176 quilômetros, a equipe enfim chegou à localidade conhecida como Piquiá, onde já houve uma vila e hoje apenas resta uma única casa. O lugar é tão inóspito que passa desapercebido aos viajantes. Ao perguntarmos aos únicos habitantes de uma casinha próxima da estrada onde ficava a Vila do Piquiá, fomos pegos de surpresa ao descobrirmos que vila ficava exatamente ali no meio do nada. "0 que restou da vila, fica a uns três quilômetros daqui. Hoje só existem as ruínas de um posto de gasolina, do restaurante e das casas", respondeu a moradora.
Como não havia possibilidade de encontrar restaurantes, resolvemos parar para descansar e comer parte dos mantimentos que levávamos na viagem. 0 dono da casa, Julito Fernandes, aproveitou para contar as histórias dos aventureiros que já teve que ajudar ao longo dos anos.
Uma das estratégias utilizadas para ajudar quem fica com o carro atolado na lama, segundo ele, é fazer um 'macaco baiano'. "É preciso a ajuda de três pessoas. Colocamos um pau cortado, tipo forquilha, próximo a uma das rodas dianteiras, para levantar o carro, depois jogamos paus e folhas no local onde estava a roda, repetindo a ação na parte de trás. A seguir é só retirar as forquilhas e sair com o carro funcionando", explicou Julito. Quando os carros são maiores, a estratégia muda. "Quando atolam ônibus e caminhões, enfiamos duas pontas de eixo em um local onde não tenha barro, amarramos uma das pontas de uma corda resistente no carro, e a outra nas pontas de eixo, e fazemos ele sair", concluiu.
Depois do Piquiá, o caminho segue por um dos lugares mais temidos por quem viaja pela estrada. Pela frente é preciso enfrentar 22 quilômetros de atoleiro. É neste trecho que o motorista precisa ter atenção, paciência e sorte.

Resistência
Atoleiros exigem perícia
A cada instante é necessário sair do carro para empurrá-lo e não ficar no atoleiro. A sorte foi uma grande companheira neste percurso, já que o único prejuízo mecânico foi a quebra do sistema de freio. O pior de ficar atolado neste trecho ou depois dele é não poder contar com ajuda de mais ninguém, já que não há moradores no trecho que vai do Km 170 até o 370. Caso aconteça algum problema, o motorista é obrigado a percorrer mais de 200 quilômetros para conseguir ajuda. E o maior problema é o fato de o caminho ser habitado por muitos animais, principalmente onças. Muitos são as histórias de pessoas que foram atacadas e mortas por onças.
Quando a noite chega, os riscos são ainda maiores. A estrada, que durante o dia desaparece dentro da mata, não é localizada. 0 único jeito encontrado pela reportagem foi procurar abrigo na casa de um dos poucos moradores do local e recomeçar o trajeto no dia seguinte.
Travessia
Depois de atravessar o Rio Madeira, enfrentar buracos, atoleiros e passar por 110 pontes de madeira, o viajante ainda tem que fazer outra travessia de balsa para pegar a estrada novamente na localidade de Tu pana. Só que aí, o motorista tem que estar preparado fisicamente, pois do contrário não consegue atravessar. Explica-se: é preciso puxar a balsa de um lado para o outro do rio com cordas.
Esse taba lho é necessário, pois a ponte que passa sobre o rio e que leva o mesmo nome da vila está destruída. A distância é pequena, cerca de 40 metros, mas a correnteza dificulta a travessia. Geralmente, é necessária a ajuda de pelo menos cinco homens para puxar a balsa de um lado para o outro, o que custa R$ 10 ao viajante. Depois da travessia, até chegar a Manaus são mais 176 quilômetros, dos quais os primeiros 76 também estão em situação precária. De Porto Velho a Manaus, a equipe de A CRÍTICA levou 43 horas, numa viagem que deixa claro os descaminhos da BR 319.

Vida dure e cheia de privações
Habitantes das margens da BR-319 encaram as durezas de uma vida longe de tudo na esperança de que dias melhores virão
Gisele Vaz
A vida de quem mora ao longo da BR 319 é heróica. São pessoas movidas pela esperança, em busca de uma vida melhor em meio a tantas adversidades. Welligton Tavares, 17, morador do Km 96, é um destes personagens. Durante o dia, ele cultiva a roça de milho e arroz da família de oito irmãos. A noite, percorre três quilômetros de bicicleta em direção à escola, onde cursa 3a série do Ensino Fundamental. "Às vezes, fico tão cansado que não tenho vontade de ir para a escola. Mas de uns tempos para cá, coloquei na cabeça que quero ser doutor. Por isso, mesmo cansado, encaro a estrada", contou, acrescentando que no período de chuva, fica mais difícil ainda chegar à escola, já que o caminho fica todo cheio de lama.
A mato-grossense Nilza Francisca Santana, 63, que reside há 31 anos na Vila Realidade, no Km 100, é outro exemplo. Parteira da comunidade, aprendeu o ofício quando chegou ao Amazonas e se orgulha em dizer que é responsável pelo nascimento de duas gerações de algumas famílias da região. "Sou mãe de nove filhos, tenho 60 netos, 27 bisnetos e já realizei 130 partos. Nunca morreu ninguém na minha mão", conta, lamentando apenas não ter como ajudar quem sofre de doenças graves.
A prefeitura de Humaitá disponibiliza, uma vez por semana, um ônibus para transportar as pessoas que moram no trecho que vai do quilometro 100 ao 170. Contudo, o serviço é precário e nem todos são beneficiados. A agricultora Rosa Maria Gonçalves, 53, diz que por conta da superlotação do ônibus e da distância em que mora nem sempre consegue levar para vender na cidade o que produz. "Toda quarta-feira, o ônibus segue para o Piquiá, localidade na beira da estrada que fica no km 170, e só volta no sábado. Mas de lá at a Vila Realidade, onde moro, é muito distante. Na maioria das vezes, o ônibus está lotado e não cabe mais ninguém. Assim, temos que ir a pé ou de bicicleta para a cidade", queixou-se.
Adunai Santos Silva, 45, morador do km 370, também tem dificuldades para se deslocar quando necessita ir a Humaitá ou a Manaus, o que acaba fazendo a pé ou de bicicleta. "Quando a viagem é feita a pé, levamos de 15 a 20 dias para chegar em uma das duas cidades, que estão a meio caminho de onde moro". Ele conta que o pai morreu em 2000, antes que pudesse ser socorrido. "Meu irmão foi até Humaitá de bicicleta comprar remédio e quando voltou fazia dois dias que nosso pai havia morrido".
No km 116, o casal Djanira Rodrigues Santos , 54, e José Francisco Barros, 72, resiste ao sofrimento de viver em um local desabitado e sem infra-estrutura. Mesmo possuindo uma casa em Jarú, município rondoniense, José Francisco prefere habitar a pequena casa de taipa coberta com palha de palmeira. Djanira demonstra insatisfação em estar no local, apesar da tranqüilidade do marido. " Só estou aqui por causa dele. Não vou abandoná-lo. Aqui tem muitos mosquitos, passo o dia de calça comprida", reclama ela, ressaltando que o vizinho mais próximo da casa reside a 20 quilômetros.
Ao contrário da esposa, José demonstra otimismo. "Acredito que não vai demorar muito para que a estrada volte a funcionar. Quando isso acontecer, minha roça vai estar pronta", comenta, ao caminhar em direção ao roçado, mostrando que sozinho, desmatou a área de seis hectares onde está plantando está plantando milho e mandioca.

A Crítica, 23/11/2003, Cidades, p. A1, C1, C3-C4

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