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Estação purgatório, rumo ao paraíso

CB, Pensar, p.3-5
Autor: SACHS, Ignacy
26 de Mar de 2005

Estação purgatório, rumo ao paraíso
Socioeconomista diz que Brasil precisa apostar na biodiversidade para crescer

Nahima Maciel
Da equipe do Correio

Ignacy Sachs é um grande entusiasta do futuro do Brasil. Aos 77 anos, o socioeconomista enxerga o país como um reduto de possibilidades que vão do desenvolvimento da biomassa à inclusão do trabalhador rural. Fundador do centro de pesquisa sobre o Brasil contemporâneo na Écoles des Hautes Études Sociales de Paris, uma das mais conceituadas da Europa, o professor há anos tem os olhos voltados para o desenvolvimento brasileiro.
Nascido na Polônia, ele imigrou para São Paulo para fugir do nazismo. Formou-se em economia no Rio de Janeiro e voltou à Polônia em seguida. De lá, foi para Paris, onde fundou o centro destinado aos estudos sobre o Brasil, hoje dirigido por Afrânio Garcia. Também na escola francesa, estreitou relações com Celso Furtado, cuja obra já admirava e traduziu para o polonês. Foi para Sachs, aliás, que o economista brasileiro morto em novembro do ano passado escreveu seu último texto, um prefácio da coletânea de ensaios Desenvolvimento includente, sustentável, sustentado.
O livro é fruto de uma parceria com o Sebrae e a editora Garamond. Nele, Sachs trata dos entraves do desenvolvimento com inclusão social, bem-estar econômico e preservação ambiental. É a quinta publicação do socioeconomista no Brasil, país que observa com especial dedicação e que visita no mínimo uma vez por ano. Um dos criadores dos fundamentos do desenvolvimento sustentável, ele insiste na articulação entre os espaços sociais, ambientais e econômicos como único caminho para a inclusão social e geração de emprego. Os dois últimos, na análise de Sachs, são os maiores problemas da humanidade. Na entrevista abaixo, realizada durante rápida passagem por Brasília para palestras no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília e lançamento do livro, o professor fala sobre neoliberalismo, reforma agrária e recursos sustentáveis.

Correio Braziliense-Quais são os fundamentos do desenvolvimento sustentável?

Ignacy Sachs-O conceito de desenvolvimento includente e sustentável parte de um imperativo ético de solidariedade com a geração presente, e isso nos remete ao problema da justiça social e à busca de caminhos que gerem a inclusão social, essencialmente uma inclusão social pelo trabalho decente. E a solidariedade diacrônica com as gerações futuras nos obriga a uma maior responsabilidade na gestão do nosso planeta. Ou seja, nos obriga a tentar aprender a fazer um bom uso da natureza. E insisto sobre o conceito de bom uso da natureza porque não se trata de proteger o meio-ambiente não tocando. Isso é verdadeiro para algumas reservas, mas em geral trata-se de aprender a aproveitar o potencial, o capital natural de maneira a não deixar aos nossos filhos e netos um planeta menos habitável ou, quem sabe, totalmente inabitável.

Correio - Qual o papel do estado nacional hoje no desenvolvimento?

Sachs - Mais do que nunca, nessa e era de globalização, precisamos de um estado nacional forte e atuante. Isso não ç significa que não possa ser mais enxuto. O estado é necessário para organizar três r coisas. Primeiro, para articular os espaços do desenvolvimento. 0 desenvolvimento v acontece em nível local, nacional, regional e transnacional. Não é por acaso que ç as reformas neoliberais atacam em primeira instância os instrumentos do estado na área precisamente de comércio exterior, de controle do fluxo de capitais. É n lá que precisamos de um estado forte porque é esse o ponto mais vulnerável da economia nacional no seu encaixe na economia mundial. Dois, para harmonizar os objetivos sociais e ambientais com a viabilidade econômica. É óbvio que as melhores idéias não acontecem se as soluções econômicas não são viáveis. Hoje estamos sentados sobre ruínas de vários paradigmas - o socialismo real morreu com a queda do muro de Berlim, o consenso de Washington morreu com a tragédia Argentina - e o nosso futuro vai se materializar nas diferentes formas do que poderia ser chamado de economia mista, onde se articulam o público e o privado. De um lado, o estado tem que cuidar para que haja essa harmonização dos objetivos sociais e ambientais. 0 econômico é só instrumental, não é um objetivo em si. E há a criação de verdadeiras parcerias entre todos os grupos envolvidos no processo de desenvolvimento. Ou seja, trabalhadores, empresários, poderes públicos e um quarto parceiro, uma novidade das últimas décadas, que é a sociedade civil organizada. Essas são as três principais funções do estado. Isso leva a visualizar o desenvolvimento como um processo de permanente negociação entre esses grupos. E temos que reabilitar também o conceito de planejamento. É absurdo que qualquer em presa de porte maior esteja planejando e o estado não esteja fazendo o mesmo.

Correio - O que seria uma globalização includente e porque essa idéia é tão remota?

SACHS -A globalização hoje funciona em detrimento dos interesses dos países mais fracos. Para que essas relações deixem de ser assimétricas seria preciso chegar a regras de jogo no mercado internacional que praticam uma discriminação positiva com relação aos mais fracos. Essa idéia era muito difundida logo depois da Segunda Guerra e foi muito bem formulada nos anos 1950 por um grande economista sueco, Gunnar Myrdal, prêmio Nobel que dizia que a equidade nas relações econômicas mundiais consiste em criar regras de jogo que são enviesadas em favor do mais fraco. Sobre esse princípio foi construída a Unctad. Estamos muito longe disso porque confundiu-se eqüidade nas relações internacionais com igualdade formal. Se você coloca em igualdade formal o forte e o fraco, o forte acaba tomando todas as vantagens e o fraco paga todos os custos. Acredito que nesses últimos 30 anos caminhamos em sentido inverso. Todas as idéias de desenvolvimento includente e sustentável nasceram no momento em que estava ocorrendo a contra-reforma neoliberal, que não acredita em nada disso e endeusa os mecanismos de mercado. Costumo dizer que a conferência de Estocolmo, da qual saíram as primeiras definições do que hoje se chama desenvolvimento sustentável, ou aconteceu 10 anos tarde demais ou 30 anos cedo demais. Não se faz desenvolvimento includente sustentável sem um estado atuante. E a tônica da contra-reforma neoliberal é a destruição desse estado, é o estado mínimo. Essa contradição domina hoje o cenário mundial.

Correio - E como a União Européia tem se movimentado nesse cenário?

Sachs -Aí você abre uma caixa de Pandora de problemas. De um lado, a criação da União Européia é um evento histórico da maior importância, tendo em vista o passado de guerras do nosso continente. Agora, quem diz União Européia não diz ainda quais os conteúdos, qual o desenho institucional. E somos muitos a acreditar que perdemos nossa chance de criar uma Europa mais orientada para os problemas sociais, mais orientada para o pleno-emprego, e criamos uma Europa fortemente inspirada nos conceitos neoliberais. E isso, a meu ver, vai gerar graves problemas, para não dizer conflitos sociais, na Europa.

Correio - Como é possível praticar o desenvolvimento sustentável em países como o Brasil, com altas taxas de migração do campo para as cidades?

Sachs - Primeiro, essa evasão do campo precisa ser qualificada. O Brasil rural é ainda bem maior do que se pensa.
Em um estudo recente, o Banco Mundial apontou para o mesmo problema. Se a gente usar os critérios da OCDE (Organização Econômica para Cooperação e Desenvolviinento), a população rural da América Latina seria de mais de 40%, e não de 23%, como se divulga. Temos mais gente em área rural do que se pensa. Segundo, não existe essa dicotomia rural-urbano. Existe um contínuo que vai do rural ao periurbano, ao semiurbano e ao urbano. Terceiro: não acho que a categoria urbanização esteja sendo corretamente aplicada. 0 favelado, para mim, não é urbanizado. Ele é candidato à urbanização, está no purgatório, esperando ingressar no paraíso. Mas para que seja efetivamente urbanizado é preciso que aconteçam três coisas: que tenha um teto decente, uma ocupação decente e condições de exercer sua cidadania. O fato de termos refugiados do campo não significa que foram urbanizados. Acredito que o Brasil é o país que tem as melhores condições do mundo para partir para um novo ciclo de desenvolvimento rural. A maior biodiversidade do mundo, a maior floresta tropical ainda em pé, uma ampla oferta de terrenos cultiváveis que ainda não estão sendo cultivados, e não estou dizendo que se deve abater a floresta. Há dezenas de milhões de hectares não cultivados e pastos extensivos que podem ser convertidos à agricultura. 0 país também tem um potencial de terras irrigáveis de aproximadamente 30 milhões de hectares, dos quais apenas 3 milhões foram irrigados até hoje. Então, tem a biodiversidade, terras, um clima extremamente favorável ao crescimento da biomassa. E, por fim, pesquisa de classe internacional em agronomia e biologia. Junte essas três coisas e veja o quanto se pode fazer ainda em termos da construção de uma civilização includente e sustentável, baseada na valorização da biomassa.

Correio - E qual o papel da reforma agrária no desenvolvimento sustentável?

Sachs - Ela entra como uma das condições para fortalecer a agricultura familiar. 0 agronegócio pode ser baseado na grande propriedade e nas relações sociais injustas herdadas do passado colonial, mas não há razão para reduzir o conceito de agronegócio a este caso. Pode haver agronegócio democrático, no qual o pequeno produtor tenha um papel importante, sobretudo quando ele souber recorrer a formas de empreendorismo coletivo. A transformação da biomassa pode dar lugar a diferentes modelos produtivos com um papel maior ou menor segundo a política seguida para os empreendimentos de pequeno porte e sua articulação com as grandes indústrias situadas na ponta do processo. Há um terceiro problema, ao lado do clima e do emprego, que é a camisa de força que constitui o petróleo para a civilização mundial. Um só produto, altamente oligopolizado, fruto de uma geopolítica perversa de guerras e invasões. Nós somos prisioneiros disso? Não. Hoje, 30% da gasolina é constituída por etanol. Isso exige 2,5 milhões de hectares. Se chegar a 100%, significará 10 milhões de hectares. Quando se tem uma reserva de 100 milhões de hectares, usar um terço dessa reserva para oferecer ao país uma saída dessa camisa de força do petróleo é perfeitamente viável. A meta da substituição das energias fósseis pela bioenergia, pela energia solar, pela energia eólica, pelas energias renováveis, é perfeitamente factível no Brasil. E ainda, de sobra, é possível imaginar uma exportação muito interessante do etanol que vai ser misturado à gasolina em outros países. O mundo todo está acordando para isso e este país tem a vantagem da dotação de recursos e de ser o primeiro no mundo a ter feito o Proálcool. Pode aprender, nessa nova fase, com os erros cometidos na implementação do Proálcool. É uma enorme vantagem.

Correio - O que o senhor acha da maneira como a reforma agrária tem sido feita no Brasil?

Sachs - Celso Furtado costumava dizer que o MST é o maior movimento social da história do Brasil. Temos que reconhecer isso. Se não tivesse havido MST, a reforma agrária não teria chegado onde chegou. Indubitavelmente, uma coisa importante aconteceu em matéria de reforma agrária nos dois governos de Fernando Henrique. Não deixa de ser surpreendente que nos primeiros dois anos do seu governo, Lula não tenha incrementado a dinâmica nessa área. A crítica principal dirigida à reforma agrária é que a produtividade dos assentamentos é muito baixa, que muitos assentados aproveitam a primeira oportunidade para vender ilegalmente o lote e ir a outro lugar pleitear outro lote. Algumas dessas críticas são verdadeiras, outras não parecem ser substanciadas pelos estudos excelentes que foram feitos por uma grande equipe de cientistas sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que mostraram que essa imagem do desastre dos assentamentos é sempre possível, mas temos do bom e do ruim. Não resta dúvida que a reforma agrária não pára no momento da distribuição da terra. A reforma agrária significa distribuir a terra e organizar a produção, dar aos assentados o acesso aos conhecimentos, aos créditos, ao mercado. Há muito o que fazer para transformar os assentamentos em embriões de vilas agro industriais. Acho que a idéia de reduzir o debate da reforma agrária ao número de assentados e a um número de hectares de terra que foram divididos é empobrecer o debate que deveria ser de dinamizar os assentamentos, de dar-lhes uma perspectiva duradoura de desenvolvimento. Seguindo a lógica que diz que o Brasil tem ainda um enorme futuro para um novo ciclo de desenvolvimento rural, a reforma agrária é um dos instrumentos da política que deve ser contemplado, mas não é o único.

CB, 26/03/2005, Pensar, p. 3-5

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