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Espionagem oficial

FSP, Tendências/Debates, p. A3.
Autor: BETTO, Frei
06 de Set de 2001

Espionagem oficial

FREI BETTO

O jornalista Josias de Souza vem demonstrando que os órgãos militares de inteligência (sic) do governo FHC possuem espiões duplos. Prova disso é que alguém de dentro da comunidade de informações tem permitido que o contribuinte brasileiro fique a par de como são utilizados seus recursos por parte dos arapongas da República.
Os dados são estarrecedores. A espionagem oficial trabalha à base de subornos, eufemisticamente chamados "gratificações e recompensas", e considera um exemplo de "eficiência" a chantagem sexual, como a do agente "Giacomo", que, em Roma, seduziu Krystina Trushenski, da embaixada da Polônia.
Os movimentos sociais são tratados como "forças adversas" -o que faria corar um sociólogo da USP-, seus militantes podem vir a ser "eliminados" e admite-se "arranhar direitos dos cidadãos" em nome da preservação da ordem pública. A desastrada "inteligência" da espionagem oficial arranha, sim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a própria Constituição.
Vez ou outra deparo com um desses arapongas em meu caminho. São tão sutis como os soldados do Corpo de Bombeiros. Só falta se vestirem de vermelho. Com um semblante aprazível, acercam-me como se fossem repórteres ou estudantes interessados em entrevistas. Um deles até se propôs a escrever a minha biografia. É o método para se aproximar, conhecer hábitos e idéias da vítima, saber o que ela faz e pensa.
Requeri ao general Alberto Cardoso, em 28 de maio de 98, minha ficha na Subsecretaria de Inteligência da Presidência da República (atual nome do SNI). Em março de 1999 recebi cópia do meu prontuário -vinte páginas em tamanho ofício, carimbadas com o selo da República e assinadas por David Bernardes de Assis, "assessor". Continha 225 informações, abrangendo um período de 28 anos -de 1961 a final de 1989. Nenhuma referência aos anos 90, o que me faz supor que os dados só são liberados ao fim da década. Talvez para não deixar pista de como os arapongas andam nos espreitando nos últimos tempos.
Entre informações corretas e curriculares, como "foi professor do Instituto Pastoral da Arquidiocese de Vitória, ES, assessor da Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindicais", constam novidades para mim mesmo, como a de que fui "membro fundador do Instituto Socioambiental (ISO)", de que nunca ouvi falar, ou "agente de pastoral em Brasília", onde jamais residi.

Vez ou outra deparo com um desses arapongas em meu caminho. São tão sutis como os soldados do Corpo de Bombeiros

"Em 1964, mantinha ligações com Carlos Marighella e era tido como responsável pela fuga de diversos elementos terroristas do território nacional." Só conheci Marighella em 1967 e dei fuga a militantes políticos em 1969.
Há um elenco de informações fantasiosas, como a de que participei do congresso da UNE de 1968, em Ibiúna (uma falha em meu currículo), ou que, em abril de 1981, eu era "colaborador do Centro de Reflexion Tecnológica, com sede no México". Quem dera, pois a tecnologia anda carente de que se reflita sobre o seu significado no mundo atual.
Consta que, em agosto de 86, fui "nomeado componente da Comissão Agrária do Ministério da Reforma Agrária e do Desenvolvimento Agrário no Estado de Pernambuco (Mirad/PE)". Fiquei ciente da nomeação só agora. Serei um funcionário público federal virtual?
"Em 1979, segundo a Cúria Diocesana de São Paulo, o requerente teria se desligado da Igreja Católica Apostólica Romana." A cúria é arquidiocesana, permaneço católico desde o dia de meu batizado, em 1944, e frade dominicano há 36 anos. O curioso é que, logo adiante, há informações de que participei da "XXI Assembléia Geral da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, realizada em Itaici, SP, no período de 6 a 15 de abril de 83", e do "20o Aniversário da Primeira Assembléia Geral da Conferência Episcopal Latino-Americana (Celam), realizado de 15 a 17 de julho de 88, em Nova York".
Não é confederação, é conferência; não sou bispo ou assessor da CNBB e, logo, não participo de suas assembléias; a Celam foi fundada em 1955 e, por ser um órgão latino-americano, jamais faria reuniões na América do Norte.
Registra a ficha que, "em 1986, foi eleito pela União Brasileira de Escritores (UBE) "O Intelectual do Ano'". Isto é certo. O que não está anotado é que o título e o prêmio foram-me entregues em cerimônia solene no teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, pelas mãos do sociólogo Fernando Henrique Cardoso.
Agora, leitores, imaginem "eliminarem forças adversas" baseados nesse tipo de desinformação. Filho de família que conta com dois generais e um almirante, temo que setores das Forças Armadas no Brasil, desde que deixaram de enxergar o inimigo externo, estejam tratando como tal seus compatriotas.
Não são os movimentos sociais que ameaçam a segurança nacional. É a atual política econômica, que promove gritante desigualdade social e o empobrecimento da nação, monitorada de fora para dentro pelo FMI.

Carlos Alberto Libânio Christo, 56, o Frei Betto, escritor e frade dominicano, participa do Centro de Justiça Global e é autor, entre outros livros, de "Controversões - civilização e barbárie na virada do século" (Boitempo), em parceria com Emir Sader.

FSP, 06/09/2001, Tendências/Debates, p. A3.

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0609200110.htm

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