VOLTAR

Escola Pamáali - 3 mil anos de história em 11 anos de vida

Horizonte Geográfico, n. 143, out. 2012, p. 68-75
08 de Out de 2012

Escola Pamáali - 3 mil anos de história em 11 anos de vida
No noroeste da Amazônia brasileira, perto da fronteira com a Colômbia, uma escola para as etnias baniwa e coripaco está revolucionando o ensino indígena

Eduardo Petta

Extremo Noroeste do Brasil. As linhas do mapa que dividem a fronteira com a Colômbia perfazem o desenho perfeito da "Cabeça do Cachorro". Na outra borda da divisa, o perigo: o lar das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, uma guerrilha cada vez mais parecida com um cartel do narcotráfico. Do lado de cá, terras e comunidades indígenas do Alto e Médio Rio Negro. Um mosaico de culturas, no qual vivem 50 mil pessoas de 22 etnias.

"Bléin, bléin, bléin!" Seis da manhã. Ao toque do sino, dez alunas da Escola Indígena Baniwa e Coripaco Pamáali (EIBC Pamáali) levantam de suas redes, deixam o alojamento e caminham como vultos por uma trilha em meio à Floresta Amazônica. Faz frio e o escuro da noite ainda briga com o clarão do dia que logo vai reinar. Uma névoa fina cobre as águas geladas do rio Içana. Elas não hesitam. Mergulham os corpos. Sabonete, xampu, creme. Em silêncio, penteiam as longas e lisas madeixas, negras como as águas do rio. Os movimentos são precisos e harmoniosos. "O banho antes de iniciar o dia é sagrado para nós. Renova o espírito", diz Leonísia. Uma tradição confirmada na mitologia dos antigos. "Comer sem banhar, pode dar panema", explica. Entre os índios, panema significa má sorte, infortúnio, e ninguém quer isso para o seu dia.

"Bléin, Bléin, Bléin!" Sete da manhã. As jovens se juntam aos 37 rapazes - que se banharam ainda mais no escuro, ao toque do sino das 5h30, para tomar o café da manhã. Cardápio: mingau de farinha de mandioca e vinho de patuá, uma típica palmeira local.

Sete e meia. Um novo badalar e começam as aulas. O professor de piscicultura Juvêncio Cardoso escreve na lousa a lição do dia. Kophenai nako. Não é português, mas língua baniwa, e significa: "Sobre os peixes".
Após uma pequena introdução, pede que o aluno Elton José mostre os resultados de seus estudos. O jovem abre um mapa primorosamente desenhado do rio Içana, com dados sobre o impacto da pesca e os caminhos viáveis rumo ao manejo sustentável, e explica aos pares suas descobertas.
"Qual o tamanho mínimo de captura dos peixes? E a época certa para pescá-los? Vocês não acham que o uso do timbó (um cipó venenoso que mata os peixes asfixiados) está sendo praticado além do necessário?", são algumas de suas perguntas.

Seu Alberto, de 80 anos, um dos baniwa mais respeitados, que ajuda os alunos periodicamente, toma a palavra. "Os antigos sabiam benzer o timbó antes de usá-lo. Retiravam a mãe dos peixes da água, deixando-a numa camada espiritual. Pescavam apenas seus filhotes e depois devolviam a mãe ao rio, para que continuasse a reproduzir. Os mais novos não sabem usar o timbó. Nem fazer essa ligação com o espírito sagrado do rio", diz o ancião baniwa.

Para chegar às suas conclusões, Elton pesquisou em livros de sociedades não indígenas, na internet , usando os computadores da escola, e entrevistou os antigos. "Conversei com os mais velhos da minha comunidade, meu avô e meu tio, com o Seu Alberto, gente que detém o saber de nossos ancestrais." Sua pesquisa, assim como a dos outros alunos, será compilada em textos escritos em baniwa.

Revolução educacional
Em pouco mais de 11 anos de vida da escola Pamáali, a novíssima literatura produzida ali revolucionou o ensino no rio Içana. Preencheu prateleiras com pesquisas, ajudou a formar professores e deu vida aos primeiros livros para alfabetização em baniwa. "Estamos, aos poucos, realizando a sistematização de um conhecimento milenar", diz Juvêncio.

Para redescobrir suas raízes, alunos e professores correm contra o tempo. Sobraram poucos 'memórias vivas' para contar a história. O motivo? Dois séculos de contatos avassaladores com os brancos. No século 18, perseguição de militares espanhóis e portugueses, epidemias de varíola e sarampo. No século 19, escravidão durante o ciclo da borracha, a chamada correria. No início do século 20, abalo cultural na mão dos missionários católicos salesianos e suas escolas "civilizadoras", instaladas desde 1914 na região. E, finalmente, na década de 1940, a invasão evangélica comandada pela americana Sophie Muller.

Chamada de dona Sofia pelos índios, a missionária Sophie apareceu para os baniwa como uma revelação. É tratada como profeta, uma deusa mitológica, associada a outros profetas de movimentos messiânicos que apareceram no rio Içana (o primeiro relato data de 1857). É ela quem ensinou os baniwa e coripaco a ler e escrever.

Apesar de protegê-los de abusos de violência, os religiosos confundem suas tradições. Sophie, por exemplo, convenceu os xamãs a jogar seus apetrechos rituais no rio e expôs as flautas sagradas às mulheres, rompendo os rituais de iniciação e evangelizando as comunidades. Os indígenas se dividiram entre católicos, principalmente no Baixo Içana e no rio Aiari, e evangélicos, estes mais localizados nas porções alta e média do rio Içana. Padres contra pastores numa disputa pelas almas dos índios que perdura até os dias atuais.

Foi no olho desse furacão, no fim do século 20 (a primeira reunião deu-se em 1992), que as lideranças começaram a se reunir para reformular a educação. "O tema incomodava o nosso povo", explica André Baniwa. Tudo começou a melhorar entre os anos de 1996 e 1998, quando o governo federal finalmente reconheceu os direitos coletivos dos povos indígenas do Alto e Médio Rio Negro, demarcando um conjunto de cinco terras contínuas com cerca de 10,6 milhões de hectares. "Entre elas, as áreas de ocupações tradicionais dos baniwa e coripaco", lembra André.

Como donos de suas terras, montaram o projeto político-pedagógico de uma escola indígena e foram à luta. No caminho, receberam o auxílio do ISA (Instituto Socioambiental), da Oibi (Organização Indígena da Bacia do Içana) e da Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro).

Apesar de não estar situada em nenhuma comunidade, o urbanismo e a arquitetura da Escola Pamáali foram inspirados em uma aldeia baniwa. Os alunos se dividem em alojamentos dispostos em torno da praça. Mulheres de um lado, homens do outro. Nas outras pontas estão as salas de aula, biblioteca, cozinha, refeitório, laboratório e a oca da internet.

Ninguém mora definitivamente na escola, mas alunos e professores, todos muito jovens, permanecem nela por dois meses seguidos, em regime de internato, ao fim dos quais voltam para suas comunidades, onde passam mais dois meses. Levam pesquisas e depois retornam para divulgá-las. "Aqui, recebem aulas de português, matemática, ciências, informática, história, geografia e sobre patrimônio cultural imaterial do nosso povo", explica Juvêncio.

As aulas de tradição têm amplo espaço na grade curricular, mas não desprezam os avanços da ciência moderna. Na aula de piscicultura, por exemplo, os alunos aprendem tanto a fazer as armadilhas de pesca dos antigos, como a desenvolver uma moderna estação de alevinos para produção de matrizes - solução tecnológica eficaz para uma era de pouca fartura de peixe.

Blogs e saberes milenares
Nas aulas de arte, trabalho masculino, resgatam o saber da confecção das cestarias de arumã, planta da qual retiram a fibra para seus objetos de uso diário. Participam da colheita, passando pelo trançado até o acabamento.
Na escola, os alunos produzem urutus, balaios, jarros, tipitis - todos esses instrumentos de cestaria usados para preparar e armazenar a farinha de mandioca, além de peneiras, todos ricamente ornamentados com grafismos coloridos.
Os saberes milenares da agricultura, fundamentados no calendário astronômico, assim como as aulas de dança, música, rituais, memórias e costumes estão sendo cada vez mais valorizados. Recentemente, por exemplo, a escola trabalhou com o projeto sobre o tema chuva, resgatando dicas de meteorologia aprendidas na floresta sobre o comportamento dos animais: quando o jacu canta de tarde, vai chover no dia seguinte; quando os tucanos pousam num galho de árvore morta pela manhã, irá chover logo em seguida.
As informações do mundo globalizado também não passam despercebidas.
"Vários alunos possuem blogs, participam de redes sociais, tiram fotos, fazem vídeo, design. Estamos conectados no mundo tecnológico", afirma Raimundo Benjamin, que coordena a área de tecnologia da escola.
Além de todo esse universo de informações, os estudantes, professores e funcionários se revezam e assumem funções de gestão cotidiana, como o transporte e o uso da gasolina. "Nós somos os responsáveis pelo transporte de todos. Alguns estão a cinco dias de viagem daqui, em um barco com motor de rabeta. Temos de buscá-los com o Bongo (o nome da embarcação local).
Gastamos muito dinheiro. É preciso controlar cada litro", afirma Benjamin.

Banhos, futebol e novela
No cotidiano, certos horários do dia devem ser vividos como os de um dia a dia normal numa comunidade baniwa.
Homens vão à pesca, abrir roçados, apanhar lenha e produzir cestarias de arumã.
Mulheres vão à roça, colhem mandioca, pimenta, fazem farinha, preparam o almoço. Cada um cuida de sua roupa. Todos ajudam na limpeza. O dia é intercalado por vários banhos de rio. Ao fim de cada tarde, animadas pelejas de futebol e vôlei movimentam a aldeia. Algumas noites, a televisão é liberada para novela ou futebol.
O contato com a família e amigos acontece via rádio ou internet.
Criada no ano 2000, a Pamáali foi a primeira escola na região do Médio e Alto Rio Içana a oferecer o segundo segmento do ensino fundamental (6o ao 9o anos da educação básica). Entre 2000 e 2011, a escola recebeu 148 jovens, formando 86 alunos, sendo que 40% deles passaram a ser professores nas escolas da bacia do Içana.
O respeito pelo que está sendo estudado e divulgado na Escola Pamáali já ultrapassou as fronteiras locais, impactando atualmente toda uma rede composta por 57 escolas no rio Içana, que, juntas, atendem a 2.028 alunos. "Estamos no caminho certo", diz André Baniwa, e completa:
"Existe o sonho de criar uma Universidade Indígena do Rio Negro. Mas vamos devagar.
Deixa a gente aprender um pouco mais, fortalecer as comunidades. Por enquanto basta viver o sonho de ver nossos filhos serem educados com o mundo globalizado, sem nunca perderem de vista a nossa raiz, memória e identidade cultural".
Ao aliar saberes milenares às ferramentas da comunicação moderna, motivando seus alunos a fortalecerem ainda mais suas identidades, a Escola Pamáali, em plena Floresta Amazônica, faz a lição de casa que qualquer escola pública do país deveria fazer também.

Horizonte Geográfico, n. 143, out. 2012, p. 68-75

http://horizontegeografico.com.br/exibirMateria/1553

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.