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A era da biopirataria

O Globo, História, p. 35
01 de Nov de 2014

A era da biopirataria
Jardins botânicos serviram de reservatório de plantas contrabandeadas no Brasil Colônia

Flávia Milhorance

Os altos muros do Jardim Botânico do Rio de Janeiro separam a cidade caótica do ambiente que resguarda belezas naturais e uma rara tranquilidade. A sensação é a de entrar num universo bucólico e pacífico. Para os desavisados pode ser difícil conceber que sua criação, em 1808, por D. João VI, foi cercada de episódios de disputas, espionagem e contrabando. Não era o único. O surgimento de jardins botânicos, em especial nos séculos XVIII e XIX, estão intimamente relacionados a atividades de biopirataria entre colônias e metrópoles, já que, na época, o poder sobre determinadas espécies representava grandes vantagens econômicas e estratégicas.
- Havia uma distinção entre os jardins voltados para passeios, o deleite, e os jardins botânicos, que originalmente foram criados para a produção de plantas úteis. Todas as grandes cidades coloniais tinham jardins, que recebiam plantas de climas semelhantes, muitas vezes através de roubo, para serem aclimatadas na América - explica a historiadora Lorelai Kury, autora do capítulo que trata da biopirataria no livro "Usos e circulação de plantas no Brasil - séculos XVI e XIX" e também organizadora da publicação.

A ESTRATÉGICA INVASÃO DA GUIANA FRANCESA
Um dos episódios mais importantes dessas disputas é a invasão da Guiana Francesa em 1809 pelos portugueses. Além de representar uma resposta à tomada, pela expansão napoleônica, de Portugal e a tentativa de redefinir a fronteira do Brasil com a Guiana, essa investida à colônia francesa teve outro objetivo pouco comentado: o interesse de D. João VI por plantas cultivadas no jardim La Gabriele, de Caiena, que permitiam à Guiana exportar cravos-da-índia, urucum, algodão, cacau e açúcar, para citar alguns.
Após a tomada do território, parte das riquezas naturais de Caiena foram roubadas e distribuídas pelo Brasil. O Jardim Botânico do Grão-Pará - que funcionou entre 1798 e 1873 em Belém - recebeu 82 espécies de plantas de Caiena, entre as quais fruta-pão (também introduzida nas Antilhas), cravo, noz moscada e canela. Em 1811, um novo horto, desta vez em Olinda, foi inaugurado com o único fim de acolher as plantas provenientes da colônia francesa para, depois, serem disseminadas por Pernambuco e, dali, para o Rio de Janeiro.
Outra colônia francesa aumentou a coleção natural do Rio. O sítio da Lagoa Rodrigo de Freitas, onde funcionava uma fábrica de pólvora, tinha espaço de sobra para o plantio de mudas que chegaram também da Ilha Maurício. Prisioneiro em 1808 na colônia, o comerciante português Luiz de Abreu, depois de resgatado, admite ter levado diversas plantas cultivadas no jardim La Pamplemousse: "tratei de negociar, e efetuei com aquele Governo o meu resgate (...), ao mesmo roubar aquela colônia", contou Abreu em texto citado no livro. O Jardim Botânico do Rio surge nessa área, onde as diversas plantas de interesse econômico já eram cultivadas.
As experiências botânicas dos franceses eram amplamente cobiçadas, porque eles tinham uma rede de jardins espalhados por suas colônias. Mas até mesmo as valorizadas plantas francesas têm origem no tráfico internacional. O agente colonial Pierre Poivre, missionário viajado que viveu no século XVIII, foi personagem central do contrabando, para o governo da França, de especiarias, que depois foram distribuídas pelas colônias, entre elas, a Guiana Francesa e a Ilha Maurício.
- A história da circulação de plantas remonta à Antiguidade, mas há um incremento enorme desta prática com a descoberta da América. Nos séculos XVI e XVII, elas vinham de forma espontânea. Os séculos XVII e XIX têm a característica de racionalizar e tornar científico o trato com as plantas - pontua Lorelai.
Especialmente nas últimas décadas do século XVIII e as primeiras do século XIX, houve uma nítida aceleração no ritmo da circulação de plantas exóticas no Brasil, com surtos produtivos, como o do chá e do anil, que depois foram desacelerados, por volta de 1830, pela força que começou a desempenhar o café; aliás, roubado de Caiena.
- Era proibido retirar mudas de café da Guiana Francesa. No século XIX, já existiam normas e vigilância de viajantes que coletavam vegetais, não era fácil enviá-las para o exterior, por isso que eles eram roubados - afirma a historiadora, que conclui. - Mas na época o café não era consumido como é hoje. Foi um movimento duplo: o tráfico levou ao aumento do consumo, o que, por sua vez, elevou seu valor econômico e interesse.

ESPIONAGEM BOTÂNICA NOS EUA
O contrabando de espécies exóticas no período colonial acabou se tornando uma importante campanha de governos, e altos investimentos em dinheiro e pessoal eram feitos para garantir o sucesso da empreitada que podia durar anos. Pois além do roubo de plantas, também era preciso saber como aclimatá-las e cultivá-las para garantir seu potencial econômico. Assim, jardineiros, técnicos e cientistas às vezes eram cooptados. Em outras situações, longas pesquisas ou estadias demoradas no país de origem da planta eram necessárias para se aprender sobre seu manuseio. Mesmo assim, rotineiramente os piratas naufragavam.
Uma longa viagem que o jornalista e diplomata Hipólito da Costa realizou aos Estados Unidos, entre 1798 e 1800, foi uma custosa expedição de espionagem botânica, a pedido de D. Rodrigo de Souza Coutinho, então ministro de D. João VI. Sua missão era conseguir amostras e informações de tabaco, algodão e, principalmente, um cacto que servia para a produção de um corante de cor carmim, importante ramo de comércio nas Américas. Dos Estados Unidos, Costa seguiu para a região de Oaxaca, no México, onde crescia o cacto palma (Opuntia), hospedeiro do inseto cochonilha (Dactylopius coccus), matéria-prima do corante. A planta foi levada para o Rio, e uma vasta pesquisa se iniciou. Desta vez, no entanto, em vão.
- O corante chegou a ser produzido e comercializado, mas não era competitivo porque sua fabricação era muito particular e complicada, e o cacto não se adequou ao clima brasileiro - explica Lorelai. - Movia-se muita gente, muito dinheiro, muitas estratégias mirabolantes para pegar as plantas e aprender como elas deveriam ser tratadas. Às vezes eles tinham sucesso, muitas outras, não.

O Globo, 01/11/2014, História, p. 35

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