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Epistola do Sao Francisco

OESP, Espaco Aberto, p.A2
Autor: KUJAWSKI, Gilberto de Mello
27 de Out de 2005

Epístola do São Francisco
Gilberto de Mello Kujawski
A mística poderosa do Rio São Francisco foi imortalizada na literatura pelo poeta mineiro Dantas Motta, na famosa Epístola do São Francisco (l955), um poema fluvial que concorre em nível de qualidade com O Rio, de João Cabral de Melo Neto. Escrito em linguagem bíblica, em tom profético, a Epístola desdobra-se em andamento impressionante, entremeando o lastro histórico e lendário do rio com memórias do Velho Testamento, visões de Jerusalém e do cativeiro da Babilônia: "Porque eu, rio, que de Francisco o nome tomo/ misterioso e serrano, do deserto sou manado;/ Porquanto, se gerado fui sem infância/ para ser santo, nascido sou adulto já./ Sabeis assim que sou pobre./ Do contrário Francisco eu não seria./ Nem deste País, o qual é o de um pastor sem avena."
Que diria hoje o velho Dantas Motta a respeito do discutido projeto de transposição das águas do São Francisco? Qual seria sua reação a tantas opiniões apressadas e destorcidas veiculadas na mídia sobre o momentoso assunto, culminando na greve de fome do bispo de Barra (BA)?
Por exemplo, o comentário irresponsável de certo jornalista e professor da USP, indagando como seria possível tomar a sério a atitude de uma pessoa ligada a uma instituição que só fala de "seres incorpóreos" (a Igreja)? Seres incorpóreos? Acaso a utopia socialista, da qual o injuriador se alimenta, será um ser material e tangível? A verdade, a justiça, a beleza, que significam a razão de ser da vida humana, serão seres corpóreos? E que dizer do crédito, que move a atividade mais material que existe, a economia? O crédito não é exemplo de um ser incorpóreo? Outros falaram em "chantagem emocional", o que soa estranho. Chantagem emocional para preservar a própria vida se compreende. Mas chantagem emocional pondo a vida do chantagista em risco é novidade. Outro conhecido jornalista desqualifica o bispo como alguém que quer "bancar" Antonio Conselheiro. Que desrespeito, mais que à pessoa do bispo, à realidade, o que se configura mais grave num profissional da imprensa.
Os que desqualificam o gesto do bispo só revelam a indigência de sua formação mental. Os que aplaudem o bispo (como Leonardo Boff) o confundem com outros líderes carismáticos do Nordeste, Frei Damião e outros. Todos escorregam no tópico, repisam o lugar-comum. Não percebem o que há de novo e inédito na tomada de posição do franciscano bispo dom Luís Flávio Cappio. Com duas ou três exceções. A primeira e mais significativa é a do sociólogo Flávio Pierucci, especialista em religião. Eis como ele formula seu argumento: "O bispo de Barra, em vez de falar dos pobres, fala do rio. Isso é a novidade, colocar uma causa pelos pobres, tradicional na igreja progressista, associada, imediatamente, em nível de mídia, com a questão ecológica" (Folha de S.Paulo, 9/10).
Nas fotos publicadas na imprensa durante seu jejum, dom Luís Flávio quase sempre aparecia com a paisagem do São Francisco ao fundo, numa associação muito feliz em sua aparente casualidade. Pois, como diz Pierucci, ele, "em vez de falar dos pobres, fala do rio". Fala do rio, bebe do rio, contempla o rio, funde-se com ele. O autor da descoberta fala em ecologia. Estará certo até certo ponto. Mas vou além. Creio que a perspectiva do bispo vai mais ao fundo, na direção do horizonte distante. Passa do plano meramente ecológico para o simbólico. O rio não se limita a um bem ecológico. O rio, em seu mistério, em sua paixão e agonia, transfigura-se num bem simbólico, o símbolo do sofrimento e da redenção de toda a região banhada por suas águas.
"Sabeis assim que sou pobre", murmura o rio na Epístola de Dantas Motta. Pobre é o São Francisco. No entanto, por um desses paradoxos próprios ao cristianismo (o saber do não saber, a nobreza do não nobre, etc.), a pobreza se converte no seu contrário, em riqueza: "Bem-aventurados vós, os pobres: porque vosso é o reino de Deus" (S. Lucas, 6-20). Nessa interface da pobreza e da riqueza do rio, de seu presente e seu futuro, sua degradação e seu renascimento é que se situam a pessoa e a palavra do bispo. E é nesse contexto agônico, dilacerante, que seu gesto deve ser captado, sem a ligeireza e a frivolidade dos intelectuários da metrópole: "Os letrados têm dificuldade de entender, mas não o povo simples. Quando se esgota a razão, a loucura da fé é o caminho" (dom Luís). Interessante a posição das altas autoridades eclesiásticas, da CNBB, criticando a greve de fome. Dom Luís, com seu sacrifício, volta ao heroísmo da Igreja primitiva, dos mártires e dos apóstolos. Pergunta Pierucci: "Como é que a Igreja condena o ato de colocar a vida em risco se toda a história do cristianismo surge com a idéia de martírio?"
A Igreja Católica, abalada e humilhada pela sucessão de escândalos em seu baixo clero, estava precisando de um choque de moralidade que lhe restituísse a plena autoridade aos olhos da opinião pública. Este choque foi desencadeado não a partir de Roma e da cúpula dos teólogos e doutores da Igreja; partiu do sofrido Nordeste brasileiro, na pessoa de um clérigo que com seu gesto extremado e autêntico desafia frontalmente um governo perdido no jogo da insinceridade e do ilusionismo.
Falar dos pobres do Nordeste é pouco; falar do rio espoliado, poluído, violentado é tocar na raiz do problema, chamar a atenção para a degradação da fonte da vida e clamar pela sua purificação, sem a qual nem pobres nem ricos se salvam naquela região, porque o rio doente contamina também a terra e a riqueza dos ricos.
O pior para o grande rio não é sua extinção, é sua burocratização, entregue às garras impiedosas da hidrodemagogia anunciada pelo governo. Conforme já foi previsto nas palavras do profeta: "Morri eu, afinal, que de Francisco mais não sou,/ Porquanto, hidrelétrico, em autarquia transformado fui."
Gilberto de Mello Kujawski, escritor e jornalista, publicou A Identidade Nacional e Outros Ensaios (Funpec). E-mail: gmkuj@terra.com.br

OESP, 27/10/2005, p. A2

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